A ideia resume-se a isto: quem precisa pede, quem pode dá. Sempre no mais completo anonimato. O projeto nasceu no dia 2 de fevereiro e ao sétimo dia estava a ser entregue o cabaz n.º100. Na plataforma estão agora inscritas 500 famílias necessitadas e mais de 4000 doadores.
A história é contada por Margarida Vaqueiro Lopes: "Era domingo à noite e falava por videoconferência com a minha irmã mais velha, cada uma no seu sofá, uma coisa que fazemos agora que não podemos estar juntas. Eu tinha acabado de enviar, a pedido de amigos, um cabaz de bens essenciais para uma família de Odivelas, um casal de velhotes que estava sem nada. Fiz uma lista e encomendei num supermercado online, que fez a entrega. Mas aquilo impressionou-me imenso, porque uma das coisas que pediam era cola para as próteses dentárias, uma coisa que custa três euros, para pôr o drama em perspetiva". Do outro lado, a pergunta óbvia: "Mas essas pessoas não têm reformas?" Tinham, cerca de 300 euros. E a ajuda dos filhos e do genro que, entretanto, perderam os empregos. "Não há uma estrutura montada para apoiar quem ficou nesta situação". Ou por outra, não havia, agora há.
Decidiram que era preciso fazer mais, "tem de haver uma forma, são os nossos vizinhos, podíamos ser nós". E podíamos, concorda Margarida, "mas somos umas privilegiadas, não no sentido de ter muito dinheiro, mas no sentido em que a nossa vida mudou, temos as crianças em casa e precisamos de aprender a trabalhar assim, mas não deixámos de ter um salário".
A primeira coisa em que pensaram foi enviar um email para o grupo de amigos mais chegados, uma solução "a que recorremos muito para diversas situações". O objetivo era "ajudar umas dez famílias; a minha irmã Luísa ficou de fazer um formulário - uns ridículos Google Docs -, eu fiquei de escrever um tweet". Foi nesta informalidade que as coisas começaram.
Terça-feira o projeto arrancava e em três ou quatro horas havia dezenas de inscritos, entre famílias necessitadas e doadores. "Para nós era muito importante que todos mantivessem o anonimato. A nossa mãe, que ouviu toda a conversa, é há muitos anos voluntária na área social e uma das coisas que nos pediu foi que fizéssemos tudo para garantir o anonimato das famílias, para manter a sua dignidade. Muitas têm vergonha e não querem que os vizinhos do lado ou os amigos descubram, e isso tinha de ser salvaguardado para ninguém se sentir humilhado ou não seria uma coisa boa", recorda Margarida. Daí o nome Admiradores Secretos.
O processo de inscrição na plataforma e o cruzamento de dados é simples: a ficha pede apenas o número de pessoas do agregado familiar, intolerâncias alimentares, morada e um meio de contacto rápido. Só aos doadores é pedido o nome. Depois é cruzar essa informação. "Atribuímos um número a cada família e esse número é enviado a um doador que identificamos na mesma zona com os dados necessários para a entrega do cabaz", explica.
Têm como garantir que toda a informação é verdadeira? "Essa é uma pergunta que nos fazem imensas vezes. Esse escrutínio não é feito, mas a informação chega-nos como verdadeira. Pedimos sempre aos doadores, que são quem contacta a família, que usem a sua sensibilidade para perceber se e que necessidades tem o agregado que lhes é atribuído. E têm a liberdade para abandonar o projeto se, por qualquer motivo, não se sentirem confortáveis. Sabemos que pode haver abusos e não temos forma de controlar tudo, mas temos um lema: se em 100 famílias ou pessoas que estamos a ajudar dez forem abuso, então já valeu a pena. Encaramos o resto como danos colaterais", diz.
Há no projeto Admiradores Secretos pontos importantes a reter: "Esta é uma ação que nasce por uma questão emergencial, é uma ajuda de emergência para famílias em dificuldades num determinado momento e apenas uma vez. Uma ação mais prolongada no tempo exige outro tipo de acompanhamento que não sabemos fazer. Não temos formação na área social e não nos queremos substituir às instituições que estão há muito tempo no terreno e fazem isso bem. Há um pico de necessidade e é esse o nosso alvo", esclarece.
"A rede de emergência alimentar já não está a conseguir responder aos pedidos, isto sabemos. Porque as doações também diminuíram brutalmente. Temos percebido neste processo que há muitas famílias com crianças que só têm em casa um pacote de arroz. O que tem acontecido é que temos assistentes sociais a inscrever famílias". Também já aconteceu famílias inscritas agradecerem mas recusarem a ajuda por terem entretanto sido inscritas noutras plataformas e estarem já a ser socorridas. Ou doadores perguntarem se podem continuar a ajudar uma família por determinado tempo. "Isso é com eles, o nosso objetivo é preencher a lacuna entre as famílias ficarem sem nada e a Segurança Social conseguir dar um apoio, e isso está feito", afirma.
Quem está neste projeto também está a aprender. Margarida é jornalista, Luísa é neurocientista. A elas juntou-se Ana, a irmã do meio, e alguns amigos. "Somos neste momento dez pessoas para conseguir dar resposta à plataforma. Já percebemos que criámos um monstro". Exatamente uma semana depois de terem iniciado atividade foi entregue o cabaz n.º100. Mas já há neste momento cerca de 500 famílias inscritas e mais de 4000 doadores. Como há mais doadores do que famílias a pedir ajuda, cada agregado é repartido por mais do que um benemérito. "É normal e já aconteceu termos de fechar a plataforma, porque, mais uma vez, isto é feito por voluntários, pessoas que estão a tentar fazer o seu trabalho assalariado sem ser despedidas e, ao mesmo tempo, querem dar resposta a estas famílias", diz.
Margarida acredita que as coisas ainda vão piorar. "Penso que vai ser tudo ainda mais trágico quando acabar este período das moratórias, estamos todos um bocadinho em negação em relação a isso". Ou seja, a plataforma poderá fechar durante um período e "reabrir quando percebermos que volta a ser necessária. Mas também acreditamos que tem mesmo de haver soluções de fundo para este problema e encontrá-las compete ao Estado".
Embora ainda não tenha sequer dez dias de existência, a plataforma tem já uma lista de anedotas, situações que foram foram acontecendo à medida que o projeto foi avançando. Por exemplo, "os primeiros emails que enviámos foram quase todos devolvidos". É que com um remetente chamado Admiradores Secretos e um cabaz como assunto acenderam todos os alertas de spam. Mas nem isso abalou a generosidade de uma ideia que já ultrapassou fronteiras e chegou a países como a França, Bélgica ou Luxemburgo. Afinal, não é uma aplicação de encontros, mas tem muito amor à mistura.
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