
INTRODUÇÃO
«Se expressar o que habita em si, isso irá salvá‐lo.
Mas se não expressar o que habita em si, isso irá destruí‐lo.»
Jesus, Evangelho de São Tomé
Um convite, uma festa. Chego sem conhecer ninguém além da anfitriã. Pela receção calorosa dela, percebo que alguns convidados estão interessados em saber quem sou. Aproximam-se. Fico um pouco tímida nestas ocasiões e tenho dificuldade para iniciar uma conversa. Mais uns instantes e a roda amplia-se; a conversa flui. Cada um diz quem é e o que faz na vida. Observo gestos e olhares. Um instinto misteriosamente provocador surge em mim. Sorrio. Por fim, alguém pergunta:
– E você? Trabalha em quê?
– Sou médica.
– A sério?! Que máximo! Qual é a sua especialidade?
Segundos de dúvida... O que vou responder? Posso dizer que sou geriatra e a conversa vai enveredar para o rumo mais óbvio. Três ou quatro dúvidas sobre problemas de cabelo e unhas. O que eu, com a minha experiência, recomendo para retardar o envelhecimento? Talvez alguma pergunta sobre um familiar que parece senil. Desta vez, porém, quero responder algo diferente. Quero dizer o que faço; dizer ainda que o faço com muito prazer e que me realiza muito. Não quero fugir. Esta decisão interna traz-me uma inquietude e, ao mesmo tempo, uma sensação agradável de libertação.
– Eu cuido de pessoas que morrem.
Segue-se um silêncio profundo. Falar de morte numa festa é algo impensável. O clima fica tenso, e mesmo à distância, percebo olhares e pensamentos. Posso escutar a respiração das pessoas que me cercam. Algumas desviam o olhar para o chão, procurando o buraco onde gostariam de se esconder. Outras continuam a olhar-me com aquela expressão de «O quê?!», esperando que eu rapidamente emende a frase e explique que não me expressei bem.
Há algum tempo que tinha vontade de fazer isto, mas faltava-me coragem para enfrentar o abominável silêncio que, eu já imaginava, precederia qualquer comentário. Ainda assim, não me arrependi. Internamente, consolava-me e perguntava a mim mesma: «Algum dia as pessoas escolherão falar da vida por este caminho. Será que vai ser hoje?»
Então, no meio do silêncio constrangedor, alguém ganha coragem, esconde-se atrás de uma bolha sorridente e consegue fazer um comentário:
– Credo! Deve ser muito difícil!
Sorrisos forçados, novo silêncio. Em dois minutos, o grupo dispersou-se. Um afastou-se para conversar com um amigo recém-chegado, outro foi buscar uma bebida e já não voltou. Uma terceira pessoa saiu para ir à casa de banho, outra simplesmente pediu licença e desapareceu. Deve ter sido um alívio quando me despedi e fui embora antes de completar duas horas de festa. Eu também senti alívio e, ao mesmo tempo, pesar. Será que algum dia as pessoas serão capazes de desenvolver uma conversa natural e transformadora sobre a morte?
Mais de quinze anos se passaram desde esse dia em que saí do armário. Assumi a minha versão «cuido de pessoas que morrem» e, à revelia de quase todos os prognósticos da época, a conversa sobre a morte está a ganhar espaço na vida. A prova disso? Estou a escrever este livro, e há quem acredite que muita gente o vai ler.
QUEM SOU EU
«Eu tive uma namorada que via errado.
O que ela via não era uma garça à beira
de um rio. O que ela via era um rio à beira de
uma garça. Ela despraticava as normas.
Dizia que o seu avesso era mais visível do
que um poste. Com ela as coisas tinham que
mudar de comportamento. Aliás, a moça
contou‐me uma vez que tinha encontros
diários com as suas contradições.»
Manoel de Barros
Eu vejo as coisas de uma maneira que a maior parte não se permite ver. Mas tenho aproveitado várias oportunidades de captar a atenção de pessoas interessadas em mudar de posição, de ponto de vista. Algumas apenas podem mudar, outras precisam; o que nos une é o querer. Desejar ver a vida de outra forma, seguir outro caminho, pois a vida é breve e precisa de valor, sentido e significado. E a morte é um excelente motivo para procurar um novo olhar para a vida.
Com este livro, o leitor e eu começamos uma convivência na qual espero partilhar parte do tanto que tenho aprendido, a cada dia, com o meu trabalho como médica e também como ser humano que cuida de seres humanos, intensamente humanos. É importante dizer já que saber da morte de alguém não faz necessariamente com que nos tornemos parte da história dessa pessoa. Nem mesmo assistir à morte de alguém é suficiente para nos incluir no processo. Cada um de nós está presente na própria vida e na vida dos seus entes queridos. Presente não apenas fisicamente, mas presente com o tempo, com o movimento. Só nessa presença é que a morte não é o fim.
Quase toda a gente pensa que a norma é fugir da realidade da morte. Mas a verdade é que a morte é uma ponte para a vida. Despratique as normas.
PORQUE FAÇO O QUE FAÇO
«Queres ser médico, meu filho?
Essa é a aspiração de uma alma generosa,
De um espírito ávido de ciência.
Tens pensado bem no que há de ser
a tua vida?»
Esculápio
Enquanto escrevo este livro, provavelmente já passei da metade da minha vida aqui nesta Terra, e há mais de duas décadas que pratico medicina. Muitas escolhas profissionais podem levar a questionamentos, e a medicina está entre os mistérios. Por que razão a medicina? Por que motivo escolhi ser médica? Uma das razões mais mencionadas pelos que seguem este caminho é a existência de médicos na família, alguém que admiram, mas não, não há nenhum na minha. No entanto, sempre houve doença e sofrimento, desde que eu era muito pequena.
A minha avó, a quem atribuo o primeiro passo em direção a esta escolha profissional, sofria de doença arterial periférica e submeteu-se a duas amputações. Perdeu as pernas por causa de úlceras mortalmente dolorosas e gangrena. Expressava as suas dores com gritos e lágrimas. Suplicava a Deus piedade, pedindo que a levasse. Apesar de toda a limitação que a doença lhe causou, ela educou-me e cuidou de mim.
