“Temos muito medo do coronavírus. Todas as pessoas conseguem ter uma quarentena em condições, nós não temos quarentena, a nossa quarentena é dentro de uma barraca”, conta Naide Negrita, grávida de oito meses.
A menina tem chegada prevista para 11 de junho. A contagem decrescente para conhecer o rosto desta nova vida é ofuscada pela preocupação de faltarem as condições básicas, inclusive uma casa.
À espera do primeiro filho, Naide Negrita, de 16 anos, e Wilson Silva, de 21, ambos sem trabalho, começaram a vida de casal numa habitação municipal do Bairro Alfredo Bensaúde, que ocuparam ilegalmente e da qual foram despejados em junho de 2019.
“A Câmara disse que tinha realojamento para as pessoas que foram despejadas, mas não, mentira, tiveram realojamento para as pessoas que foram há dois meses despejadas”, desabafa a jovem.
Em resposta à Lusa, a empresa Gebalis – Gestão do Arrendamento da Habitação Municipal de Lisboa assegura que o casal não foi identificado “nas diversas diligências, em diferentes dias e horários, nem nos relatórios emitidos, como estando a viver numa tenda”.
“Wilson Silva é coabitante autorizado no bairro Alfredo Bensaúde, na casa da mãe, num fogo de tipologia T3, adequado à dimensão da família”, refere a Gebalis, adiantando que a casa comporta a inclusão de Naide no agregado, “não gerando qualquer índice de sobreocupação”.
Questionada sobre este apoio familiar, Naide fala na necessidade de “vidas à parte”: “Quando casamos, cada um vai para o seu canto. Ele tem a mãe dele, nós não vamos para a casa da mãe dele, nem eu vou para a casa da minha”.
Construída no passeio da Rua Costa Malheiro, com uma estrutura erguida por barrotes de madeira, coberta com um toldo e uma porta, a barraca do casal espelha a vontade de viver numa casa. Com um fio de roupa à entrada, o interior da tenda dispõe de uma cozinha improvisada e de um cantinho com uma pequena televisão.
A pouca água que têm é para fazer a “comida, lavar a loiça e, de vez em quando, lavar o chão, por causa do pó”.
“Todos os dias ligo para Câmara, para saber se sabem alguma coisa do meu caso, dizem-me para esperar”, refere Naide.
Além das famílias que vivem na rua, o bairro, na freguesia dos Olivais, parece uma zona à parte em Lisboa, onde saltam à vista a degradação do exterior dos prédios, com azulejos caídos, grafites nas paredes e lixo no chão. No âmbito do programa “Aqui Há Mais Bairro”, está em curso a segunda fase de reabilitação, avança a Gebalis – a obra contempla “intervenção em coberturas e fachadas dos edifícios e zonas de espaços comuns”.
Quanto ao número de famílias a viver na rua, a empresa desconhece quantas são, ressalvando tratar-se de “ocupação do espaço público” que “extravasa as competências da Gebalis”.
Com a papelada da ordem de despejo, que se realizou em 28 de fevereiro, o casal Leandro Silva, de 18 anos, e Vanessa Garcia, de 23, pais de um bebé de um ano que sofre de asma, vive há dois meses na rua, abrigado num toldo azul, com espaço reduzido, preenchido pelo colchão onde dormem.
“Estamos a viver uma fase muito complicada, a gente não tem solução para isto”, exterioriza Leandro, na expectativa de ter uma resposta do município ao pedido de atribuição de uma casa.
A tenda improvisada permite que durmam resguardados, mas não abriga do frio, nem da chuva. “Estamos inseguros. Então, viver na rua assim, em quarentena, por causa da covid-19, é muito complicado”, frisa.
Contudo, Leandro é coabitante autorizado em casa da mãe, indica a gestora do arrendamento municipal, acrescentando que, “aquando da desocupação, os seus bens foram transportados pela Gebalis, a seu pedido, para este fogo municipal”.
Devido à pandemia, as ações de despejo de famílias a ocupar ilegalmente fogos municipais encontram-se suspensas desde 12 de março, com a autarquia a realizar o realojamento das últimas famílias despejadas, em particular do Alfredo Bensaúde.
“Se ajudaram uns, tinham de ajudar os outros também. Não é só ajudar uns e os outros ficarem a viver na rua”, reclama Leandro.
Vanessa completa o apelo: “Pelo menos um teto, por baixo de um teto não passamos o que estamos a passar […]. Por causa deste vírus que anda aí, isto é muito perigoso estarmos na rua, deviam compreender a nossa situação”.
A situação do bairro retrata “uma crise de habitação que existe e que se tem vindo a aprofundar ao longo dos últimos anos”, indica Rita Silva, da associação Habita, referindo que as famílias não conseguem encontrar nem habitação social, nem habitação no mercado.
Assim, começam a encontrar alternativas – carros, barracas ou pensões sobrelotadas, “vivendo de muitas formas que não são aceitáveis e que não são dignas”.
“No momento de pandemia, isto revela-se como um enorme perigo de saúde pública”, alerta.
