Cheryl Araújo, 21 anos, foi violada por vários homens na noite de 06 de março de 1983 no bar Big Dan´s, em New Bedford, Massachusetts, Estados Unidos. O julgamento do caso terminaria com a condenação dos quatro autores do crime, que sempre alegaram que o ato foi consentido.
Em comum, os homens tinham o facto de serem portugueses, nomeadamente dos Açores, que de resto é a principal origem desta comunidade.
O caso – que já inspirou um filme, vários livros e um documentário na Netflix – continua a assombrar a comunidade, principalmente a mais antiga, que se sentiu toda ela julgada e acusada por ser portuguesa, mas também injustiçada por uma imprensa que insistiu em pormenores que o julgamento demonstrou serem falsos.
"De que raça são estes portugueses que são capazes de aplaudir uma coisa destas?”
“Foi um caso terrível e que começou mal, porque logo a seguir ao crime, os media começaram a divulgar aspetos falsos, como a presença de vários portugueses a aplaudir a violação. Foi isso que levou a América e um pouco do mundo, porque o caso tornou-se internacional, a pensar: De que raça são estes portugueses que são capazes de aplaudir uma coisa destas?”, recordou João Tomásio, 77 anos.
O jornal The Boston Herald, por exemplo, escreveu em manchete: “Multidão num bar aplaude enquanto uma mulher é violada”. O New Bedford Standard-Times, por seu lado, referia-se ao caso como “Violação coletiva: A vergonha de uma cidade”.
Nos tempos seguintes ao crime, as opiniões contra a comunidade portuguesa avolumavam-se em artigos nos jornais, mas também na antena aberta da rádio WBSM-AM, onde mensagens de ódio e xenofobia eram destiladas em direto.
João Tomásio, um açoriano que chegou a New Bedford em 1960, acompanhou o caso bem perto e, em declarações à agência Lusa, disse como a comunidade portuguesa – até então tida como trabalhadora e cuidadora das suas casas – ficou mal vista.
“Os portugueses nunca acharam que os quatro homens fizeram bem em violar uma mulher. O que não concordavam é que eles fossem julgados na praça pública e que a comunicação social tivesse a insistir na sua nacionalidade, como se ser português fosse a justificação para o que fizeram”, disse.
100 mil dólares para pagar as cauções dos acusados de violação
Essa foi uma das razões que levou o pai de João Tomásio e ele próprio a reunirem a quantia de 100 mil dólares para pagar as cauções dos acusados de violação, pois caso contrário estes passariam quase um ano na cadeia, até ao julgamento, disse.
“Víamos crimes iguais e as cauções eram muito menores. Não era justo e por isso ajudámos”, afirmou.
João Tomásio ainda procurou ajuda junto do consulado português, mas a resposta foi um distanciamento que desanimou ainda mais os portugueses, que decidiram então formar um 'comité de justiça' que viria a promover uma manifestação que juntou, numa primeira vez, 6.000 pessoas.
Nesta manifestação, a bandeira portuguesa esteve presente e mensagens como “Adoramos a América, mas temos orgulho em ser portugueses”.
“Havia patrões que ameaçavam os portugueses com o desemprego se participassem na manifestação, mas a revolta era tanta que não queriam saber. Mais tarde, quando as razões se começaram a revelar, conforme o julgamento ia avançando, esses mesmos patrões percebiam a razão por que os portugueses precisavam de estar tão unidos”, adiantou.
Disso mesmo foi testemunha o diretor do jornal Portuguese Times, Francisco Menezes, que seguiu o caso e o seu julgamento, o primeiro a ter transmissão em direto através da CNN.
“Ninguém apoiou os agressores, pois o que aconteceu foi altamente reprovável. A manifestação foi contra as atitudes discriminatórias que os portugueses estavam a sentir”, disse à Lusa.
Entre milhares de portugueses, também se ouviram críticas à atitude da vítima – que morreria pouco depois num acidente de viação, longe de New Bedford -, nomeadamente por estar num bar sozinha, à noite, com os filhos pequenos em casa, o que revoltou muitas pessoas e, sobretudo, mulheres.
Mas “este não era o pensamento dominante da comunidade portuguesa”, frisou Francisco Menezes.
Consternadas com o sucedido, as famílias dos violadores foram “muito afetadas”. “Alguns familiares sentiam vergonha e evitavam sair à rua. Eram gente digna, com ensinamentos católicos…”, disse.
“Diziam que o Carlos Lopes ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos [em Los Angeles, em 1984] porque na meta tinha uma mesa de bilhar”
Eurico Mendes, 86 anos, seguiu este caso enquanto jornalista e garante que existiram interesses políticos para o manter na ribalta.
E recorda que até piadas se faziam do assunto. “Diziam que o Carlos Lopes ganhou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos [em Los Angeles, em 1984] porque na meta tinha uma mesa de bilhar”, numa referência ao sítio onde Cheryl Araújo foi violada.
