Apesar de a Jornada Mundial da Juventude ter acontecido na primeira semana de agosto, a sua preparação começou muito antes. Na verdade, para muitos, teve início quase imediatamente após o anúncio no Panamá, em 2019. Para Inês Almeida e Sara Camilo, ambas do concelho de Torres Vedras, também foi assim.
"Estávamos ainda antes da pandemia quando o padre Ricardo Jacinto me liga a meio da tarde, a uma hora de trabalho. Foi meu pároco durante 10 anos, apanhou-me desde muito nova até à idade em que entrei na universidade e, por isso, marcou fortemente o meu crescimento e o meu percurso na fé. Desde que saiu mantivemos contacto, mas muito mais à distância", começa por recordar Inês ao SAPO24. Por isso, o telefonema causou estranheza. Mas vinha aí um bom motivo.
"Quando a JMJ começou a ganhar forma e ele foi colocado como um dos responsáveis da parte da liturgia, teve a ideia de reunir alguns dos acólitos que lhe tinham sido mais próximos, para fazerem equipa com ele. Então colocou-me esse desafio", nota.
Contudo, o primeiro impacto não foi fácil. "Quando começou a tentar descrever o pouco que já se sabia na altura, quanto mais ele falava mais assustada eu ficava. Começou a descrever cerimónias de tamanhos que eu nunca tinha presenciado, quantidades de alfaias que eu nunca tinha visto juntas na minha vida, e tudo aquilo parecia demasiado para a minha capacidade".
"Quanto mais ele falava, entusiasmadíssimo com a proposta que me estava a fazer, mais eu dizia 'mas eu não sei se consigo, eu não vou conseguir'. Mas ele dizia que era bem possível e eu lá acabei por aceitar. Não tinha sequer forma de dizer que não, primeiro que tudo porque, na altura, a JMJ já se começava a desenhar também nas paróquias e de uma coisa nós tínhamos a certeza: queríamos fazer parte dela", acrescenta.
Sara recebeu também um telefonema, depois de Inês. "Mais tarde, em conversa com ela, percebi a estratégia do padre Ricardo Jacinto, que foi 'já que assustei a Inês, agora à Sara vou dizer o mínimo possível até que ela diga que sim'. E resultou!", recorda ao SAPO24.
"Quando recebi a notícia de que ia ser cá em Portugal, o entusiasmo foi um bocadinho como o do nosso presidente da República: 'fixe, conseguimos, agora quero fazer parte'. O padre Ricardo é uma pessoa que também me marcou, pela mesma razão que a Inês referiu, e não dava para dizer que não. Era bom voltar a trabalhar com ele, era um motivo também para dizer que sim", frisou.
"Logo de seguida também me convidaram para fazer parte do Comité Organizador Vicarial (COV) de Torres Vedras. Pensei que devia concentrar-me só numa atividade, mas acabou por me dizer que as duas coisas eram possíveis, que eram diferentes. Primeiro, a preparação seria mais ao nível vicarial e depois a nossa missão na liturgia seria mais propriamente para os dias na JMJ. Então avancei", relembra.
Assim, era oficial: estavam numa equipa que viria a juntar cerca de 80 pessoas. Mas já lá vamos.
Um "sim" às cegas
Para as duas jovens, verem-se envolvidas num evento desta escala trazia algumas preocupações. Era preciso saber ao que iam, o que era preciso preparar, o que tinham de fazer ao certo. Mas não foi assim: "esse mistério e esse desconhecido permaneceram nesta equipa até ao meio de julho", diz Inês.
"Desde o ano passado que começámos a fazer alguns encontros com alguma frequência, um por mês. Acho que só falhámos na altura da Páscoa, que é uma altura mais complicada. A primeira vez até foi num restaurante e o objetivo foi reunir a equipa. Apesar de sermos quase todos velhos conhecidos, havia um elemento de fora e era preciso começar a criar laços. Foi uma coisa muito de nos conhecermos, quase sem falarmos de coisas concretas". O motivo? "Não havia nada ainda a falar".
"Mas quando continuámos ao longo dos meses, havia aquela expectativa de 'é hoje que nos vão dizer alguma coisa do que vamos ter para fazer'. E nunca acontecia. A meio do jantar ou lá para o fim lá perguntávamos, mas não havia respostas. O que íamos recebendo de informação era praticamente nada ou então eram coisas que já nos tinham chegado pelas paróquias". Por isso, a sensação era só uma: "nós dizemos sim, mas sem saber a quê; dizemos sim porque queremos fazer parte, porque acreditamos".
Sara resume a situação com uma gargalhada: "foi quase passar um cheque em branco, mas a conta nunca mais vinha".