Nos piores dias, recebia a visita de um médico, o Dr. Aranha, cirurgião vascular. Lembro-me dele como uma visão quase sobrenatural, angelical. Um homem grande, de cabelos grisalhos penteados para trás cuidadosamente com Gumex, um poderoso fixador. Ele cheirava bem. Era muito alto (não sei se era mesmo alto ou se assim me parecia por eu ter apenas cinco anos) e vestia-se sempre de branco. Camisa engomada, cinto de couro gasto, mas com a fivela a brilhar. As suas mãos grandes e muito vermelhas carregavam sempre uma maleta preta pequenina. Eu acompanhava com os olhos os movimentos daquelas mãos e desejava ver tudo o que se passava no quarto da minha avó. Mas mandavam-me sempre embora. Mesmo assim, uma vez por outra esqueciam-se da porta entreaberta, e eu assistia a toda a consulta pela fresta. Ela contava-lhe sobre as dores, sobre as feridas. Ela chorava. Ele consolava-a e segurava-lhe as mãos. Cabia todo o sofrimento dela dentro daquelas mãos enormes. Em seguida, ele abria a caixa de primeiros socorros e explicava os novos tratamentos à minha mãe. Deixava a receita, passava-me a mão na cabeça e sorria.
– O que queres ser quando fores grande?
– Médica.
A VIDA É FEITA DE HISTÓRIAS – O QUE FIZ EU COM A MINHA?
«Chegou o momento de aceitar plenamente
a misteriosa vida dos que um dia vão morrer.»
Clarice Lispector
O Dr. Aranha era para mim o ser mais poderoso e misterioso do mundo. Depois de atender a minha avó, ele ficava sempre um pouco mais. Entre cafés, biscoitos e bolo de laranja, seguia com algumas conversas mais amenas, gesticulando com as suas mãos enormes diante dos meus pequenos olhos atentos. Na altura de sair, beijava-me a testa e fazia crescer em mim a vontade de beijar testas também. Quando ia embora, deixava um rasto de paz. Era impressionante como a minha avó melhorava só de o ver. A minha mãe voltava a sorrir, cheia de esperança na nova receita.
A vida continuava, mas, entre altos e baixos, o curso natural da doença levou à amputação das pernas. A esperança de a dor passar com a amputação também acabou rapidamente: ela persistia. Diagnóstico aterrorizante para uma criança: a minha avó tinha uma dor fantasma. Dor fantasma... Teria sido possível exorcizá-la? Mandar a dor fantasma seguir o seu caminho evolutivo? Tirá-la do purgatório e libertá-la rumo ao céu das dores? Ou poderíamos condená-la ao inferno, onde ficaria para toda a eternidade e nunca mais amedrontaria ninguém por aqui?
O que fiz eu, ainda viva, para combater uma dor fantasma? Rezar não adiantou.
Amputei as pernas finas ou gordas de todas as minhas bonecas. Nenhuma escapou ao destino cruel da semelhança. Só a Rosinha, que viera de fábrica com as pernas cruzadas, como um Buda, ficou inteira. Hoje ainda me pergunto: a escolha de manter a posição sentada protege-nos de andar e de perder as pernas no caminho? Mas a Rosinha ganhou marcas «cirúrgicas» de caneta, só para me lembrar de que, mesmo que eu queira manter-me sentada, a vida deixará as suas marcas. Então, aos sete anos, eu já tinha uma enfermaria para amenizar a dor das bonecas. No meu hospital ninguém sentia dores. Entre um remédio e outro, eu punha-as sentadinhas e ensinava-lhes o que aprendia na escola. A minha avó divertia-se com as cenas e perguntava:
– Mudaste de ideias? Vais ser professora?
– Vou ser as duas coisas, avó! Quando a dor delas passa, elas querem aprender!
A minha avó ria e dizia que queria ser tratada no meu hospital. E eu prometia que cuidaria dela e que ela nunca mais sentiria dor. Perguntava-lhe também se, depois de a dor passar, ia querer ter aulas. Ela respondia que sim.
– Ensinas-me a ler?
– Claro que sim, avozinha!
Ela sorria. Devia achar bonita a minha certeza de criança. Aos 18 anos entrei na USP. No início era difícil acreditar que estava a tirar o curso de Medicina, pois as primeiras disciplinas são muito teóricas – bioquímica, biofísica, histologia, embriologia. De vida humana, só a morte, nas aulas de anatomia. Lembro-me muito bem da primeira: na sala enorme, muitas mesas com pedaços de gente morta. Cadáveres. Achei que teria medo, mas eram tão diferentes e estranhos que ignorei os gritos e segredinhos assustados das minhas colegas de turma. Procurei um rosto e encontrei o cadáver de alguém que parecia jovem. A expressão era de puro êxtase. Comentei para uma colega ao lado:
– Olha a cara dele! Deve ter morrido a ver algo lindo.
Ela encolheu-se e olhou-me como quem olha para um ET:
– Tu és muito estranha...
Naquela sala, tentava contar a mim mesma as histórias possíveis de cada rosto das «peças» de estudo. Cada vez mais era olhada como se fosse um ET e parecia mais «estranha» a cada dia. No final do terceiro ano, aprendi a fazer anamnese, termo que descreve o momento em que o médico entrevista o paciente. Achei que o guia detalhado que ensinava os estudantes a conversar com uma pessoa doente me conduziria por caminhos seguros.
Puro engano, como descobri logo na primeira vez. Num sorteio de casos na enfermaria de clínica médica do hospital universitário, conheci o Sr. António. O professor já me havia relatado os principais factos a respeito do paciente que eu entrevistaria: homem, casado, alcoólico, fumador, dois filhos, com cirrose hepática, cancro no fígado e hepatite B; estava em fase terminal. Naquele tempo, as portas dos quartos tinham um quadradinho de vidro e podíamos espiar por ele sem precisarmos de as abrir. Lembro-me de ter ficado bastante tempo ali, diante da janelinha. O meu coração quase saía pela boca por causa da emoção de conversar pela primeira vez com um paciente de história tão complexa. O que eu não imaginava era o que esse encontro iria desencadear de descobertas, medos, culpas e tormentas insondáveis dentro de mim.
Entrei no quarto a sentir um profundo respeito e temor. O Sr. António estava sentado numa cadeira de ferro esmaltada e descascada, em frente à janela, olhando lá para fora. Era uma imagem assustadora: muito magro, mas com uma barriga enorme. Uma grande aranha de quatro membros. Tinha a pele amarelo-escura, o rosto sulcado de rugas profundas. Tinha hematomas pelo corpo inteiro, como se tivesse apanhado tareias.
Recebeu-me com um aceno de cabeça e um sorriso educado desdentado. Apresentei-me e perguntei se podíamos conversar um pouco.
