O escritor e bibliófilo, que no dia 12 deste mês assinou um protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa para doar à cidade a sua biblioteca, composta por cerca de 40 mil volumes, contou em entrevista à Lusa quais são os seus sonhos e projetos para esta futura biblioteca pública, que deverá estar fisicamente pronta em 2023, em cálculos “pessimistas”.
Este espólio literário vai compor o futuro Centro de Estudos da História da Leitura (CEHL), do qual Alberto Manguel será diretor, e que ficará localizado no Palacete dos Marqueses de Pombal, na Rua das Janelas Verdes, na proximidade do Museu Nacional de Arte Antiga.
Entre os membros do Conselho Honorário do futuro centro de estudos, contam-se escritores como Olga Tokarczuk, Salman Rushdie, Margaret Atwood, Chico Buarque e Tolentino de Mendonça.
Alberto Manguel recusa ter um papel passivo enquanto diretor, porque acredita que uma biblioteca, sobretudo pública, tem uma função cívica, de educação dos cidadãos.
“Estamos a viver um momento trágico da nossa História, em que os conceitos democráticos estão a ser esmagados e a mentira está a impor-se através de tecnologias, que são excelentes, mas que podem ser usadas para estas infâmias. A biblioteca pode dar ao cidadão uma nova fé na sua inteligência. Temos que dizer aos leitores, sobretudo os jovens, que são inteligentes, que devem dar opinião, perguntar, questionar, ser um pouco anarquistas. A biblioteca pode ser uma espécie de centro de subversão intelectual”, afirmou, mostrando-se convicto de que chegará a sê-lo.
O trabalho já começou, apesar de os livros se encontrarem atualmente a atravessar o Atlântico, vindos de Montreal para Lisboa, e de o espaço que vai albergar a biblioteca necessitar de obras e adaptações que deverão demorar dois anos e meio.
“Estou a planear eventos para o fim deste ano ou inicio do próximo ano. Margaret Atwood quer vir a Lisboa para fazer conversações, Roger Chartier quer trazer alunos a Lisboa, para fazer um seminário, Maryanne Wolf interessa-se muito pelos problemas da leitura e da dislexia, e vamos ter isso em Lisboa. Quero organizar leituras de atores portugueses que leem textos de romancistas, poetas, autores de teatro, sobre a leitura da infância”.
Enquanto futuro diretor do CEHL, Alberto Manguel tem planos para alargar a sua atividade, com a criação de uma rede entre a biblioteca e a Fundação José Saramago, a Casa Fernando Pessoa e os vários festivais literários que se realizam no país.
Internacionalmente, gostaria de “criar uma relação entre este centro e o Centro Gutenberg, na Alemanha, cujo ex-diretor vai fazer parte do comité de honra, ou a Biblioteca do Congresso, em Washington, cuja diretora faz parte do comité, e assim sucessivamente”.
No fundo, Alberto Manguel projeta uma biblioteca em Lisboa, que vai ser portuguesa, mas também internacional, porque uma “biblioteca toma a identidade dos leitores que a usam” e esta vai ser utilizada por investigadores de todo o mundo, já que “o comité de honra que se formou tem investigadores africanos, franceses, argentinos, espanhóis, colombianos… é um lugar que reúne distintas nacionalidades, mas todos são leitores”.
“Vamos ter investigadores que estudam a relação da música e da leitura da música com a palavra, vamos criar um fundo musical, que não estava na minha biblioteca. Estou também em conversações com um investigador português, Daniel Melo, que trabalhou muito sobre a leitura pública e bibliotecas públicas em Portugal, e vamos ter uma secção sobre a leitura em Portugal. Vai haver uma secção de romances estrangeiros sobre Portugal, ou que se passam em Portugal”.
Alberto Manguel adiantou ainda que “no centro da biblioteca vão estar todos os livros sobre a história da leitura, história do livro e das bibliotecas, autobiografias de livreiros e bibliotecários, e livros mais técnicos sobre o ensino da leitura, este vai ser o coração da biblioteca”.
Quando escreveu o livro “Embalando a minha biblioteca” (Tinta-da-China), na qual descreve a penosa tarefa de desmontar e encaixotar a sua biblioteca, que durante 15 anos ocupou um antigo presbitério em França, Alberto Manguel estava a escrever o “obituário” da sua biblioteca, e confessa agora que houve um momento em que pensou que os livros iam acabar nas caixas, iam desaparecer, iam ser vendidos, e a biblioteca não existiria nunca mais.
“Mas é uma lição, de que não se deve perder a esperança, e agora sinto-me como as irmãs de Lázaro, que acreditavam que ele estava morto, e viram-no sair da tumba”.
Esta “ressurreição” da biblioteca — que diz ser o último sonho que queria concretizar — deveu-se à “generosidade” da Câmara de Lisboa, que lhe cedeu um espaço a troco da doação da sua biblioteca.
No entanto, doar a biblioteca era algo que há uns anos se lhe afigurava impossível. Isso mesmo escreve no livro, quando conta que a biblioteca da sua escola tinha um aviso, no qual se lia “Estes livros não são seus: pertencem a todos”, para depois acrescentar: “A minha biblioteca nunca poderia ter um aviso destes. Para mim, era um lugar absolutamente privado, que me cercava e, simultaneamente, me refletia”.
Agora, perante a iminência de nunca mais ter biblioteca, viu-se obrigado a rever esta convicção e passar aquilo que era privado para o domínio público, o que representa um “desprendimento necessário”.
“Quando era a minha biblioteca privada, era a minha identidade, a minha autobiografia, agora vai ser a autobiografia de todos os outros leitores, passa de privada a pública”, disse, acrescentando: “Há uma relação distinta, de um monólogo que se converte em diálogo, um amor privado que se converte num amor público, e é isso que eu quero que a biblioteca seja”.
Para Alberto Manguel, tornar pública uma biblioteca que representava a sua “autobiografia”, porque era construída de associações pessoais, afetos e memórias — o escritor recusa o epíteto de bibliófilo, porque a sua coleção é de valor sentimental, sem os fundos nem o saber de um colecionador profissional –, era como expor a sua intimidade.
No entanto, reconhece que esta foi uma “abertura voluntária e necessária: Se as coisas tivessem sido diferentes em França, eu sempre acreditei que ia morrer na minha biblioteca”.
Assim sendo, e tendo tido que abandonar o que chamou de “paraíso”, Alberto Manguel foi salvo pela oferta de Lisboa e admite que escolheu esta cidade, só porque a cidade o escolheu a ele.
“Nenhum outro país, nenhuma outra cidade me fez essa oferta. Lisboa foi a única cidade que me propôs trazer a minha biblioteca para aqui e instalá-la em termos muito generosos”, reconheceu, mas manifestando satisfação por esta ser uma das cidades “mais civilizadas e mais culturais do mundo, e com uma história muito arreigada à história do livro e das bibliotecas”.
Sobre o custo que terá toda esta empreitada — suportada pela autarquia — Manguel afirma desconhecer por completo, mas está já a negociar apoios e mecenatos, inspirado pelo trabalho que fez na Biblioteca Nacional da Argentina, enquanto seu diretor.
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