Chama-se Francisco Torres, tem quase 80 anos — “não os tenho ainda mas já os pode por” — e a primeira vez que foi a Fátima tinha apenas oito anos. Qual pastorinhos. Não foi a pé — foi de burro da sua aldeia, em Vale Flores, mas é perto de D. Belida que agora o encontramos, no cimo de um monte, num dos postos de apoio aos peregrinos mais originais.
É um posto improvisado, mas Francisco é um apoio homologado. Tem carimbo oficial da organização dos caminhos de Fátima e tudo. Mesmo que tudo tenha acontecido meio por acaso, quando se reformou da sua vida de guarda de caça, trabalho que desempenhou durante 26 anos.
Tinha uns terrenos que calhavam na rota dos peregrinos de Fátima e de Santiago de Compostela — e pede-nos que assentemos o nome com rigor: “Escreva aí: é em D. Belida, Casais do Sá Couto, freguesia Achete, Santarém”. Depois de reformado, sentava-se por ali a almoçar, via os peregrinos passar, pediam-lhe para tirar fotos, ele tirava e tudo começou assim. Depois “começaram a trazer-me santinhos…” Trazem-lhe também bolos e outras coisas. “Ainda agora estava a comer umas bolachas que me trouxeram”, diz.
Conta-nos isto debaixo de uma chuva torrencial que bate naquele troço de terreno no cimo de um monte, algures entre a Azoia de Baixo e a Azoia de Cima no distrito de Santarém. Tem uma espécie de cabana — tenda, talvez — improvisada, forrada de t-shirts alusivas aos caminhos. Lá dentro, numa espécie de bancada — ou escritório, numa visão mais sofisticada —, Francisco guarda um dossier com o registo de todos os peregrinos que já por ali passaram ao longo destes sete anos, os sete anos em que ele decidiu ali se instalar.
“Maria José Belmonte, está aqui nunca mais a vi …”, vai dizendo enquanto folheia os registos. “Olhe aqui está a Carla, de São Julião da Barra, em Oeiras …”.
Quantos é que já passaram aqui nestes sete anos? “São muitos…” Regista-os todos. Mais de 500? Mais. Mais de 1000? Mais. São muitas folhas, escritas à mão, e Francisco já escreve nas costas das folhas.
Dá-lhes assistência, tem com ele “água boa” que oferece — mesmo que no dia em que falámos ninguém a peça. “Hoje ninguém quer, está de chuva…”.
Tem histórias de todo o tipo. “Olhe houve uma senhora que passou ali e eu perguntei-lhe se trazia credencial. E ela disse que não trazia credencial nenhuma. Para que era a credencial, perguntou-me. E eu disse, era para carimbar, tenho aqui um carimbo para os peregrinos que a organização dos caminhos de Fátima me deu. Ah eu não sou nenhuma ovelha ranhosa para ser carimbada, disse ela”.
Lembra-se também de duas raparigas, uma chilena e uma argentina, que iam pela estrada errada. Chamou-as para avisar, mas elas tiveram medo. “E eu pensei, bem, tenho de ir atrás das raparigas …”. Lá foi e fez sinal com a mão que era para outro sítio. As peregrinas fizeram um ar de poucos amigos, mas lá vieram. “Mas vinham de má mente … Quando viram o marco aqui é que perceberam, riram e fartaram-se de tirar fotografias”.
Há vários peregrinos que voltam todos os anos. Um francês, que já vem há cinco anos, um casal italiano, que vem há dois, outro de Dublin que volta há três anos.
Este ano tem mais portugueses. Os estrangeiros também continuam a vir, mas esses vêm todo o ano, não é só em maio. Chega um peregrino croata que insistentemente tinha chamado por ele. Francisco, Francisco… “Espere lá um bocadinho que vocês carimbam com muita força e o ano passado iam-me partindo um carimbo”. Os estrangeiros têm muita força, resmunga um bocadinho.
Quantos carimbos tem?, perguntamos ao peregrino. “1215”. Tem 67 anos e vem do caminho francês para Santiago de Compostela, nunca tinha estado em Fátima também.
O que gosta mais é mesmo de ver gente. E, mesmo nos dias de pouco movimento, passa sempre pelo menos um peregrino. E ele ali está, já o conhecem, e ele conhece as suas histórias.
“Se você quisesse saber coisas que acontecem com os peregrinos tinha de estar aqui comigo todo o dia”. Tinha razão, mas há quilómetros a percorrer e já perdemos de vista o grupo. Até um dia destes, Francisco.
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