Milena tem agora 39 anos, é arquitecta e trabalha e vive em Lisboa. Tinha começado a estudar árabe na Universidade Nova quando decidiu que a melhor forma de aprender a língua era num país de origem. "Fiz uma pesquisa e encontrei imensos cursos em Marrocos ou na Jordânia, mas o Iémen tinha a vantagem de ter pouca influência do exterior e ser um país onde só se fala árabe", explica. "Além disso, os edifícios são fascinantes". Conciliou a viagem com as férias e inscreveu-se num curso de um mês e meio num instituto em Saná, a capital. Como apanhou parte do período do Ramadão, acabou por ficar dois meses. Estávamos em 2013.
Sameh tem actualmente 37 anos, era contabilista e sudanês de nascimento. Conheceu Milena através de um amigo comum, na altura a criar um blogue sobre arquitectura no Iémen. "Saí do Iémen a pensar um bocadinho no Sameh e com uma vontade enorme de voltar. Por tudo: por ele, pela cidade, pela cultura, pela bondade das pessoas. De todas as viagens que fiz, posso dizer que este é o povo mais acolhedor. Talvez por serem tão pobres partilham tudo e, eventualmente, por eu ser uma mulher a viajar sozinha protegiam-me ainda mais", conta Milena.
Milena e Sameh mantiveram-se em contacto, cada um no seu país, e as conversas diárias foram ganhando peso. Nesta altura, Milena já tinha a certeza de que voltaria ao Iémen e, através de conhecimentos no Ministério do Turismo local, preparava-se para realizar um trabalho de fotografia sobre a arquitectura e o património iemenitas. "Em Agosto de 2014, quando era suposto voltar lá, escreveram-me a dizer que não podiam autorizar a minha entrada, não era seguro". Foi na época das primeiras manifestações no Iémen, que fechou fronteiras a estrangeiros. Os ministérios dos Negócios Estrangeiros dos diversos países, incluindo o de Portugal, também desaconselhavam os seus cidadãos a viajar para o Iémen. Este foi o primeiro revés.
Milena estava decidida a ir ter com Sameh e tentou, sem êxito, obter um visto. Foi Sameh quem lho conseguiu através da empresa onde trabalhava - “não sei quanto terá pago”, diz a rir. E lá foi para o Iémen com o seu business visa, numa das aventuras mais caricatas desta história. “Supostamente eu ia vender azeite, promover azeite português no Médio Oriente. E levava na mala umas seis garrafas compradas num supermercado, como se fossem amostras. Lembro-me que uma era de azeite aromatizado com alecrim”. No aeroporto estranharam vê-la chegar - uma mulher, ainda por cima de cabelo claro e olhos azuis, não passa despercebida -, mas o visto estava em ordem e não tiveram outro remédio senão deixá-la entrar. O pior foi depois.
Passados dois dias, Sameh recebe um telefonema da polícia a pedir informações sobre Milena e o seu negócio; teria de se apresentar rapidamente às autoridades. Sameh respondeu que nem pensar, Milena é mulher, jamais poria os pés numa delegação da polícia, e ele próprio poderia levar-lhes as amostras de azeite que ela trouxera de Portugal e provar a intenção da visita. Foi o que fez. As coisas resolveram-se – o azeite ficou com os polícias.
Quatro semanas depois da sua chegada, e já com as autoridades oficiais a apelarem aos estrangeiros para abandonarem o país, Milena estava de regresso a Lisboa. “Ainda pensei em esconder-me e ficar por lá”, recorda. Mas, “nessa altura o Sameh achava que eu devia vir-me embora e acreditava que estando longe iria acabar por esquecê-lo”. Não esqueceu.
“Lembro-me de um funeral que foi atacado. Passados uns minutos as pessoas correram para socorrer os feridos, chegaram carros, ambulâncias e, de repente, novo bombardeamento. Bombardeiam sempre duas vezes o mesmo local. Morreram umas 500 pessoas, um horror”Sameh
Rebenta a guerra no Iémen
A guerra civil iemenita é oficialmente declarada a 19 de Março de 2015. Em confronto, o governo internacionalmente reconhecido, suportado pela Arábia Saudita, e mais tarde pelos separatistas do sul, leais ao governo de Hadi e que reclamam a independência da República do Iémen, e os houthis, um movimento político-religioso maioritariamente xiita que começou por apoiar o ex-presidente Saleh, que acabariam por assassinar por divergência de opiniões. Os primeiros são apoiados pelos Estados Unidos, Reino Unido e França, os segundos pelo Irão, Rússia e China. A Al-Qaeda, apoiada pelo Estado Islâmico do Iraque e da Síria, também ataca.
