Em 1988, Kerstin Thomas e Bernard Langer, na altura estudantes da Universidade de Coimbra, descobriram com uns amigos, numas caminhadas pela Serra da Lousã, a aldeia de xisto da Cerdeira. Os mapas militares indicavam que a localidade estaria habitada, mas quando lá chegaram depararam-se com um lugar vazio, sobravam apenas ruínas.
Bateram a portas na zona e acabaram por conhecer quase todas as famílias proprietárias de habitações na pequena aldeia de xisto, aninhada numa encosta da serra.
Kerstin, na altura com 24 anos, procurava um lugar para instalar o seu ateliê. Não havia estrada, água ou eletricidade, mas bastaram cinco meses para se decidir a mudar para lá, com o marido.
"Queria explorar a minha capacidade de sobrevivência", contou à agência Lusa a alemã, 30 anos depois e num português perfeito, explicando que a mudança representava um desafio e “um grande sonho” que, à época, não era possível ser totalmente realizado.
A materialização do sonho veio com o tempo e pouco a pouco. Com a ajuda de amigos, foram recuperando mais casas. Ao todo, há oito famílias com casas reabilitadas na aldeia de xisto.
"Intelectuais de Coimbra iam trazendo os colegas e mantendo e conservando as casas. Uns amigos foram ficando e reabilitaram os espaços para terem cá uma casa de segunda habitação", explica.
O projeto tem por base uma ideologia sustentável e, por isso, para a recuperação das casas usaram-se as técnicas tradicionais de construção. Todos os alojamentos estão apetrechados com móveis feitos na região e obras de artistas que passaram pela aldeia, em espaços, sublinha, com todo o conforto: "Retirámos essa ideia da aldeia como espaço desconfortável e pobre", afirma a alemã, que vinca o seu otimismo em relação ao interior do país que adotou há mais de três décadas.
Um desses casais amigos são os pais de Catarina Serra, que ainda se lembra de calcorrear as pequenas ruelas da aldeia com quatro aninhos, enquanto congeminava armadilhas para os poucos turistas que por ali passavam, com os filhos de Kirsten.
Hoje, Catarina trabalha na Cerdeira e todos os anos vê o número de hóspedes a aumentar. Por ali passam visitantes dos cinco continentes e o pequeno parque de estacionamento perto da aldeia, mesmo em época baixa, está completo.
O tal sonho inicial, conta Kirsten, "era ver tudo isto reabilitado e com pessoas. Demorou 30 anos, mas acabou por se concretizar".
Ainda há uma ou outra casa por requalificar, mas, ao todo, a Cerdeira tem hoje 10 espaços de alojamento, mais biblioteca, zona de residências artísticas, espaço para ateliês e café, num projeto que alia o alojamento rural com a arte e a criatividade.
Mais tarde, em 2006, foi organizado na aldeia, pela primeira vez, o festival de artes Elementos à Solta e, em 2012, arrancou o projeto Cerdeira Village, que, em 2018, se transformou na Cerdeira – Home for Creativity.
A isso soma-se o impulso dado pelo projeto da Rede das Aldeias de Xisto e a criação de praias fluviais, que antes só as pessoas da terra conheciam.
A magia da Cerdeira offline
Foi precisamente em 2018 que a Cerdeira Home for Creativity ganhou palco lá fora com a publicação de um artigo de Trish Lorenz no The Guardian, que descreveu quatro dias de férias com a família, longe de ecrãs e da chuva de notificações do dia a dia, imersa na natureza, nas atividades existentes na aldeia.
O artigo de Lorenz começa com um prefácio sobre a decepção do filho de nove anos quando tomou conhecimento do destino de férias e termina com uma frase do mesmo: “acham que podemos voltar aqui?”. Tudo o que está no meio é um relato que merece ser lido, sobretudo pela facilidade com que tem em apanhar desprevenido qualquer português que estava longe de saber da existência daquele pequeno paraíso que nos últimos anos tem recebido turistas, artistas e até empresas, uma vez que estes oferecem programas de retiros empresariais.
"Há 30 anos não havia internet, hoje já há e isso vai ajudar muito o interior. Há pessoas que gostariam de estar nestes sítios e poderiam fazer o trabalho à distância. Antes, queria um livro e tinha que ir a Coimbra. Hoje, vou à internet e passados dois dias está na caixa do correio. Não preciso de ir ao banco ou às finanças. A internet é o fator chave. Isso é mais importante que as autoestradas. Faço muito mais quilómetros na internet do que no carro", vinca.
Apesar disso, nem sempre a internet ou a rede de telemóvel funciona na Cerdeira.
"Aqui, o tempo influencia quase tudo e natureza acaba por se manifestar. Hoje, se há nuvens, não há internet", nota Catarina Serra, que precisa só "de acertar umas contas" e de garantir que há sempre internet - trabalha ‘online' - para se mudar para a pequena aldeia onde desde os quatro anos passava fins de semana e férias.
Kirsten, que ao longo destes anos foi vendo o seu sonho ser construído, não esquece as palavras de um amigo: "As aldeias são as pessoas. Se não forem as pessoas, as aldeias ficam vazias e não têm alma".
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