Mais tarde veio finalmente a resposta. "O padre Ricardo disse-nos que havia várias equipas da liturgia e a equipa que ele tinha reunido, juntamente com outros voluntários para nos ajudar nas tarefas, ia lidar com parte dos concelebrantes. Como havia muitos, havia aqui uma divisão entre padres, bispos, cardeais. No nosso caso, seríamos responsáveis por todos os cardeais e pelos bispos portugueses", explica Sara.
"Depois havia outra equipa para os bispos do mundo e outra para o Papa e todo o seu séquito. Aí começámos a perceber que aquela dimensão toda que inicialmente assustava começava a ganhar uma estrutura, mas também fazia com que se ganhasse mais responsabilidade, por sabermos com quem íamos estar".
No fundo, era como se existem três sacristias na Jornada Mundial da Juventude: a do Papa, a dos cardeais e bispos e a dos padres. "Num evento normal seria só uma, mas como aqui era uma grande dimensão, a ideia era ajudá-los, no momento em que chegavam, a vestir-se para as celebrações, e encaminhá-los também para os seus lugares. Além disso, acabou por haver alguns momentos em que as equipas todas se juntavam para preparar os materiais: as alfaias, as hóstias, transportar as coisas de um lado para o outro, tudo isso".
Cardeais e bispos portugueses com um "cuidado extra"
Entre tantos cardeais e bispos na JMJ, o trabalho era muito e as contas até se perdem. Inês e Sara lidaram com cerca de 60 ou 70, número que sabem pela quantidade de paramentos que viram pendurados em cinco charriots, onde se juntavam, "casula, estola, alva e cíngulo".
Mas as vestes não foram separadas da mesma maneira para todos. "A diferença maior é que, por ser a Conferência Episcopal Portuguesa, havia algum cuidado extra. Enquanto no caso dos bispos do mundo as alvas e as casulas eram dispostas de forma aleatória, na nossa equipa, cada alva, casula e mitra tinham um nome associado, principalmente a alva e a mitra, que têm dimensões específicas para cada corpo. Estavam devidamente escolhidas de forma a assentar o melhor possível em cada uma destas pessoas", exemplifica Inês.
Nas sacristias — no Parque Eduardo VII, os bispos e cardeais portugueses ficavam num parque de estacionamento subterrâneo atrás do palco, os de todo o mundo na Estufa Fria; no Parque Tejo, todos numa tenda perto do palco —, o trabalho antes das cerimónia era sempre muito. "Antecipadamente dispúnhamos o espaço, fazíamos os conjuntos e organizávamos o melhor possível para criar o menos entropia possível no momento", conta. Mas os bispos e cardeais chegavam "quase em multidão, todos misturados". Então, era preciso "perceber o seu nome e entregar os respetivos paramentos".
"A primeira coisa era olhar para a cabeça: se fosse rosa era bispo, se fosse vermelho era cardeal", completa Sara. "Também tínhamos a facilidade de quase sempre terem a credencial ao peito, assim como os peregrinos e os voluntários".
"Posso dizer que me sentia nervosa, por haver a possibilidade de tratar um por bispo e depois afinal ser um cardeal. Pensava 'ainda vou ofendê-lo, não vamos aqui criar acidentes diplomáticos'", recorda a rir.
Além disso, havia ainda um outro caso a ter atenção. Tal como D. Américo Aguiar, que ainda é bispo mas foi nomeado cardeal, outros estavam na mesma situação. "De vez em quando aparecia um ou outro com as vestes típicas de um bispo, mas que já se sentia cardeal por o Papa ter anunciado a nomeação. Então tínhamos de andar aqui a jogar com estas questões. Ninguém queria meter a pata na poça", reflete Inês.
Cardeal? "Not yet, not yet"
Todavia, a tarefa até acabou por ser facilitada. "Muitas vezes criamos esta imagem na nossa cabeça de que há todo um rol de preceitos por se lidar com um bispo ou um cardeal, imaginamos estas pessoas como alguém sempre muito sério, têm sempre um ar muito compenetrado", frisa. Mas "ali havia muita leveza naqueles rostos, havia muita acessibilidade naquelas pessoas todas".
"Fossem bispos, fossem cardeais, eram super atenciosos. Eram simpáticos para nós, não havia ali aquela cerimónia do 'eu sou bispo, agora não me venham incomodar'. Foi uma grande experiência para nós vermos todos muito agradecidos, muito contentes por estarem ali", afirma Inês.