A Habita está a fazer o levantamento das pessoas por alojar no Alfredo Bensaúde, adiantando que existe pelo menos mais de uma dezena de famílias a viver na rua, “além de muitos casos de extrema sobrelotação que existe dentro da habitação social”.
Também numa tenda, Marco Aurélio Silva, de 49 anos, vive com a mulher, Maria da Liberdade, com 77% de incapacidade. Ao lado, na bagageira de uma carrinha, dormem o filho, Abrão Silva, e a nora. Antes, viviam todos numa habitação municipal do bairro Bensaúde, mas foram despejados em 26 de fevereiro.
“Estávamos quatro pessoas a viver dentro daquela casa, fomos despejados e viemos para o olho da rua”, conta Abrão, lamentando a falta de condições para cumprir quarentena. As barracas não têm casa de banho, pelo que lavar as mãos e tomar banho “é impossível”.
Foram despejados por ocupação ilegal, mas a habitação continua vaga, diz: “Dezenas de casas estão fechadas e sem ninguém lá dentro”.
Desconhecendo o caso desta família, a Gebalis sublinha que “não existem fogos vagos”. As habitações vazias encontram-se em obras ou em fase concursal de empreitada, mas estão já “afetas a famílias que se encontram legitimamente à espera de resposta habitacional”, através de candidatura e cumprindo os critérios do Regulamento Municipal de Habitação.
Com quatro crianças, David Fernandes, de 37 anos, e a mulher moravam numa casa municipal desde 2006, mas contam que foram despejados em fevereiro, o que os obrigou a montar uma barraca. Os filhos querem tentar estudar em casa, mas é inexequível: “Já estão fartos de me ligar, os professores, não há condições nenhumas como possam estudar”, realça o pai.
“Já tentei pedir ajuda, mas não há ajuda de ninguém, nem que fosse só para estar numa casa provisória até passar o vírus”, ressalva.
De acordo com a Gebalis, a família ocupava uma casa no bairro que foi desocupada para “arrendamento ilícito a outra família”.
O subarrendamento ilegal foi identificado aquando da operação de desocupação das casas ilegalmente ocupadas, em fevereiro, o que motivou uma queixa-crime contra David Fernandes.
A família que tinha subalugado a casa “é uma das 13 famílias sinalizadas a quem foi dada resposta habitacional de emergência social pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, adianta a Gebalis.
No contexto das desocupações, realizadas entre fevereiro e março, “ocorreram situações de aproveitamento claro da situação, por parte de famílias que regressaram ao bairro na expectativa de obterem uma habitação”, conclui a empresa.
“Perto de uma dezena de casas” ocupadas ilegalmente no bairro Alfredo Bensaúde em Lisboa
O bairro municipal Alfredo Bensaúde, em Lisboa, registou 20 ações de desocupação de casas ilegalmente ocupadas entre 26 de fevereiro e 13 de março, existindo ainda “perto de uma dezena de casas” ocupadas indevidamente, avançou a empresa Gebalis.
“Do estudo prévio realizado, estão ocupadas ilegalmente perto de uma dezena de casas. Contudo, este número terá de ser confirmado localmente, após o levantamento do estado de emergência e a retoma da normal atividade da empresa”, revelou a Gebalis, responsável pela gestão do arrendamento municipal de Lisboa.
Em resposta à agência Lusa, a empresa assegurou que as 20 ações de desocupação de casas no bairro, na freguesia dos Olivais, foram realizadas “após terem sido cumpridas todas as formalidades legais – contactos, notificações e demais tramitações legalmente definidas –, bem como acompanhamentos em termos sociais”.
“Todas as casas desocupadas estavam afetas a outras famílias, que estavam legitimamente à espera de resposta habitacional em função de candidatura feita e verificada de acordo com os critérios constantes no Regulamento Municipal de Habitação”, sustentou a empresa, adiantando que as obras de recuperação destes fogos, interrompidas em alguns casos pela ocupação abusiva, “começaram imediatamente”.
Antes das desocupações das casas, a Gebalis identificou 13 famílias em situação de vulnerabilidade, às quais foi assegurada resposta habitacional de emergência social, através da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Além das 20 habitações desocupadas, entre 26 de fevereiro e 13 de março houve ações de desocupação em duas lojas – uma delas “usada como salão de jogos ilegal” - e uma garagem.
A operação, em conjunto com as forças de segurança, decorreu da “identificação de práticas ilícitas relacionadas com casas e lojas”, inclusive subarrendamento, vandalização do património municipal, abastecimento ilegal de água e luz, territorialização dos lotes, prática de ocupações abusivas impeditivas de obras de reabilitação e existência de processos de investigação criminal a decorrer.
De acordo com a Gebalis, “a maioria dos núcleos ocupantes são provenientes de casas situadas no bairro, que se autodesdobraram, existindo inclusivamente situações de casais constituídos por menores”, quando os regulamentos de habitação municipal preveem o acesso apenas a maiores de 18 anos.
Assim, as ações de desocupação tiveram como objetivo repor a legalidade, assim como “executar decisões judiciais decorrentes de providências cautelares, entretanto sentenciadas pelo Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, favoravelmente à Gebalis, por verificação de inexistência de título que permita de forma legal o uso por parte dos ocupantes das casas”.