Ele foi para a cama. Com muita dificuldade subiu os degraus da escadinha e deitou-se lentamente. Comecei a penosa entrevista em busca de pormenores do passado: quando andou, quando falou, as doenças da infância, os antecedentes familiares...
A história da moléstia atual. A sua queixa principal era a dor na barriga, do lado direito, abaixo das costelas. Disse que tinha a barriga muito grande e isso lhe dificultava a respiração. À noite sentia muito medo e a dor piorava. E, com a piora da dor, o medo aumentava. Tinha medo de ficar sozinho, de estar sozinho na hora da morte. E tinha igualmente medo de não acordar de manhã. Com os olhos a escorrer lágrimas, disse que merecia tudo isso. Tinha sido um homem muito mau na vida, e a sua mulher dizia que Deus o estava a castigar. Ele achava que ela tinha razão. E cada vez crescia mais o abismo entre o que ele dizia e o que eu queria dizer. A cada instante apercebia-me, mais e mais, de como era impossível dizer qualquer coisa perante tanto sofrimento. Fui ficando enroscada em silêncio e decidi que tinha chegado o momento de o examinar, mas não me foi possível. Não conseguia tocar naquele corpo; naquele momento, quem tinha medo era eu. Surgiu-me uma fantasia: se eu o tocasse, poderia sentir a dor dele. Ao mesmo tempo, havia o medo de lhe causar mais dor. Fui procurar ajuda.
Primeiro tentei o posto de enfermagem. A enfermeira do andar mal levantou os olhos das suas anotações quando perguntei se podia aumentar a medicação para atenuar a dor do paciente.
– Ele acabou de tomar dipirona. Tem de esperar que faça efeito.
– Mas ele ainda está com dores! E já foi há mais de uma hora que lhe deram a medicação – respondi.
– Não há mais nada a fazer a não ser esperar a próxima dose, daqui a cinco horas – disse ela.
– Mas e agora...? Ele vai ficar com dores este tempo todo? Como é que não há nada a fazer?!
– Minha querida – retorquiu ela, em tom irónico –, no dia em que fores médica, vais poder dar mais medicamentos. Já falei com o médico de serviço e tentei convencê-lo a sedar o paciente. O Sr. António precisa de morrer depressa.
– Morrer? Mas porque não pode ele ter menos dor antes de morrer?
A enfermeira baixou os olhos e a sua atenção desapareceu no meio da papelada à sua frente. Percebi que não adiantava insistir com ela e fui atrás do meu professor. Encontrei-o na sala dos médicos, a tomar café com outros professores. Disse-lhe que precisava de dar um analgésico ao paciente antes de continuar o exame, pois ele sentia muitas dores. Fui repreendida; afinal já fora informada de que se tratava de um paciente terminal, e não havia nada a fazer por ele. Compreendi então o que era morrer de uma doença incurável num hospital: todo o sofrimento do mundo numa pessoa só, e todas as vozes terríveis a ecoar: «Não há nada a fazer... Não há nada a fazer...»
Até ao primeiro semestre do quarto ano, deparei com muitas mortes, previstas ou imprevistas. Crianças com doenças graves e mortes violentas, jovens com sida e cancro, e muitos idosos consumidos por anos e anos de sofrimento causado por doenças crónicas e debilitantes. Muitos eu vi morrer sozinhos na maca à porta das Urgências. Cada vez que isso acontecia, fortalecia-se a minha certeza de que não ia ser possível continuar.
Suspendi a faculdade a meio do quarto ano do curso.
A crise foi grave, pois em casa também enfrentava muitos problemas de saúde com os meus familiares e sérias dificuldades financeiras. A situação doméstica ofereceu-me uma boa desculpa para deixar a faculdade: teria de trabalhar. Porém, fiquei dois meses em casa, sem sair para nada, sem saber o que ia fazer da vida. Tive uma pneumonia grave, mas recusei o internamento. Foi a primeira vez que desejei realmente morrer.
Passada a fase mais difícil, fui trabalhar num grande armazém. A cada dia, no entanto, ficava mais ansiosa em relação à minha vocação. Havia o chamamento da medicina, mas não sabia como acolhê-lo. O tempo foi passando e fui-me distanciando de todo aquele mundo de horrores das vidas abandonadas que esperavam a morte no hospital. Mas o chamamento persistia no meu coração e não consegui silenciá-lo. Talvez eu não tivesse talento, mas decidi que devia insistir. Quem sabe não me habituaria a tudo aquilo, como todos os outros se habituam...?
Decidi voltar para a faculdade e trabalhar como voluntária numa maternidade dos arredores. Passava madrugadas a massajar as costas das parturientes que urravam de dor e não tinham escolha: naquele tempo, o governo não autorizava anestesia para parto normal, então o único remédio era sofrer. Cheguei a pensar que, finalmente, tinha encontrado uma forma de ser médica sem ter de lidar com tanto sofrimento desnecessário. Eu sabia que a dor daquelas mulheres iria passar, e a alegria de conhecerem os filhos traria muito sentido àqueles momentos difíceis. Como Nietzsche, eu também acreditava que o Homem tolera qualquer «como» se tiver um «porquê».
Um ano depois, terminei o quarto ano sem grandes sofrimentos com os pacientes vivos. O encanto veio de algo nunca antes por mim pensado: adorei o curso de medicina legal. Naquele tempo, acompanhávamos as autópsias no Serviço de Verificação de Óbitos e no IML. Havia as reuniões anatomoclínicas, nas quais se apresentava o caso de um paciente e vários médicos discutiam as hipóteses diagnósticas. No final, vinha o patologista, que expunha os achados da autópsia; estes, por sua vez, esclareciam o motivo da morte. No quinto ano, comecei a fazer banco e o meu primeiro estágio foi na obstetrícia. Como já tinha a experiência de fazer partos na outra maternidade, foi muito proveitoso. Tive a certeza de que a minha paixão era mesmo a medicina.
Durante a faculdade, quando via alguém a morrer em grande sofrimento (e, num hospital, isso acontece quase sempre), eu perguntava o que era possível fazer, e todos diziam: nada. Não ficava convencida. Esse «nada» ficava-me engasgado no peito, chegava a doer fisicamente. Eu chorava quase sempre. Chorava de raiva, de frustração, de compaixão. O que é que queriam dizer com «nada»? Não me conformava que os médicos não se importassem com tamanha incompetência. Não em relação a evitar a morte, porque ninguém vive eternamente... mas porque abandonavam o paciente e a família? Por que razão o sedavam, deixando-o incomunicável? Havia uma distância muito grande entre o que eu precisava de aprender e o que aprendia.
