Quem tem medo de André Ventura? É certo que o debate foi entre Ana Gomes e Marisa Matias, mas o candidato do partido que tem apenas um deputado no Parlamento é o preferido da imprensa para atazanar o juízo das duas candidatas da esquerda — e, por isso, lá ficou ele (que naquela altura se estaria a preparar para o debate com Vitorino Silva) a dominar a reta final do debate entre a eurodeputada bloquista e a ex-eurodeputada socialista.
Ambas, porém, afastaram ter medo da extrema-direita e apontaram o dedo aos media por colocarem André Ventura como o inimigo. Ana Gomes afirmou que o adversário dela é “o professor Marcelo Rebelo de Sousa”, enquanto Marisa Matias reforçava que “o que faz cavalgar a política do medo é a falta de respostas” para as pessoas (ao mesmo tempo Ana Gomes acenava afirmativamente).
“Somos duas candidatas do campo democrático que vamos derrotar André Ventura”, disse ainda Marisa Matias. “Não confundo os eleitores dessas formações [de extrema-direita] com os responsáveis”, avisou Ana Gomes sobre o Chega. “Quem tem um programa que quer destruir a Constituição, que semeia o ódio, é contrário à Constituição”. Para a socialista os acordos nos Açores com a direita democrática são um “semear da insegurança” — mas sublinhou que não é o presidente da República quem ilegaliza partidos.
“O cordão sanitário tem a ver com o exercício do poder. Não aceito que possa haver um governo com um ministro que diga que os direitos das pessoas são em função da cor de pele ou do género”, descreveu por seu lado Marisa Matias. “Eu vivi em ditadura e estou a aqui para me bater até à última para que projetos autoritários não vençam. É pela democracia que nos salvaremos”, concluiu Ana Gomes, recusando depois responder a mais questões sobre André Ventura. “A democracia tem muitos problemas, muitas perversões. Mas é preciso assumi-los” para os resolver.
As candidatas sublinharam que não faz sentido estarem a debater uma com a outra para falar de uma candidatura que nada tem a ver com elas — e com quem ainda vão debater. Mesmo assim, perto de um terço do tempo foi dedicado ao líder do Chega. O debate, moderado por Clara de Sousa, no cabo da SIC Notícias, foi o segundo dos três marcados para esta segunda-feira (antes debateram Marcelo Rebelo de Sousa e João Ferreira na TVI, e, depois, André Ventura e Vitorino Silva estiveram frente a frente na RTP).
Assim foi a reta final de um debate entre ideias idênticas, ideias quase iguais, apresentadas de modo simpático. O que as separa em grande medida é o facto de Ana Gomes não ter o apoio do seu partido, seguindo independente (o PS não tem um candidato oficial), ao contrário de Marisa Matias, que vem com a bagagem do Bloco de Esquerda. Apesar disso, Ana Gomes revelou que no início do processo chegou a haver conversas em busca de uma única candidatura entre as duas.
A união não chegou. “O meu adversário direto é Marcelo Rebelo de Sousa. Ana Gomes é uma adversária do mesmo campo político que eu”, aponta Marisa Matias, sublinhando a amizade que a une à antiga eurodeputada socialista, até porque partilharam uma década em Bruxelas (em campos diferentes). “A candidatura da Marisa insere-se numa lógica do partido que ela representa. A minha candidatura é independente, não tenho o apoio da direção do meu partido”, distingue Ana Gomes, justificando assim o facto de as candidaturas coexistirem.
Ainda sobre a disputa do mesmo campo político, Marisa Matias considerou que a sua candidatura é "a que melhor representa lutas dos jovens" em áreas como o ambiente, direitos dos animais, feministas, antirracistas e de respeito”. “Temos propostas diferentes”, insiste Marisa Matias. “Acredito que num cenário em que não existe uma candidatura consensual à esquerda, temos maior mobilização. O que importa é o dia seguinte”. Até porque, Ana Gomes diz que não será por ela que não vai haver uma convergência à esquerda.
Levantaram a voz apenas quando foi para falar sobre a intervenção das Forças Armadas quer no apoio à luta contra a pandemia, quer no combate aos incêndios — mas por pouco tempo. “Aí estamos inteiramente de acordo”, disse Ana Gomes, quando Marisa Matias falava do uso dos meios de saúde privados (a preço de custo) no apoio à covid-19.