Com as desocupações, a Gebalis pretende também viabilizar a reabilitação de todas as frações afetas a famílias que se candidataram aos programas de habitação do município de Lisboa e retomar a reabilitação do bairro, que se encontra “vandalizado e degradado”.
No âmbito do programa “Aqui Há Mais Bairro”, o Alfredo Bensaúde vai beneficiar da segunda fase de reabilitação, com a intervenção em coberturas e fachadas dos edifícios e zonas de espaços comuns, “contribuindo para um melhor desempenho energético dos edifícios, com impacto na economia doméstica das famílias e melhoria da qualidade de vida da população residente”.
“Trata-se de um investimento ímpar, de 52 milhões de euros de investimento em 30 bairros municipais, dos 66 geridos pela Gebalis”, avançou a empresa, acrescentando que estão ainda a decorrer intervenções de reabilitação de fogos para atribuição a famílias.
Na gestão dos bairros municipais, a Gebalis é responsável pelas intervenções de manutenção do património edificado, “não só corretivas, mas também preventivas”, ficando a cargo dos arrendatários as intervenções por normal desgaste de materiais motivado pela utilização da casa e atos de vandalismo.
Associação propõe aumento do parque público de habitação através da compra de casas vazias
A crise de habitação em Lisboa exige hoje soluções de emergência devido à pandemia da covid-19, inclusive um plano nacional que integre as casas vazias num parque público, através da aquisição a um preço justo, propõe a associação Habita.
“A emergência da pandemia que hoje está colocada pede por outras soluções, temos de ter um novo modelo de habitação”, defendeu Rita Silva, da associação, falando à Lusa durante uma visita ao bairro Alfredo Bensaúde, em Lisboa, onde mais de uma dezena de famílias vivem na rua.
O problema afeta outros bairros lisboetas, com “várias pessoas a viver em carros e em barracas no bairro das Laranjeiras, nos Olivais, como existe em Chelas, como existe em Loures, em vários bairros sociais”.
“Há esta situação degradante que não é digna de um país que se diz desenvolvido ou civilizado”, reclamou.
A situação retrata “uma crise de habitação que existe e que se tem vindo a aprofundar ao longo dos últimos anos”, indicou a responsável da Habita, referindo que as famílias não conseguem encontrar nem habitação social, nem habitação no mercado.
Por isso, as famílias começam a “encontrar formas de sub-habitação”, passando a morar em carros, barracas e pensões sobrelotadas, “vivendo de muitas formas que não são aceitáveis e que não são dignas”.
“No momento de pandemia, isto revela-se como um enorme perigo de saúde pública”, alertou Rita Silva, defendendo que, nestas condições, as pessoas “não têm forma de fazer quarentena, nem têm forma de se proteger ou de fazer algum tipo de recuperação, se tiverem doentes”.
Para responder à crise da habitação, a associação Habita defende que é preciso regular o mercado, assim como “afetar muitas habitações que estão vazias” em Lisboa, inclusive casas que deixaram de ter qualquer uso, porque estavam no mercado a preços especulativos, e casas destinadas a apartamentos turísticos, que agora não vão ter uso devido ao impacto da pandemia.
“É preciso haver um plano nacional do Governo que venha buscar estas casas, pagando o preço justo por elas, e as integre num parque público de habitação, que é preciso para servir as pessoas que não têm casa”, sugeriu a representante, reforçando a ideia de haver “uma regulação forte do mercado do valor das rendas, que não pode ser tão exorbitante como é hoje”.
Além das famílias a viver nas ruas, a responsável da Habita disse que há “muitos casos de extrema sobrelotação que existe dentro da habitação social”, o que representa um perigo do ponto de vista da saúde com o novo coronavírus.
No entanto, sublinhou, “há muitas casas vazias” no património público de habitação da Câmara de Lisboa, algumas vagas há muitos anos, a degradarem-se enquanto esperam que sejam ocupadas.
Face a esta realidade, acrescentou, quem não tem teto acaba por ocupar ilegalmente as habitações: “Não eram atribuídas a ninguém e simplesmente entraram e cuidaram das casas, não podem ser vistas como criminosas, as pessoas simplesmente procuraram um teto para se abrigar”.
Em resposta à Lusa, a Gebalis, empresa de gestão do arrendamento municipal de Lisboa, assegurou que “não existem fogos vagos”, explicando que as casas vazias estão em obras ou em fase concursal de empreitada, “uma vez que se encontram afetas a famílias que se encontram legitimamente à espera de resposta habitacional em função de candidatura”.
Em consequência da pandemia da covid-19, as ações de despejo de famílias a ocupar ilegalmente fogos municipais encontram-se suspensas desde 12 de março, com a autarquia a assegurar o realojamento das últimas famílias despejadas, em particular do bairro Alfredo Bensaúde.
“O que achamos é que numa sociedade civilizada, que respeite os direitos humanos fundamentais, não pode haver nunca despejos ou desocupações se não for averiguada a situação específica de cada família e as alternativas que essa família tem. É preciso haver alternativas”, reforçou a representante da associação Habita.
* Sónia Miguel (texto), da agência Lusa
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