Não demorou que começassem a gozar comigo, a médica que não aguentava ver os pacientes doentes. É possível? Simplesmente não. Escondi-me do mundo no departamento fotográfico da faculdade. Atrás da câmara ninguém vê lágrimas. Ninguém percebe o coração do fotógrafo até que ele mostre as suas fotos. Do lugar onde eu estava, podia ver coisas que os outros não viam, mas ainda era muito cedo para dizer o que era verdade para mim. Calei-me e prossegui.
No seu livro Mortais, Atul Gawande, cirurgião e escritor americano, diz: «Aprendi muitas coisas na faculdade de Medicina. A mortalidade não foi uma delas.»
Na faculdade não se fala sobre a morte, sobre como é morrer. Não se discute como cuidar de uma pessoa na fase final de uma doença grave e incurável. Os professores fugiam das minhas perguntas, e alguns chegaram a dizer que eu devia fazer alguma especialidade que envolvesse pouco ou nenhum contacto com pacientes. Diziam que eu era demasiado sensível e que não seria capaz de cuidar de ninguém sem sofrer tanto como essa pessoa, ou mais. O final do curso foi, sem dúvida, o período mais difícil da minha vida. No fim, escolhi geriatria. Pensei que, se cuidasse de pessoas mais velhas, talvez viesse a encarar a morte de uma maneira mais fisiológica e natural.
Mas as primeiras respostas só vieram quando uma enfermeira me deu de presente o livro Sobre a Morte e o Morrer, de Elisabeth Kübler-Ross, psiquiatra suíça radicada nos Estados Unidos. Nele, a autora transcreve as experiências dos seus pacientes perante o fim da vida e o seu desejo de se aproximar deles para os ajudar nos momentos finais. Devorei-o numa noite e, no dia seguinte, aquela dor engasgada no peito aliviou. Consegui sorrir. Prometi a mim mesma: «Eu vou saber o que fazer.»
Depois começaram os serviços nas Urgências, altura em que tinha mais autonomia para pensar e agir. Era mais fácil, pois já compreendia o processo das doenças, sentia mais tranquilidade e percebia que dar atenção aos pacientes fazia com que melhorassem mais depressa. Gostava imenso de conversar com eles e saber das suas vidas para lá das doenças.
Gosto de cavar as
histórias como quem
procura tesouros.
E encontro‐os sempre.
CUIDAR DE QUEM CUIDA
«Ama o próximo como a ti mesmo.»
Jesus, o Cristo
Muito antes de assumir o meu destino publicamente, tenho vivido, ao longo da minha história como médica, de maneira coerente com o meu propósito ousado: cuidar de pessoas que morrem. Gosto de cuidar das que estão mais conscientes da sua morte. O sofrimento que paira sobre essa etapa da vida humana clama por cuidados. Dedico muito tempo da minha vida a estudar Cuidados Paliativos. A assistência integral, multidimensional que a medicina pode propor a um paciente às voltas com uma doença grave, incurável e que ameaça a continuidade da sua vida tem sido o foco da minha trajetória profissional. Vou mais longe: a minha vida ficou plena de sentido quando descobri que tão importante como cuidar do outro é cuidar de nós próprios.
Mas, como todos os profissionais de saúde, em especial os médicos, por um bom período de tempo não dei importância a essa valiosa informação. Parece que cai bem socialmente dizer que não houve tempo para almoçar, não houve tempo para dormir, não houve tempo para fazer exercício, rir, chorar – ou seja, que não se teve tempo de viver. A dedicação ao trabalho parece estar ligada ao reconhecimento social, a uma forma torta de se sentir importante e valorizado; tudo à sua volta tem a obrigação de entender que o mundo só pode girar se você estiver a empurrar. Três bipes, dois telemóveis, estar de banco aos fins de semana...
Eu tinha dificuldades financeiras; precisava de ajudar os meus pais e as minhas irmãs no sustento da casa. Como assistente de uma equipa de oncologistas, trabalhei assim, incansavelmente, durante cinco anos.
No último ano com o grupo, já reconhecida pelo meu estudo sobre Cuidados Paliativos, pelo meu dom de empatia e pelo meu comprometimento, acompanhava muitos pacientes em assistência domiciliar, indicada pelos meus chefes. Eram pessoas já em fases muito avançadas do cancro; sem possibilidade de cura ou controlo, recebiam tais cuidados em casa.
As experiências com as equipas de assistência domiciliar variavam entre más e péssimas, pois os profissionais envolvidos nem faziam ideia do que seriam os Cuidados Paliativos. O desgaste era de loucos. Até que chegou à minha vida um rapaz de 23 anos, Marcelo, com diagnóstico de cancro de intestino. A doença, agressiva, não respondeu ao tratamento oncológico. Na ocasião da alta hospitalar, a mãe exigiu que fosse eu a dar continuidade aos cuidados em casa. Ela tinha noção do estado terminal do filho e queria estar junto dele na casa da família. Era também o desejo do jovem. Aceitei, lisonjeada.
Primeira visita: dor. Controlada em poucos dias, deu lugar à sonolência. A doença avançou para o fígado; ele alucinava e gritava de medo. Numa sexta-feira, noite de chuva forte em São Paulo, chego a casa deles e vejo o abdómen de Marcelo deformado pelas massas tumorais. Ele vomita uma, duas, três vezes. Sangue e fezes misturam-se no quarto. Cheira a morte. Ele grita. Quando me vê, estende os braços na minha direção e sorri. Volta a gritar, e os seus olhos refletem medo – o maior medo que eu já presenciei. A técnica de enfermagem está apavorada. Na sala, a mãe e a avó amparam-se entre mantras e incensos. O cheiro é insuportável. Sangue, fezes, incenso, medo. Morte.
Abro a mala de emergência que pedi para os momentos finais. Dentro dela, tudo o que encontro são ampolas de medicamentos para reanimação. Preciso de morfina. Para ele, para mim, para todos. Algo que possa sedar tamanha dor e tamanha impotência. Peço os medicamentos ao hospital, mas precisamos de esperar que cheguem. A mãe não quer levá-lo para lá. Prometeu-lhe que trataria de tudo em casa. Ele suplica: «Ajude-me!» Espero quase quatro horas pela morfina. A técnica de enfermagem treme e não consegue preparar a medicação. Sou eu quem prepara, aplica, espera, consola. Ele adormece. A paz reina na casa, a mãe abraça-me e agradece. Não sei quem sou nesse dia. Entro no carro, a chuva cai torrencial. Choro. Torrencialmente caem as minhas lágrimas, mas a chuva abafa o som do meu choro. Ela cai sobre tudo. Toca o telefone, é a técnica de enfermagem: «Dra. Ana? Acho que o Marcelo partiu.» Tenho de voltar para fazer o atestado de óbito. Será que sobrevivo a isto? A morte chegou durante a paz. Vejo a noite. Olho o céu. Parou de chover.