- “Não vou de maneira nenhuma inventar divergências artificiais com Ana Gomes” — Marisa Matias
- “A Marisa batalhou, mas eu também batalhei” — Ana Gomes
- “O país não precisava de uma crise política a somar à crise de saúde pública” — Ana Gomes
- “Somos duas candidatas do campo democrático que vamos derrotar André Ventura” — Marisa Matias
- “Eu vivi em ditadura e estou a aqui para me bater até à última para que projetos autoritários não vençam. É pela democracia que nos salvaremos.” — Ana Gomes
Arrancando o debate com a forma como o governo está a gerir a polémica em relação à nomeação do procurador europeu José Guerra, um tema em relação ao qual as candidatas têm posições semelhantes, Ana “Gomes defendeu que “é o primeiro-ministro que sabe" e que "avalia como é que isto sobra ou não para o Governo, como afeta a imagem do país", mostrando-se contra "a banalização de pedidos de demissão de ministros".
Na noite em que o primeiro-ministro, António Costa, manifestou "total confiança política" na ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, para a socialista este é um "caso grave", considerando que "antes de mais é preciso ouvir a ministra no Parlamento". Explicações foi o que pediu também a bloquista Marisa Matias, que criticou uma "situação vergonhosa", em relação à qual considera que é preciso esperar pela audição da ministra da Justiça no Parlamento.
O Orçamento do Estado
"Não entendo que o Bloco tenha votado contra o Orçamento do Estado e também não entendo porque é que se fosse presidente, Marisa Matias não vetaria este Orçamento do Estado. Há uma contradição entre a Marisa dirigente do Bloco e a Marisa candidata à presidência da República", atirou a socialista, uma acusação imediatamente negada pela bloquista.
A "objeção de fundo" de Ana Gomes, explicou, "é que o país não precisava de uma crise política a somar à crise da pandemia", questionando "onde é que ficavam os mais vulneráveis deste país" se Portugal tivesse "ficado à mercê de duodécimos".
Na resposta, Marisa Matias considerou incompreensível "não haver uma resposta à altura da crise" que Portugal está a viver, reiterando que as exigências do BE não eram incomportáveis, mas justas.
"Em relação ao Orçamento não há nenhuma contradição entre dizer que estas dimensões, a urgência que enfrentamos e as dificuldades, dizer que isto não é suficiente e ao mesmo tempo olhar e perceber que não sendo um Orçamento inconstitucional eu não o vetaria", retorquiu, considerando "perigoso acenar-se com uma crise putativa que tem muitas formas de não vir a ser crise". Para a eurodeputada bloquista não é preciso "um presidente que mantenha os bloqueios que já vêm do Governo em relação à resposta à crise" e deixou uma promessa: "as pessoas que votarem em mim sabem que estão a votar numa proposta precisamente que pretende contrariar esses bloqueios de Marcelo e António Costa em relação à saúde, à banca e ao trabalho".
Para diferenciar as candidaturas, Ana Gomes apontou ainda contradições da bloquista em relação ao euro e também "grandes divergências" em relação à segurança e defesa, questões que "são demasiado importantes para poderem ser deixadas à direita". Na réplica, Marisa Matias recusou-se a "inventar divergências artificiais com a Ana Gomes" nas questões europeias, assumindo-se "muito crítica em relação à arquitetura do euro" e afirmando que "o maior problema de defesa é a segurança e proteção de pessoas, dos refugiados".
Aqui, é muito mais aquilo que as une do que aquilo que as separa. Nos vários tópicos postos no debate pela moderadora, estiveram quase sempre de acordo no grande plano, ainda que em desacordo nos detalhes. Faltou tempo para perceber em concreto o que propõe fazer cada uma das candidatas caso chegue a Belém, escrutinar as respetivas propostas e entender o que as afasta num cargo onde não vão necessariamente demitir ministros ou fiscalizar partidos.
Não sendo palco para pugilato, torna-se difícil decidir um “vencedor”. Convergentes e sem se interromperem, as candidatas respeitaram tempos e tiveram uma amena conversa, procurando destacar o que as distingue. Ambas bem, ambas capazes de destacar trabalhos positivos feitos por uma e outra. Não serve isto para dizer que são a mesma candidatura, mas com caras diferentes. O fundo é distinto, sim, mas essa evidência não coube no debate, entre a conversa sobre a ministra da Justiça e o candidato André Ventura.
Talvez tenha sido um empate de ideias idênticas. Ana Gomes mais ao ataque, mas um ataque ainda assim resumido.
Uma última nota: é certo que num dia com três debates distintos, estendê-los seria ocupar tempo de antena que as televisões preferem usar para outras coisas. Porém, entre tantos temas alheios à presidência da República, torna-se complicado perceber em direto o que defendem para Belém e como vão estas candidatas assumir a presidência caso sejam capazes de derrotar Marcelo Rebelo de Sousa no próximo dia 24.
Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Gomes, Marisa Matias, Tiago Mayan, João Ferreira, André Ventura e Vitorino Silva estão na corrida a Belém.
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