Lá em baixo a água corre. O rio vai apressado, fugindo para o mar. Aqui da encosta, notam-se apenas breves vislumbres dele, quando as árvores abrem, arrepiadas pelo vento. É 15 de outubro de 2018. A chuva desaba na calçada íngreme à beira da casa cor-de-rosa. Agustina faz anos: 96. Mas há década e meia que se lhe não ouve palavra.
Ia um dia pela rua de Cedofeita quando uma mulher a estacou a dizer: “Sabe, gosto muito de si, até estou a pensar um dia destes comprar um livro seu”. Agustina explicava depois: “Poucos são os que me leem, mas muitíssimo mais os que me conhecem”.
Às contas deste outubro, são agora muitos mais os que a leem que os que lhe conhecem o tempo. Nós também o não conhecemos. A porta abriu, mergulhámos nos corredores, tocámos os livros, pisámos a relva molhada do jardim e brincámos com o cão alto e simpático que ia curioso a conhecer o desconhecido.
Atrás de qualquer uma das portas podia estar Agustina Bessa-Luís. Não a procurámos. A escritora escolheu desaparecer. Depois do acidente vascular cerebral de 2006, recuperou — mas manteve-se em silêncio, afastada da cidade real; longe do universo tangível que a outra chuva molha. “Agora, está no seu mundo”, contava Lourença Baldaque, a neta mais nova.
Não havia como entrar nesse mundo que era dela. Nem a família às vezes sabe ao certo os mistérios por trás dos olhos aguçados de Agustina. Até porque, mesmo antes do acidente, o universo da autora de A Sibila era mais dela que dos outros. Encerrada nas suas ideias, derramava com letra miúda os manuscritos. Depois, Alberto Luís, o marido que conheceu com um anúncio no jornal, passava à máquina.
E nesse processo, não havia mais que perguntar a Agustina. O escrito escrito estava — e só isso basta.
Para conhecer o resto há que ler a sua obra. “É lá que está a verdadeira Agustina”, explica Lourença no breve documentário que o SAPO24 publicou em abril deste ano.
Agustina marcou a literatura portuguesa da segunda metade do século XX e ainda os primeiros anos do século XXI. "Não foi uma escritora de leitura fácil, mas sim uma escritora que tentou compreender a psicologia de Portugal, dos portugueses e sobretudo do Norte de Portugal”, explica Maria de Fátima Marinho, professora da Universidade do Porto.
A obra atravessa a história de um povo. “Testemunhou, com o rigor inexcedível da sua escrita, nunca corrigida, o fim de um Portugal e o nascimento de outro. Um e outro feitos do Portugal eterno”, escreveu esta segunda-feira o presidente da República. “E é a esse Portugal eterno que ela pertence.”
O corte
Lourença vai mostrando a letra miúda dos manuscritos. São parte do espólio que está a ser estudado para melhor perceber e divulgar o trabalho de Agustina. Há inéditos e correspondência. Há notas soltas e retalhos de outras coisas — meticulosamente arrumados, ou postos em pilhas ainda por ver.
Na sala de trabalho, as estantes enchem-se de livros. Entre eles surgem retratos de Agustina, feitos por Alberto Luís. Era ele o responsável pela fixação do texto da escritora, morreu em novembro de 2017, aos 94 anos.
Em 1997, quando publicou “Um Cão que Sonha”, numa conversa com público, em Oeiras, realçou a importância que tinha na sua escrita o marido. “Por tudo, do apoio à compreensão, ao incentivo e ao amor incondicional”, afirmou.
Depois de 2006, afastou-se dos livros, afastou-se da escrita. Desligou-se da literatura, mas não da vida, que manteve digna e independente. “Deixou completamente de escrever, de ler, de querer estar interessada na literatura”, contou-nos Lourença Baldaque, neta da escritora, que entrevistámos em outubro do ano passado.
“Nós às vezes ainda deixávamos um caderno em branco ao pé dela e uma caneta, se ela quisesse escrever qualquer coisa, mas isso nunca aconteceu, parou completamente.” O corte, porém, não foi violento, explica Lourença: “Foi uma vontade dela, em primeiro lugar. Uma vontade de parar e de descansar.”
O golpe, de difícil diagnóstico, quebrou-lhe a vontade, mas não as forças. A imprensa andou todos estes anos filada na ideia de que a escritora estava demente ou acometida de uma tal maleita que lhe havia de ter derrubado a alma. A família sempre o negou e lutou para lhe manter o legado — e dignificá-lo.
“Embora fale menos do que falava, tem um olhar que intimida e olha-me com imensa profundidade. Agora, aquele seu espírito independente continua muito presente”, contava Lourença. “É a mesma pessoa”, reforçava.
Agustina estava no Porto que fez seu. Apesar de ter nascido em Vila Meã, Amarante, a 15 de outubro de 1922, foi na Invicta que escolheu construir um mundo impenetrável. O forte, encaixado entre o rio e a cidade, é como um mosteiro onde os livros são monges atentos, vigiando do alto das suas estantes.
