Mais um comboio passara, e ele pasmado como que em transe, a olhar para a linha.
Sentou-se e ali ficou, a fitar o fundo do túnel. Observava aquele negrume e via nele a solução para todos os seus males. Não tinha mais nada a perder. Perdera nesse dia a única pessoa que o amara, e com isso a sua última réstia de esperança. Nunca ela desistira dele, apesar de todo o mal que tinha feito. Os insultos, as bebedeiras, os furtos, e por último a droga.
Sempre que se metera em apuros, ela arranjara maneira de o ajudar. Foram tantas as vezes que o arrastara para casa, depois de o encontrar caído por aí, que lhe perdera a conta. Não lho agradecera. Na verdade, o sentimento de gratidão era recente, e desconfortável. A infância não tinha sido feliz. A mãe morrera no parto e o pai culpara-o a ele. Os maus tratos só terminaram quando ela se apercebeu e o resgatou. Deu-lhe uma cama na sua pequenina casa, alimentou-o e obrigou-o a ir à escola. Fora tarde demais. Estava estragado, não tinha conserto, e só ela é que não aceitara isso.
Insultara-a, quando o afastara dos “amigos”. Odiara-a, durante a última desintoxicação forçada, em momentos de agonia. E quando regressou desse abismo, ela morreu. Desprezava-se por isso.
Disseram-lhe que tinha sido o coração, que era fraco. Não acreditava. O maior coração do mundo, fraco? Não. Fora ele que lho partira.
Olhou em volta, via as pessoas atarefadas a chegar à plataforma. Adolescentes da idade dele agarrados aos telemóveis, centrados em si mesmos. Ouviu muito barulho e olhou para trás. Miúdos a rir e a correr. Passaram por uma senhora que caminhava com dificuldade. A figura franzina e os cabelos brancos de neve provocaram-lhe um aperto no coração. Da corrida desenfreada dos miúdos, bastou um toque na bengala para que a senhora se desequilibrasse e caísse. Deu por si a levantar-se e a segurá-la para a ajudar. Um joelho sangrava, estava a tremer, e mal se segurava nas pernas. Ajudou-a a sentar e foi buscar-lhe a bengala caída. Ela agradeceu e chamou-lhe “meu querido”. Sorria apesar da dor. Disse-lhe ter um neto da sua idade, e que lhe haveria de falar do jovem educado que a ajudara, prova da existência da bondade no mundo.
O comboio aproximava-se e ela levantou-se a custo. Todos se precipitaram para as portas. Ela sozinha não iria conseguir. Deu-lhe um braço para se apoiar, com o outro manteve a porta aberta. Ela subiu, muito devagarinho. Olhou-o nos olhos, agradeceu de novo, dizendo baixinho, “deves ser o orgulho da tua avó”. Não lhe respondeu, sentia um nó na garganta e uma espécie de tontura.
A porta fechou. O comboio partiu. Com o olhar húmido e desfocado, seguiu a luz que desaparecia no fundo do túnel. Não voltaria a tentar. Tinha escolhido viver. Iria redimir-se de outra forma. Não sabia como, mas faria com que valesse a pena. Ela, a sua avó, aprovaria a decisão.
Texto por Natália Rodrigues. Hoje, Dia dos Namorados, publicamos uma seleção dos textos que resultaram da iniciativa lançada pelo SAPO24 e O Primeiro Capítulo, assinados por novos nomes de quem tem na escrita uma forma de expressão.
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