Os quatro violadores foram condenados a penas de prisão de 12 anos, tendo cumprido metade. Nunca chegaram a ser deportados para os Açores. Dois já faleceram e os outros dois continuam a trabalhar nos Estados Unidos, de acordo com João Tomásio.
Para João Luís Pacheco, conselheiro das comunidades portuguesas no estado de Rhode Islands, esta foi “uma mancha muito negra” na comunidade, guardando ainda as imagens dos suspeitos com correntes e algemas, o que então não era habitual.
“A justiça foi justa, mas não era necessário os violadores irem naquele estado. Mas felizmente o caso está apagado e esquecido e raramente se fala nisso”, disse à Lusa.
Maria Tomásia, que durante décadas coordenou o processo eleitoral e de recenseamento da cidade de New Bedford, lamenta que, passados 40 anos, a atitude contra a imigração, mas não necessariamente a portuguesa, seja “muito parecida”.
“Politicamente, os imigrantes continuam a ser um alvo, porque sabem que não têm poder ou voz”, disse, alertando para “os grupos radicais que espalham ódio contra todos os grupos étnicos nos Estados Unidos”.
Símbolo de um caso doloroso para os portugueses, o Big Dan's espera hoje por um novo futuro, depois de fechar as portas a seguir ao crime, reabrindo como uma padaria e um espaço de culto, que também já não existem.
Mas ainda foi procurado por turistas que fizeram questão de serem fotografados junto a este espaço.
“Vão embora, vão para o vosso país”
“Vão embora, vão para o vosso país”, foram frases que Helena DaSilva Hughes se recorda de ouvir, uma vez que testemunhou a dimensão do impacto da violação de uma luso-americana por vários portugueses, em 1983, no bar Big Dan's.
No ano seguinte entrou para o centro que hoje dirige, criado em 1971 para dar assistência aos portugueses que para ali emigraram, provenientes sobretudo dos Açores e da Madeira.
“Quando o caso se deu e foi noticiado estava na página sete, mas rapidamente passou à primeira página” dos jornais, disse a madeirense à agência Lusa.
E contou que o caso transformou a imagem que esta comunidade portuguesa – a maior nos Estados Unidos – tinha e que, até então, era de pessoas trabalhadoras, com casas impecáveis e que todos os patrões procuravam.
“Era uma comunidade integrada e envolvida, que veio para aqui para trabalhar e melhorar a sua vida, que tinha os filhos a estudar e planos para o futuro”, disse.
Quando a violação se deu, a comunicação social divulgou a nacionalidade dos violadores – portugueses -, e a partir daí passou a existir um público norte-americano disposto a acusar toda a comunidade.
“Não foram só os quatro homens que fizeram a violação, toda a comunidade portuguesa esteve no banco dos réus”
“Automaticamente, toda a comunidade passou a ser julgada. E este foi o maior erro e a maior injustiça”, observou.
“Não foram só os quatro homens que fizeram a violação, toda a comunidade portuguesa esteve no banco dos réus”, prosseguiu, lembrando que, até então, “não existiam quaisquer conflitos”.
Foram tempos de perseguição aos imigrantes, neste caso portugueses, que a administração de Donald Trump fez reviver, pois o ex-presidente norte-americano “deu oportunidade às pessoas que eram racistas e contra os imigrantes de se revelarem”, disse.
Com Trump, ouviu as mesmas frases que, há 40 anos, eram dirigidas aos portugueses, mas agora para cidadãos de outras nacionalidades, pois os portugueses rapidamente “conseguiram ultrapassar o triste acontecimento”.
Mas, adianta, foi “uma marca negra” no coração desta comunidade, uma “marca grande”.
Quatro décadas depois, e perante um recente documentário da Netflix sobre o assunto, Helena DaSilva Hughes lamenta que a mensagem que acompanha as imagens das manifestações de portugueses aquando do julgamento dos criminosos continue a dar a ideia de que os portugueses estavam contra a vítima.
“A luta, o protesto, foi contra a forma como os portugueses estavam a ser julgados, acusados, discriminados. Não concordávamos com os violadores, o que fizeram foi um crime, mas não tínhamos de pagar todos por isso, só porque éramos portugueses”, disse.
“Vim da Madeira com 10 anos. Primeiro veio o meu pai, depois foi a mãe, com sete filhos. A família veio para dar melhores condições aos filhos. Trabalhámos, temos as nossas casas, filhos, netos. Agarrámos uma oportunidade para um bom futuro”, referiu.
E lamentou que, mais uma vez, o documentário da Netflix apresente a comunidade portuguesa a criticar o julgamento dos violadores, quando queria apenas protestar contra o julgamento da comunidade.