Algures por trás das paredes que o documentário “Agustina” mostra há de estar a escritora. Da mesma forma que por trás das ficções é possível chegar a realidades ou personagens verídicas de uma escritora pôs os seus olhos ao serviço de uma análise da cabeça dos homens e das mulheres, como explica Maria de Fátima Marinho, professora da Universidade do Porto.
A caixa
O que é a obra de Agustina? Os académicos confundem-se. Os literatos rebelam-se, debatendo se é feminista ou machista; se é otimista ou vive cheia de um desalento com a condição geral dos homens. Agustina é ela mesma. Não cabe em caixas, não se arruma nas gavetas dos outros.
"Na modernidade e na pós-modernidade é difícil engavetar os escritores, engavetá-los em correntes pré-determinadas". E Agustina "teve influências várias", explica Maria de Fátima Marinho. "Desde o seu primeiro romance, de 1948, até à atualidade". Todavia, "não podemos catalogá-la, dizer que ela pertence a esta ou àquela corrente literária.”
“Os seus romances tratam de problemas de identidade, de problemas de relações homem-mulher; de relações do português com a sua história e algumas das suas personagens; com os meandros da sociedade e do jogo de forças que existe na sociedade portuguesa”, sublinha a académica. “As tensões familiares são muito importantes na obra de Agustina, tal como as tensões entre o universo masculino e feminino.”
Agustina vai ainda buscar “personagens marcantes da história de Portugal e fazê-las interagir com personagens do presente. Há muitos romances em que temos quase uma identificação de personagens do passado com personagens do presente”. "Muitos dos romances de Agustina vão buscar episódios do passado, fazendo-os interagir com o presente", diz Maria de Fátima, dando como exemplo O Concerto dos Flamengos, A Corte do Norte ou O Mosteiro.
A autora "era sobretudo uma mulher que trabalhava com a palavra e com a psicologia das personagens. É muito interessante percebermos a perversidade das personagens, os seus jogos interiores, as suas ambiguidades, relações de amor-ódio — encontramos tudo isso no universo da Agustina", diz Maria de Fátima Marinho, que estudou a obra da escritora portuguesa.
O Porto
Aqui no Gólgota, o forte permanece vigilante. Agustina escolheu-o para casa nos anos 1960 e montou um universo. O Porto é a “cidade de resguardo para poder criar e imaginar uma obra literária”, diz Lourença.
Maria de Fátima Marinho nota Porto na obra, "ela conhece bem a sociedade do Norte e do Porto". Todavia, "não é exclusivo: ela tem romances que não são passados aqui. Ela não é uma escritora regional, não é uma escritora do Porto e do Norte, é uma escritora internacional — de âmbito muito mais vasto”.
"A Agustina é reconhecida nacional e internacionalmente — e não o é por ser do Norte ou do Sul”.
É da Invicta que escreve, mas não é sobre ela que o faz. A cidade fascina. Muitos apressam-se a dizer que Agustina acabou prejudicada por ser do Norte, por ser mulher. Mas Agustina foi mais do que uma mulher — e foi mais do que uma mulher do Norte. Agustina foi ela mesma. "Se não fosse mulher não teríamos a visão que ela tem do mundo. A visão do mundo de Agustina é também uma visão feminina. As mulheres têm muito mais força que os homens nas obras de Agustina — e isso é talvez porque ela também era mulher”, explica Maria de Fátima Marinho.
"Ela pode ter sido prejudicada do ponto de vista social, até pela época em que viveu", diz a catedrática do Porto. "Mas se não fosse mulher, não teríamos a força feminina que transparece nas suas obras", afirma.
A escrita
“Às vezes tenho de voltar atrás, ir duas páginas atrás, tenho de ir ao dicionário, tenho de ir procurar qualquer coisa de que a minha avó fala e eu não sei exatamente o que é”; diz Lourença sobre a obra de Agustina.
Agustina "nunca foi uma autora para ser lida pelas grandes massas, porque a sua leitura é difícil. Um livro de Agustina não se pode ler distraidamente, se não, vamos perder grande parte dos seus meandros de escrita”, nota Maria de Fátima Marinho.
As relações entre as pessoas são importantes em Agustina, mas nunca deixam de ser "ambíguas, perversas, cheias de mal-entendidos". Há "uma impossibilidade de conhecer verdadeiramente o outro". E isso é parte da engrenagem do fascínio da sua obra.
Tal como o mistério, a incerteza. "A obra de Agustina muitas vezes não dá soluções", afirma Maria de Fátima Marinho, dando o exemplo do romance 'Eugénia e Silvina', de 1989. "Temos o mesmo episódio contado de vários pontos de vista e nunca chegamos a saber exatamente como é que o episódio se passou, porque vamo-lo tendo contado por diferentes pontos de vista, através de personagens diferentes”.