Durante a madrugada, sono agitado. Grito no pesadelo, revivendo a cena e ouvindo: «Ajude-me!» Acordo. Vou à casa de banho lavar a cara e, quando me olho ao espelho, vejo o Marcelo. Meu Deus, estou a alucinar... Ou será que ainda estou a sonhar? Ligo para a minha terapeuta, peço socorro, choro, suplico: «Não aguento mais! Não quero ver mais nenhum paciente! Já não quero ser médica!»
Fiquei afastada por 42 dias. Sem telemóvel, sem pager. Regressei e pedi a demissão. Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Muitos cafés, muitos chás, muitas conversas, especialmente com a Cris, minha terapeuta naquela época. Fui encontrando explicações para o que tinha acontecido comigo: fadiga de compaixão. Fiz o meu diagnóstico retroativo em relação à morte de Marcelo: stresse pós-traumático secundário. Agudo, intenso. A fadiga de compaixão ou stresse pós-traumático secundário ocorre preferencialmente com profissionais de saúde ou voluntários que têm como principal ferramenta de ajuda a empatia. Com pessoas que lidam com tanto sofrimento que acabam por incorporar a dor que não lhes pertence. E ali estava eu, vivendo a maior dor da minha carreira, resultado do meu melhor dom: a empatia. Ironia? E agora? Muitas perguntas ainda estavam sem resposta. E a mais dolorosa era: como lido com a dor do outro sem a tornar minha?
Na terapia, encontrei mais abismos do que pontes. Muitas e muitas vezes me senti sem horizontes, temendo a altura desses penhascos todos. Para onde quer que me voltasse havia sempre um desafio, algo pendente. E agora? Para quê tudo isto?
1 de março de 2006
Um dia tenso. Chego ao hospital antes das sete horas e quatro pacientes internados no andar já esperam a minha visita. Não tive tempo de conversar com o médico que passou na véspera e estou atrasada. Impressionante como alguém que se levanta da cama exausta consegue já estar atrasada às sete da manhã. Preciso de ler os prontuários e perceber o que ocorreu nas últimas vinte e quatro horas. A letra do colega não ajuda. Fico irritada. Dói‐me o estômago. Penso que devia parar de tomar tanto café.
Entro no primeiro quarto: mulher, 39 anos, divorciada. Um filho adolescente ainda dorme profundamente no sofá de acompanhante. A mulher geme. Tem cancro do pulmão com metástases. Não era fumadora. A dor mantém‐se muito intensa, apesar de utilizar uma bomba de morfina há três dias. Tem sido difícil encontrar a dose ideal do analgésico, pois ela é muito sensível aos efeitos secundários. Por um instante, olho para a cena de um ponto de vista novo. Observo a mulher e, de repente, transformei‐me nela. Apanho um susto enorme, sinto o coração com uma palpitação extremamente desconfortável. Eu de novo com palpitações? Será que estou com arritmia? Deve ser mesmo do café... As falhas nos batimentos assustam‐me. Observo de novo e reconheço a paciente. Meu Deus, será que estou a alucinar? Penso que devia parar de tomar medicamentos para dormir, mesmo que seja um simples anti‐histamínico... Está a começar a tornar‐se rotina: insónia quase todas as noites. Na verdade, passo quatro noites em claro, e na quinta, exaurida, caio em sono profundo. Então acordo perto das três da manhã e não durmo mais. Taquicardia. Há algum problema com o meu coração. Deve ser o café.
«Haverá outra maneira
de se salvar?
Sem ser a criar
as próprias realidades?»
Clarice Lispector
6 de março de 2006
Repenso a terapia. Nada faz muito sentido. Palpitações. De novo. Preciso de respirar. Parece que não saio do lugar, embora não consiga parar para nada. Estou cansada só de falar dos problemas. Tento meditar há quase três meses, mas o resultado é zero. Todos os meus resultados são iguais a zero. O mundo está cinza há algum tempo e limito‐me a viver em modo automático. São quatro da manhã e só consigo fazer balanços. Dói‐me o estômago. Adormeço. Como é bom dormir! Quase dez minutos e o telemóvel toca: «Dra. Ana? O Sr. Fulano chegou aqui às Urgências. A família quer saber a que horas a senhora vem avaliá‐lo.» Olho para o relógio: seis e meia da manhã. Já estou a ir, já estou a ir...
Estou a ir para a caverna. Hoje tenho uma dor nova: lombar. Lateja, mal consigo ficar sentada. Tenho de andar. A vida está a mandar: «Anda!»
8 de março de 2006
«Olá, Aninha, querida! Vens aqui na celebração do Dia da Mulher, não é, meu amor?»
Aquele era o Dia da Mulher, mas a comemoração na Associação Paulista de Medicina só ocorreria dali a dois dias. Queria tanto saber dizer: «Não, minha querida, não vou de maneira nenhuma.» Mas não sei. E respondo que sim. Claro que vou. Será durante a semana, num dia no qual vou precisar de um clone para fazer tudo o que prometi fazer. As palpitações têm aumentado. Só de pensar no que estou para fazer o coração parece que me vai sair pela boca. O estômago ferve como um vulcão. A lombar lateja. Tenho tanto desconforto físico que me distraio dos pesares da alma. Vou parar com a terapia. É muito cara e estou cheia de dívidas. Continuo a ajudar a família; não consegui recusar. Não recuso nada, estou sempre muito disponível para ajudar. E ajudo.
9 de março de 2006
Visita médica. A mulher de 39 anos agoniza. Está em processo ativo de morte. O ex‐marido vem visitá‐la. Converso com ele no corredor do hospital. O sofrimento está perto de terminar. O filho permanece sentado no sofá da sala de espera, a olhar para o chão abismal sob os seus pés. Os ténis rasgados. Uma pequena poça de lágrimas ao lado do cordão desapertado. A cena dói‐me tanto dentro do peito que chego a cambalear. Dói‐me também o estômago. Deve ser o café que preciso de cortar. Deve ser a terapia que está muito cara. Devem ser as minhas dívidas, que não consigo pagar. Sim, deve ser a insónia. Algo se passa com o meu coração.