Mesmo assim, houve tempo para episódios caricatos. "Os bispos estão muito habituados a poder escolher o lugar, a poder fazer o que lhes apetece. Então houve um bispo muito simpático que começou a ir para um dos lugares que estava definido para ser para um cardeal. Como nós estávamos alerta para o caso de haver algum bispo que estivesse na tal situação em que já tinha sido nomeado cardeal e aí já não íamos pedir para mudar de lugar, vi-o a sentar-se e fui ter com ele e perguntei se ele era cardeal, porque a linha da frente daquele setor era exclusiva para cardeais", começa por contar. "A seguir foi muito engraçado. Ficou com uma expressão muito aflita, nem me deixou acabar a explicação e começou a abanar as mãos abertas e a dizer 'not yet, not yet, not yet' [ainda não, ainda não, ainda não] e levanta-se e sai para a linha dele. Eu fiquei a rir-me sozinha e depois até partilhei com todos, que ele foi super expressivo".
Sara também conviveu com um outro bispo, brasileiro, que justificava os seus atrasos pelos hábitos antes de subir na hierarquia. "Era um capelão militar já no topo da sua carreira quando o Papa o nomeou bispo. Por ser militar, toda a vida o obrigaram a estar muito cedo nas celebrações ou onde tinha de estar, e na JMJ, como era um evento com deslocações demoradas, também tinham de estar muito cedo connosco. Então ele disse-nos que, uma vez que esteve toda a vida nessa situação de estar muito cedo nos sítios, agora como bispo tinha decidido vingar-se e era o último a aparecer e o último a sair. Íamos sempre ter com ele e dizia-nos 'eu sei, eu sei, mas eu agora vou-me vingar e atraso-me para tudo'", recorda entre risos.
Pela força dos hábitos, Inês, também a rir, recorda-se ainda de outra história: "Tive outro bispo que veio inclusive pedir desculpa em tom de brincadeira: 'peço desculpa pelos meus colegas bispos, eles não estão habituados a que mandem neles. É difícil conseguir arrumá-los e deixá-los quietos, eu sei, mas obrigado por não desistirem e desculpem'. Foi muito giro. Sabemos que, quanto mais velho se é, também mais teimoso se fica, não é?. E ali já reina tudo misturado".
Ser mulher no meio de homens
Entre tanto bispo e cardeal, voltemos à equipa de 80 pessoas. Destas, "uma boa fatia eram seminaristas. Por isso, as mulheres que lá existiam eram poucas e tinham sido convidadas por alguns dos padres que estavam a liderar estas equipas. Na nossa equipa eram três, mais duas noutra sacristia a preparar os tecidos e ainda outra. Portanto, seis mulheres. O resto eram padres, diáconos e seminaristas", enumera Inês, que confessa que, ao início, "foi estranho".
O tempo passou e habituaram-se à realidade. Mas não foi fácil. "Primeiro, a forma de comunicar deles e de quem liderava era muito focada para quem está habituado a liderar uma equipa de seminaristas e que só está a falar para homens, mas depois começámos a ser incluídas na linha de pensamento das ordens do dia".
"Uma coisa engraçada que começámos por comentar, quando recebemos informação sobre o dress code, era que vinha só pensado para homens. A primeira coisa que fiz quando vi o email foi mandar mensagem só para o grupo da nossa pequena equipa, nomeadamente para o nosso padre, a perguntar o que fazia com aquilo, porque não se adequava a mim. Ainda nos rimos. Dizia qualquer coisa como 'fato escuro, camisa branca, sem gravata'. O fato com uma camisa, sem gravata, é a típica roupa que imaginamos um seminarista usar quando vai a uma celebração, é a típica roupa de um homem quando vai a um evento", aponta.
E salienta: "as mulheres têm um guarda-roupa muito mais versátil do que tudo isso, então ficámos um bocadinho perdidas no meio daquelas indicações". Mas, "se começou com emails deste género, acabou com dress code que já incluíam dicas para as senhoras também", como "usar cores discretas, dar sempre um ar mais formal à roupa" — indicação que foi seguida, usando "o que dentro do formal pudesse ser discreto e minimamente confortável".
"Houve toda uma adaptação dos dois lados. Nós fomo-nos habituando a eles, aos ritmos deles, às rotinas deles, mas eles também se foram habituando ao facto de terem mulheres no grupo".
Com todas estas questões, Sara começou logo a traçar hipóteses. "A primeira coisa que pensei quando vi aquele dress code foi 'ok, vou-me fardar'. Toquei muitos anos numa banda filarmónica e pensei que ia buscar as fardas e levar. Mas depois foi diferente. Foi engraçado ver que, de celebração em celebração, íamos pensando no que vestir, até conforme a presença ou não do Papa. Eu e a Inês ficámos juntas a dormir na mesma casa, como se fosse uma família de acolhimento, e ao fim do dia falávamos uma com a outra para escolher o que se vestia".
"Havia uma gestão de camisas brancas, principalmente. Sabíamos da indicação da roupa escura para os homens, e então também tentámos que, nos dias em que tinha de ser uma coisa mais solene, se usasse roupa escura, para tentar criar ali uma harmonia entre toda a equipa", completa Inês.