A obra
Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa-Luís estreou-se na literatura em 1948, com a novela Mundo Fechado. Em 1951, venceu os Jogos Florais do Minho com o conto Civilidade, usando como pseudónimo o nome do marido, Alberto Luís.
Com uma vasta carreira, Agustina publicou dezenas de livros. Romances, teatro, crónicas. Foi até diretora de jornal.
Em 1954, aparece A Sibila — e Agustina gravou com cada letra deste romance o seu lugar na história da literatura. O terceiro livro da escritora amarantina valeu-lhe os prémios Delfim Guimarães e Eça de Queiroz, que constam de uma lista de galardões onde se inclui o Grande Prémio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores, em 1983, pela obra Os Meninos de Ouro, e que voltou a receber em 2001, com O Princípio da Incerteza I - Joia de Família.
A sua bibliografia inclui títulos como Os Incuráveis, A Muralha, Ternos Guerreiros, O Sermão do Fogo, A Dança das Espadas, As Pessoas Felizes, Santo António, O Concerto dos Flamengos, Ternos Guerreiros, A Dança das Espadas, As Pessoas Felizes, Crónica do Cruzado Osb, A Brusca, Aquário e sagitário, Doidos e Amantes, e os três volumes de O Princípio da Incerteza, entre outros. O último romance que publicou, A Ronda da Noite, saiu em setembro de 2006.
Várias obras suas foram adaptadas ao cinema pelo realizador Manoel de Oliveira, Fanny Owen (1981, adaptado para “Francisca”), Vale Abraão (1993), As Terras do Risco (1995, adaptado para O Convento) e O Princípio da Incerteza (2002).
Escreveu ainda os diálogos de “Party” (1996), a partir da sua peça de teatro Party: Garden-Party dos Açores, e o seu conto A Mãe de Um Rio faz parte da película “Inquietude” (1998). Também o realizador João Botelho adaptou, em 2009, A Corte do Norte.
Entre as peças, é autora d'A Bela Portuguesa, levada à cena na Casa da Comédia, em Lisboa, em 1987, numa encenação de Filipe La Féria, que adaptou ao teatro o seu romance As Fúrias, em 1995.
A Bela Portuguesa foi representada novamente, em 2005, na X Mostra Internacional de Teatro Universitário, em Lisboa, numa encenação de Jorge Almeida. A autora escreveu para teatro Garrett: o Eremita do Chiado, Estados Eróticos Imediatos de Soren Kierkegaard e Inseparável ou o Amigo por Testamento.
Embora sempre ligada à produção literária — até cerca de 2006 publicava uma média de um livro por ano —, Agustina Bessa-Luís foi diretora do jornal ‘O Primeiro de Janeiro’, de 1986 a 1987. Mais tarde, a escritora foi ainda membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social e diretora do Teatro Nacional D. Maria II, de 1990 a 1993.
Em 1985, foi mandatária da candidatura presidencial de Diogo Freiras do Amaral e, em finais de 2006, apoiou o "sim" no referendo sobre a despenalização do aborto.
A autora era membro da Academia de Ciências de Lisboa, na Classe das Letras, da Academie Européenne des Sciences, des Arts et des Lettres, de Paris, e da Academia Brasileira de Letras.
Foi membro do Conselho Diretivo da Comunitá Europea degli Scrittori (1961-1962).
No ano passado, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) concluiu um ano de homenagem a Agustina Bessa-Luís, com a atribuição do doutoramento Honoris Causa à escritora, em Vila Real, sendo a primeira mulher a ser distinguida com este título honorífico pela UTAD.
Agustina Bessa-Luís foi condecorada como Grande Oficial da Ordem de Sant'Iago da Espada, de Portugal, em 1981, elevada a Grã-Cruz em 2006, e agraciada com o grau de Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras, de França, em 1989, tendo recebido a Medalha de Honra da Cidade do Porto em 1988.
Questionada sobre o que escrevia, a autora disse, num encontro na Póvoa do Varzim: “É uma confissão espontânea que coloco no papel”.
O legado
O que dizem as vozes quando se calam? Não sabemos. A de Agustina já há muito se não ouvia. Andava ela no preâmbulo do estado último, como a ensaiar o desaparecimento final — e nem isso a deitou no esquecimento.
Não é popular; nunca o foi. Ler Agustina não é divertimento, raros serão os que dizem que é entretém. Ler Agustina é ler o mundo, sem otimismos exacerbados. “Há uma certa descrença no ser humano. Uma visão muito circunspecta das pessoas”, diz Lourença. A neta que está a trabalhar com a mãe para entender o que se esconde nos arquivos de Agustina.
Depois da vida literária, Agustina entrou na vida do silêncio. Agora, entra na vida eterna — entra no panteão das vozes que, mesmo caladas, mesmo esquecidas, nunca deixam de sibilar as pequenas teias que seguram o fio de Ariadne que esclarece o mundo.
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