10 de março de 2006
Vou à comemoração do Dia da Mulher na Associação Paulista de Medicina. Muitas mensagens no telemóvel de pessoas que me admiram e me dão os parabéns. As mulheres são multifacetadas mas eu estou curvada. A dor lombar está mais forte do que é habitual.
Prometi à Iraci, a pessoa que organiza os eventos, que iria, e não posso desiludi‐la. Não posso desiludir ninguém. E arranjei um pro‐ grama ótimo para a hora de ponta da cidade: estar no meio da confusão.
Chego um pouco atrasada, mas o evento também atrasou. Não há lugares sentados, fico num canto da escada de acesso lateral. A minha lombar vai bloquear hoje – é o pensamento que não me sai da cabeça. Terminam as homenagens, os meus pensamentos vagueiam. Começa a apresentação da gala desta noite, «Gandhi, um líder servidor».
O ator é genial. Como pode alguém transformar‐se tanto ao interpretar um papel? Divago sobre os papéis que ando a desempenhar e sobre como me tenho saído mal. Não sou boa mãe, não sou boa esposa. Tenho‐me esforçado muito para ser boa médica, mas começo a duvidar do que faço. Conversar com os amigos irrita‐me, pois têm todos as mesmas queixas há anos. Porque é que as pessoas não mudam? Por que razão não mudo eu? De vida, de cabelo, de país, de planeta? Exausta, sinto a dor forte na lombar mas não me mexo. Mereço a companhia dessa dor.
«Uma mãe levou o filho até Mahatma Gandhi e implorou‐lhe:
– Por favor, Mahatma, diga ao meu filho para não comer mais açúcar...
Depois de uma pausa, Gandhi pediu à mãe:
– Traga o seu filho de volta daqui a duas semanas.
Duas semanas depois, ela voltou com o filho.
Gandhi olhou profundamente os olhos do rapaz e disse‐lhe:
– Não comas açúcar...
Agradecida, porém perplexa, a mulher perguntou:
– Porque me pediu duas semanas? Podia ter‐lhe dito a mesma coisa antes!
E Gandhi respondeu:
– Há duas semanas, eu estava a comer açúcar.»
A peça termina, e eu não consigo aplaudir. Fico em pé, olhando para Gandhi com a minha alma nua. Uma epifania; definitivamente, uma epifania. Compreendi naquele momento o que estava para ser o grande passo da minha carreira, da minha vida. Naquele dia, dei‐me conta de que a maior resposta que eu procurava tinha chegado: todo o trabalho de cuidar das pessoas na sua integralidade humana só poderia fazer sentido se, em primeiro lugar, eu me dedicasse a cuidar de mim mesma e da minha vida. Lembrei‐me dos meus tempos de igreja. Lembrei‐me de um ensinamento importante de Jesus: «Ama o teu próximo como a ti mesmo.» E cheguei à conclusão de que tudo o que estava a fazer pelos meus pacientes, pela minha família, pelos meus amigos era uma imensa, enorme, pesada e insuportável hipocrisia. Nesse dia, fui invadida por uma força e uma paz que eu nunca imaginei que morassem em mim. Desse dia em diante eu teria a certeza de estar no caminho certo: posso cuidar do sofrimento do outro porque estou a cuidar do meu.
CUIDADOS PALIATIVOS – O QUE SÃO?
«Os Cuidados Paliativos consistem na assistência,
promovida por uma equipa multidisciplinar,
que objetiva a melhoria da qualidade de vida
do paciente e dos seus familiares perante
uma doença que ameace a vida,
por meio da prevenção e do alívio
do sofrimento, da identificação precoce,
da boa avaliação e do tratamento da dor
e demais sintomas físicos, sociais,
psicológicos e espirituais.»
Organização Mundial da saúde, 2002
O sofrimento de perceber a nossa mortalidade não começa somente no processo de morrer. Esse assombro já está presente na possibilidade de um diagnóstico, quando estamos apenas na expectativa de receber o resultado de um exame, por exemplo. O percurso entre a certeza do diagnóstico de uma doença grave, que ameaça a continuidade da vida, e a morte é acompanhado de sofrimento. Sendo a doença uma interpretação de um conjunto de sinais e sintomas associados a exames de laboratório ou de imagem, entendo que ela pode ser algo comum a muitos indivíduos, até com resultados quase idênticos. Existem milhares de pessoas com cancro.
O sofrimento, porém, é algo absoluto, único. Totalmente individual. Podemos ver as doenças repetirem-se no nosso dia a dia como profissionais de saúde, mas o sofrimento nunca se repete. Mesmo que o tratamento ofereça alívio para a dor, a experiência da dor passa por mecanismos próprios de expressão, perceção e comportamento. Cada dor é única. Cada ser humano é único. Mesmo em gémeos idênticos, com o mesmo ADN, temos expressões de sofrimento absolutamente diferentes.
Perante o diagnóstico de uma doença grave, as pessoas entram em sofrimento. A morte anunciada traz a possibilidade de um encontro veloz com o sentido da vida, mas traz também a angústia de talvez não ter tempo suficiente para vivenciar esse encontro. Os Cuidados Paliativos oferecem, então, não apenas a possibilidade de suspender tratamentos considerados fúteis, mas também a realidade tangível de ampliação da assistência oferecida por uma equipa que pode cuidar dos sofrimentos físicos, dos sintomas de progressão da doença ou das sequelas dos tratamentos agressivos que foram necessários para tratar ou controlar a doença grave e incurável. O sofrimento emocional é muito intenso. Nele, o doente toma consciência da sua mortalidade. E essa consciência leva-o em busca do sentido da sua existência.
Digo sempre que a medicina é fácil. Chega a ser até simples demais perante a complexidade do mundo da psicologia. No exame físico, consigo avaliar quase todos os órgãos internos de um paciente. Com alguns exames laboratoriais e de imagem, posso deduzir com muita precisão o funcionamento dos sistemas vitais. Mas, observando um ser humano, seja ele quem for, não consigo saber onde fica a sua paz. Ou quanta culpa corre nas suas veias, junto com o seu colesterol. Ou quanto medo há nos seus pensamentos, ou mesmo se estão intoxicados de solidão e abandono.
Perante uma doença grave e de caminho inexorável em direção à morte, a família também adoece. O contexto de desintegração ou de fortalecimento dos laços afetivos permeia, muitas vezes, fases difíceis da doença física de um dos seus membros. A depender do espaço que essa pessoa doente ocupa na família, temos momentos de grande fragilidade de todos os que estão ligados por laços afetivos, bons ou maus, fáceis ou difíceis, de amor ou de tolerância, até mesmo de ódio. As consequências da experiência de doença alcançam todos, e a rede de apoio do paciente pode ajudar ou dificultar esse momento da vida.