A magia dos (vários) momentos
Por fazerem parte da equipa da liturgia, Sara e Inês acabaram por estar presentes nos ensaios que foram feitos para as cerimónias. "Nos ensaios estávamos muito mais descontraídos, estávamos brincalhões. Serviam principalmente para quem ia estar no altar. Não era o nosso caso, mas como tínhamos de conhecer o espaço, então acabávamos por participar e, para ajudar quem ia estar, nós próprias fazíamos de bispos e de cardeais. Acabava por ser uma risota e uma brincadeira", recorda Sara.
Porém, o assunto era sério — e as duas sabiam disso. "Depois, quando estávamos na cerimónia em si, tivemos a possibilidade de ficar junto dos bispos, mas ali mais discretamente, cai-nos a ficha e é uma coisa completamente diferente dos ensaios, não tem nada a ver e é super emocionante. Posso dizer que chorei baba e ranho em todas elas. Acabou tudo por me surpreender, fiquei deslumbrada, principalmente com a Via Sacra. Foi bonito, foi tocante, foi a realidade. Não foi só uma beatice. A Via Sacra de Jesus foi nossa, da nossa vida e de cada um dos jovens ali. Qualquer pessoa conseguiu sentir-se tocada naquela celebração".
Também Inês pensou que os ensaios "tirassem um pouco a magia que vem com o factor surpresa". Mas não foi assim. "Como é óbvio, nós já tínhamos noção de quais é que seriam as movimentações. Embora víssemos cada um dos ensaios, assim mais de lado e sempre com algumas funções a decorrer, toda a dinâmica que é criada e toda a energia daqueles milhares de pessoas juntas que não há no ensaio tornaram tudo muito melhor. Não deixei de me emocionar, de achar tudo incrível, de me surpreender a cada acontecimento".
De emoção fizeram-se também os encontros de perto com o Papa Francisco. Com pena, referem que não estiveram na sacristia destinada ao pontífice, mas pelo menos viram-no várias vezes.
Para Inês, estar perto foi sentir "uma energia diferente". "Uma das nossas funções era também acompanhar a comunhão dos bispos, então fui com um padre e, no altar, tive de fazer a vénia, como sempre. Na altura em que estou a fazer a minha vénia, que faço milhares de vezes sempre que vamos a uma igreja, quando levanto a cabeça e vejo que estou frente a frente com o Papa Francisco, senti assim um baque cá dentro que não tem explicação".
"Outra das situações que mexeu comigo, mas que nem teve diretamente a ver comigo, foi no fim da celebração, quando ele pediu para ficar diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima durante uns instantes. Aquele momento em que ele fica em silêncio em frente à imagem... eu, de longe, senti paz. Senti a serenidade, acho que foi um momento tão intenso de oração que era percetível à distância. Não era preciso estar ali ao pé. A calma, a serenidade, a paz do Papa Francisco naquele momento eram contagiantes", realça.
Para Sara, o momento alto foi quando conseguiram sair para ir "um bocadinho à zona em que o Papa ia passar a caminho da sacristia, no Parque Eduardo VII". "Houve alguma dificuldade. Chegavam mais carros, mais polícia e pensava que não íamos ver nada. Estava tudo com os telemóveis na mão e, quando ele passa, vira-se para o nosso lado a dizer adeus e eu tiro uma fotografia toda torta porque só pensava 'ele está a dizer-me adeus, está a dizer adeus mesmo para mim!'. Estive perto dele e não tirei uma fotografia de jeito", comenta a rir.
Inês também estava presente. "Eu nem me lembrei de tirar fotografia nenhuma. Depois mandei uma mensagem para catequistas da minha paróquia, em caps lock, a dizer 'ele disse-me adeus', com um boneco a sorrir com as lágrimas nos olhos. A vontade de o chamar, de acenar, de responder ao aceno invade-nos de tal forma que eu quis lá saber do telemóvel. Eu só queria aquele instante em que ele olha para nós e nos sorri e acena. Aquele momento ficou gravado, não foi através de um ecrã", remata.
Para a história fica ainda outro momento: "estive com a alva do Santo Padre na mão. Eu tinha a alva na mão e não sabia de quem era e, às tantas, pergunto onde era para colocar e o padre Pedro, que lá estava, olha, fixa a alva durante um instante, como se estivesse a rever a matéria que tinha guardado na cabeça, e de repente abre a boca e diz 'essa é a alva do Santo Padre'. Naquele momento acho que passou a pesar mais", conclui. Apesar disso, uma certeza comum às duas: tudo o que aconteceu durante a semana da JMJ deixou marcas. E muitas memórias, daquelas bem leves. Tal como o sorriso do Papa.
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