“Infelizmente, passou a ideia de que apoiar a vítima era estar contra os portugueses”
Não ignora, contudo, que algumas pessoas acabassem por criticar a vítima da violação, por ser ela que esteve na origem do caso. Mas foi ela a vítima, ressalvou, a par de todos os outros portugueses que foram julgados pelos americanos.
E ilustra a dimensão do caso com o facto de, ainda hoje, existirem mulheres que não vão ao Centro da Mulher local porque, na altura do julgamento, prestou apoio a Cheryl Araújo, a luso-americana violada.
“Infelizmente, passou a ideia de que apoiar a vítima era estar contra os portugueses”, disse.
No olho deste furacão esteve o facto de o julgamento do caso Big Dan's ter sido o primeiro a ser transmitido por televisão.
Apesar dos cuidados definidos previamente, de forma a proteger a identidade da vítima, na altura do juramento, Cheryl acabou por dizer o seu nome, divulgando-o assim para todo o mundo, que seguiu o julgamento como uma telenovela.
Morreu três anos após a violação, em Miami, para onde fugiu da pressão que sobre si se abateu.
“O estereótipo” de que os portugueses eram “uns machistas inveterados que não podem ver uma mulher sem tentarem comê-la, pelo menos com os olhos"
O filósofo Onésimo Almeida, que se destacou na defesa da comunidade portuguesa após a violação de uma mulher nos Estados Unidos por quatro conterrâneos, há 40 anos, lamenta que a imprensa tenha insistido numa “versão exagerada”, que prejudicou a comunidade.
Escritor e professor universitário, Onésimo Almeida vive nos Estados Unidos desde 1972 e acompanhou o caso de Cheryl Araújo.
E foi-se apercebendo que – tal como viria a ser demonstrado em tribunal -, alguns aspetos que tornaram a história mais sórdida, e por isso alimentada pela comunicação social local, depois nacional e até internacional, não eram verdade, como o facto de o crime ter sido aplaudido e incentivado por muitos outros portugueses presentes no bar.
Em declarações à agência Lusa, reconhece que o caso causou danos na comunidade portuguesa, principalmente “o estereótipo” de que os portugueses eram “uns machistas inveterados que não podem ver uma mulher sem tentarem comê-la, pelo menos com os olhos".
O caso, adiantou, foi “uma versão exagerada da história posta a circular por um jornal que acreditou num relato que chegou à redação altamente exagerado, mas que fazia sentido porque encaixava perfeitamente na ideia que na comunidade americana se tinha de uma comunidade portuguesa conservadora e machista onde a mulher era uma pessoa de segunda classe que não podia entrar num bar”.
E foi para evitar danos ainda maiores que, assim que teve conhecimento de que iria ser feito um filme sobre este caso (“Acusados”, protagonizado por Jodie Foster, 1988), Onésimo Almeida participou na criação da comissão Portuguese-American Congress, a qual escreveu uma carta à Warner Bros para evitar que fosse feita referência à nacionalidade dos violadores.
Na comunidade portuguesa em New Bedford, o tempo revelou-se mesmo o melhor remédio. “Isto foi há 40 anos e por isso muita gente já morreu. Felizmente o tempo encarrega-se de passar um pano por cima da memória das pessoas e já pouca gente se lembra do caso”.
“A comunicação social nunca aprende nada com o passado”: “Não tem tempo de investigar a sério e tem de ir na onda"
Além disso, acrescentou, “de então para cá, os meios de comunicação já se fizeram eco de tantos acontecimentos muito mais horrorosos", comentando "Ao pé deles, o caso Big Dan's é uma história de adolescentes”.
Outros casos, os mesmos erros, na ideia de Onésimo Almeida, para que “a comunicação social nunca aprende nada com o passado”.
“Não tem tempo de investigar a sério e tem de ir na onda. Lamento dizer isto, mas tenho décadas de rodagem. Os mais velhos já estão fora de circulação e os mais novos não querem saber da experiência deles. Estão prontos para cometer os mesmos erros. Têm de publicar e, se escrevem contracorrente, os jornais ignoram porque têm de alimentar os interesses dos leitores. Claro que há exceções e nem tudo é assim tão branco-e-preto. Mas esse tom é generalizado”, afirmou.
Para este escritor e professor catedrático na Universidade de Brown, nos Estados Unidos, o erro da comunicação social no caso Big Dan's foi “não prestar atenção ao que se lhe dizia em contrário, pois as pessoas que tentavam demover os jornalistas eram membros da própria comunidade e, por isso, vistas como partilhando da mesma visão do mundo e vítimas dos mesmos preconceitos”.
“Daí que a comunicação não se preocupasse com investigar a verdade que essa minoria lhe transmitia. Acreditou facilmente na versão original posta a circular, até porque essa era a que interessava mais aos jornais por ser essa a que, no fundo, o público queria ler. Qualquer versão mais branda não interessaria a ninguém”, lamentou.
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