E ainda temos a dimensão espiritual do ser humano que adoece. Em geral, nesse momento de clara consciência da finitude, essa dimensão ganha uma voz que nunca teve antes. Existe aí um risco grande: de que a dimensão espiritual mal estruturada, construída sobre relações de custo e benefício com Deus ou com o Sagrado, caia em ruínas diante da constatação de que nada vai adiar o Grande Encontro, o Fim, a Morte. Muitas vezes, a dor maior é a de se sentir abandonado por um Deus que não se submeteu às nossas vontades e simplesmente desapareceu da nossa vida num momento tão difícil e de tanto sofrimento.
Os Cuidados Paliativos podem ser úteis em qualquer fase da doença, mas a sua necessidade e o seu valor ficam muito mais claros quando a progressão atinge níveis elevados de sofrimento físico e a medicina nada mais tem a oferecer. Fecha-se, assim, o prognóstico e anuncia-se a proximidade da morte. Os médicos profetizam: «Não há mais nada a fazer.» Mas eu descobri que isso não é verdade. Pode não haver tratamentos disponíveis para a doença, mas há muito mais a fazer pela pessoa que tem a doença.
A minha procura pelo conhecimento a respeito de como cuidar das pessoas com doenças graves e incuráveis, em todas as suas dimensões, especialmente quando se aproximam do fim da vida, sempre foi fruto de muito empenho e teimosia (hoje dizem-me que não sou teimosa, sou «determinada»). Teimosia ou determinação dizem respeito à mesma energia, mas só são identificadas no fim da história. Se correu mal, era teimosia. Se correu bem, era determinação.
Movida por essa energia, deparei muitas vezes com mais perguntas do que respostas. Vejo a importância do meu trabalho para os pacientes que precisam desses cuidados. Não posso classificar como boa ou má a opção de ser encaminhado para Cuidados Paliativos, mas vejo-a como absolutamente necessária para viabilizar uma boa qualidade de vida na finitude humana. Se um dia formos diagnosticados com uma doença terminal, a única coisa de que poderemos ter a certeza é: um sofrimento insuportável aguarda-nos. Ter alguém que se importe com o nosso sofrimento no fim da vida é uma dessas coisas que trazem muita paz e conforto para quem está a morrer e para os seus familiares.
Trabalhar com a morte faz parte da minha profissão de médica na maior parte dos dias. Penso que os médicos deviam ser preparados para nunca abandonar os seus pacientes, mas na faculdade aprendemos apenas a não abandonar as suas doenças. Quando não há mais tratamentos para a doença, é como se não tivéssemos condições de estar ao lado do paciente. O momento em que a doença se torna incurável traz-nos uma horrível sensação de impotência, de incapacidade. O médico que foi treinado sob o conceito ilusório de ter poder sobre a morte está condenado a sentir-se fracassado em vários momentos da carreira. A infelicidade é uma presença constante na vida do médico que só aprendeu sobre doenças. Já aquele médico que procura o conhecimento sobre «cuidar» com o mesmo empenho e dedicação que leva para o «curar» é um ser humano em permanente realização.
Não cuido da morte em catástrofes ou em atendimentos de emergência. Observo os meus pacientes um a um, no dia a dia da trajetória das suas doenças. Como sou geriatra, muitas vezes tenho a oportunidade de ser a médica que cuida deles desde o início da jornada do envelhecimento, e isso para mim é um tremendo privilégio. Como os acompanho e os vejo como seres humanos únicos, que vivenciam o seu sofrimento de maneira única, não posso abrir mão da preparação que essa versão de cuidados exige. E preciso de me preparar sempre. A dedicação à minha formação técnico-científica continuada, à minha humanidade e ao autocuidado precisa de estar em perfeita harmonia. Sem esse equilíbrio, é impossível dar o meu melhor no que faço. Preciso de oferecer o melhor do meu conhecimento técnico junta- mente com o melhor que tenho dentro de mim, como ser humano. Nunca poderei dizer que alcancei o máximo da minha humanidade, mas sei o tamanho do compromisso que firmei comigo mesma para desenvolver esse olhar atento e raro todos os dias. E é isso que me permite adormecer em paz todas as noites.
A parte técnica do saber médico, ou seja, a habilidade de avaliar históricos clínicos, de escolher medicamentos e interpretar exames, exige algum esforço, mas com o tempo vai ficando mais simples. Já a capacidade de olhar nos olhos das pessoas de quem cuido e dos seus familiares, reconhecendo a importância do sofrimento envolvido em cada história de vida, nunca pode acontecer no espaço virtual do modo automático. Preciso de manter uma atenção plena em cada gesto e ser muito cuidadosa com as minhas palavras, com o meu olhar, as minhas atitudes e, principalmente, os meus pensamentos. É necessário que seja tudo absolutamente transparente diante de uma pessoa perto da morte.
É impressionante como todos adquirem uma verdadeira «antena» que capta a verdade quando se aproximam da morte e experimentam o sofrimento da finitude. Parecem oráculos. Sabem tudo o que realmente importa nesta vida com uma lucidez incrível. Como recebem acesso direto à própria essência, desenvolvem a capacidade de ver a essência das pessoas à sua volta. Não há fracasso perante as doenças terminais: é preciso ter respeito pela grandeza do ser humano que enfrenta a sua morte. O verdadeiro herói não é aquele que quer fugir do encontro com a morte, mas sim aquele que a reconhece como a sua maior sabedoria. Hoje, no início do século XXI, mais de um milhão de brasileiros morre a cada ano, a maioria em grande sofrimento. Destes, cerca de 800 mil morrem de morte anunciada, ou seja, de cancro, doenças crónicas e degenerativas. De cada dez pessoas que estiverem a ler estas minhas palavras, nove terão a oportunidade de perceber a sua finitude de maneira concreta por meio da experiência de conviver com uma doença grave na vida. Um dia seremos parte desta estatística, e o mais doloroso é que os nossos entes queridos também.
Uma pesquisa realizada em 2010 pela publicação britânica The Economist avaliou a qualidade da morte em quarenta países. O Brasil ficou em 3.º lugar como pior país do mundo para se morrer. Ficámos à frente (por pouco) do Uganda e da Índia. A qualidade da morte foi avaliada mediante índices como disponibilidade de acesso a Cuidados Paliativos; formação na área para os profissionais de saúde na graduação; número de camas de Cuidados Paliativos disponíveis, etc. Em 2015, realizaram de novo o estudo, incluindo outros países, e ficámos em 42.º lugar entre as 83 nações avaliadas. E o Uganda ultrapassou-nos. Fico feliz pelo reconhecimento do mérito do esforço da equipa do Uganda, que conheço pessoalmente, mas entristece-me ver a dificuldade do meu país para estabelecer metas compatíveis com as nossas necessidades. Isto mostra-me, de maneira dolorosamente clara, que a nossa sociedade não está preparada e que os nossos médicos, como parte desta sociedade miserável e em busca ativa pela ignorância da realidade da própria morte, não estão preparados para conduzir o processo de morrer dos seus pacientes, o fim natural da vida humana.
Durante esse processo, a dor e muitos outros sofrimentos físicos estarão lá para nos dizer: «Olá, estamos aqui e faremos o possível para que vivencie o seu morrer.» Então, quando falo sobre sentir dor, refiro-me a: o que a dor nos diz, o que o sofrimento tem a dizer-nos antes de ir embora, o que nos conta a respeito da vida que vivemos. No entanto, só conseguiremos pensar no sentido da vida se a dor passar. O meu papel como médica é tratar o sofrimento físico com todos os recursos disponíveis. Se a falta de ar passar, se qualquer desconforto físico intenso passar, haverá tempo e espaço para a vida se manifestar. Muitas vezes, diante do alívio do sofrimento físico, o que aparece em seguida é a expressão de outros sofrimentos, como o emocional e o espiritual. A família fica aliviada ao perceber o conforto físico, mas então aparece a necessidade de falar sobre o que falta na vida. Virá o momento de pensar nas famosas «pendências», das quais falaremos à frente.
Mas, para esse alívio físico acontecer, precisamos de médicos que saibam como lidar com ele. Porque não é só pegar na mão. Não é só sofrer junto e rezar. Serão necessárias intervenções bastante claras e específicas para aliviar o sofrimento físico, envolvendo muito conhecimento técnico sobre o controlo de sintomas. E esse conhecimento falta em praticamente todas as faculdades de Medicina do nosso país.
Trabalhei numa unidade de Cuidados Paliativos exclusivos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina, em São Paulo, onde recebia pessoas encaminhadas pelo hospital com a perspetiva real de morrerem em breve, num curto espaço de tempo. E esse «em breve» era bastante breve mesmo. Do momento em que acolhia o paciente e lhe dizia «Seja bem-vindo», passavam-se em média quinze dias até que eu assinasse o atestado de óbito. Alguns deles ficavam horas sob os meus cuidados, outros ficavam meses, mas em média eram quinze dias. Pouquíssimo tempo para aquele corpo se sentir confortável para conduzir a existência humana, muitas vezes ainda em busca do seu sentido e significado, até ao momento final.
Quando conseguimos controlar os sintomas físicos, aquela vida, que é tratada como perdida, recomeça. O desafio do médico é acertar na avaliação e no tratamento da dimensão física sem sedar o paciente. Infelizmente, no Brasil, as pessoas pensam que fazer Cuidados Paliativos é sedar o paciente e esperar que a morte che- gue. Muitos pensam que é apoiar a eutanásia ou acelerar a morte, mas estão muito enganados. Não faço eutanásia, e ninguém que eu conheça que tenha recebido formação consistente em Cuidados Paliativos a prega ou a pratica. Aceito a morte como parte da vida e tomo todas as providências e condutas para oferecer ao meu paciente a saúde, definida aqui como o bem-estar resultante do conforto físico, emocional, familiar, social e espiritual. Acredito que a vida vivida com dignidade, sentido e valor, em todas as suas dimensões, pode aceitar a morte como parte do tempo vivido assim, pleno de sentido. Acredito que a morte pode chegar no tempo certo, e assim será conhecida como ortotanásia. Mas ainda sou mais ambiciosa na prática dos Cuidados Paliativos e procuro proporcionar e presenciar a kalotanásia: a morte «bela».
Na minha prática, seja no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, onde também dou consultas, ou no Hospice, a unidade de Cuidados Paliativos exclusivos do Hospital das Clínicas em São Paulo, observo sempre o índice de sedação paliativa dos pacientes de quem cuido. Na minha «galáxia de cuidados» precisamos de sedar apenas 3% dos pacientes. No meu pequeno mundo de assistência à kalotanásia, 97% das pessoas morrem no melhor do seu conforto, em momentos mais belos e intensos do que uma cena de cinema. Não há realizador, não há atores, não há argumento, não há ensaios. É tudo feito à primeira, porque para morrer não há ensaio. Então vem aquela cena linda e emocionante, que fez todo o sentido na história da vida daquele ser humano. As pessoas morrem como viveram. Se nunca viveram a vida com sentido, dificilmente terão a hipótese de viver a morte com sentido.
O processo de morrer pode ser muito doloroso para a maior parte das pessoas, principalmente por causa da falta de conhecimento e habilidade dos profissionais de saúde na condução desse tempo sagrado da vida humana. Durante o processo, quando temos à nossa disposição uma equipa de saúde realmente habilidosa para conduzir os cuidados no tempo que nos resta, mesmo que seja pouco, então teremos a incrível oportunidade de sair desta existência pela porta da frente, com honras e glórias dignas de grandes heróis, reis e rainhas da própria vida.
Infelizmente, isso ainda está longe de ser a condição disponível para todos os brasileiros. Nem todos os médicos que trabalham com pacientes terminais sabem cuidar de pacientes terminais. É habitual dizer-se que todos sabem praticar Cuidados Paliativos, que é apenas uma questão de bom senso. O problema é que nem toda a gente tem bom senso, embora todos pensem ter! Nunca soube de alguém que tenha procurado um psicólogo a dizer: «Vim aqui tratar-me porque não tenho bom senso.» A sociedade precisa de perceber que os Cuidados Paliativos devem ser aprendidos e ajudar os médicos e profissionais de saúde a aprender. É um conhecimento de alta complexidade, de alto desempenho e, principalmente, de altíssima realização. Realização profissional e humana.
«Prestar Cuidados Paliativos
é tratar e escutar o paciente e a
família, é dizer “sim, podemos
sempre fazer alguma coisa” da
forma mais sublime e amorosa
que pode existir.
É um avanço da medicina.»
Mensagem de agradecimento
deixada por uma filha que acompanhou
a morte do pai
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