Milena admira-se que em Portugal ninguém fale desta guerra. Para mais, estando diversos países da União Europeia envolvidos – e alguns, “como a França, a Itália e a Dinamarca, até vendem o armamento que vai alimentando o conflito”. Sameh descreve o horror que se vive todos os dias: bombardeamentos constantes, mortos, fome e recrutamento de crianças para o combate. E relata: “Eu e o meu pai trabalhávamos no mesmo edifício, em andares diferentes. Um dia houve um bombardeamento, os vidros partiram-se e saltaram estilhaços por todos os lados. Fugimos para a rua sem saber um do outro e demos a volta ao quarteirão até nos vermos e abraçarmos, ele meio a chorar, eu meio a chorar. De repente, dissemos os dois: “A mãe!” E lá fomos a correr saber se a minha mãe estava bem... Horrível”.
As pessoas temem pelas suas vidas, mas noutras cidades é ainda pior, e cada vez mais os alvos são civis. Sameh recorda outro episódio: “Lembro-me de um funeral que foi atacado. Passados uns minutos as pessoas correram para socorrer os feridos, chegaram carros, ambulâncias e, de repente, novo bombardeamento. Bombardeiam sempre duas vezes o mesmo local. Morreram umas 500 pessoas, um horror”.
Milena, via Skype, também assistiu a bombardeamentos e a chamadas interrompidas pela fuga de Sameh para um local mais protegido. Por felicidade, a Internet nunca falhou. Mas em 2016 não havia electricidade e houve um tempo em que “não havia gás, petróleo ou querosene. Não havia geradores e trabalhávamos com a luz solar ou baterias, que passaram a ser caríssimas. Uma luta diária, do nascer ao pôr-do-sol”.
Agora há crianças-soldados. “Os rebeldes vão buscar miúdos de oito, dez, doze anos à rua, a casa dos pais, e convencem-nos a combater, dizem-lhes que são heróis, homens a sério, se lutarem pela pátria e se se vingarem do invasor. Colocam-lhes uma arma nas mãos e transformam-nas em crianças-soldados e o pior é que não sabem melhor, disparam a matar. Fazem-lhes autênticas lavagens cerebrais, aconteceu com um vizinho meu”, afirma Sameh.
“Esta já não é uma guerra iemenita, não é uma guerra entre árabes e persas, é uma guerra entre os Estados Unidos e a Rússia”, continua. “A Arábia Saudita quer ajudar, dizem que tem um programa de desenvolvimento, mas já ninguém quer saber disso, só querem que os deixem em paz. O povo é excelente e bondoso, não quer saber se são muçulmanos, judeus ou outra coisa qualquer, só quer prosseguir com a sua vida. E já não confia em ninguém”. Esta é a realidade de uma guerra “que dá dinheiro a muitas economias” e que “não é justa para o seu povo, um dos mais pobres da região”.
Comparado com isto, ir à polícia na vez de Milena, deixar as garrafas de azeite e pagar uns cobres, não foi nada. “Nessa altura ainda sabia dar a volta ao sistema e tinha dinheiro para responder a estas aventuras. Quando se pedia um favor, estava implícito ter de dar alguma coisa em troca e ninguém se fazia rogado nem ofendido, era assim. Depois de Março de 2015 deixámos de ter um sistema a funcionar, ainda que mal, e tudo passou a ser preocupante”, diz Sameh. E a sua história comprova-o.
Um pedido de ajuda a António Guterres
Depois de quatro semanas intensas, num contexto diferente e que sempre a fascinou, Milena teve dificuldade em voltar para Portugal. “Saná é uma cidade antiga e cheia de histórias, e o Sameh é um excelente contador de histórias, lendas sobre a cultura árabe, contos das mil e uma noites”, encanta-se Milena. “Eles têm muito enraizada a transmissão oral de tradições, do conhecimento, e tudo isso deixou-me uma ligação muito forte”.
A primeira explosão na capital iemenita aconteceu uma semana depois do regresso de Milena a Lisboa. Agora era impossível parar, tinha de fazer alguma coisa para pôr Sameh a salvo. “Em 2015, ainda pensámos que ele pudesse vir cá passar o Natal”, conta. Mas nessa altura já era difícil conseguir um visto para entrar no Espaço Schengen e mais tarde tornou-se impossível, uma vez que Sameh é sudanês, precisava de documentos, e todas as embaixadas no Iémen fecharam, à excepção da russa e da iraniana. Foi então a vez de Milena tentar a sorte e ir a Omã, que faz fronteira com o Iémen, para depois se juntar a Sameh. Não resultou.
"É como se estivessem à espera que eu mentisse ou representasse para conseguir o estatuto [de refugiado], que mendigasse e não tivesse formação, como se para ser refugiado não pudesse ter dignidade, estar limpo, ser educado."Sameh
“Os anos 2016 e 2017 foram bastante difíceis. No fundo, passámo-los a tentar fazer alguma coisa para ele vir para cá ou para eu ir lá”, revela Milena.
Com o Iémen em guerra, Milena teve a ideia de apelar às Nações Unidas, “até porque estava com medo do que lhe pudesse acontecer, com a cidade a ser bombardeada. Pensei que pudesse vir para Portugal com o estatuto de refugiado e a primeira coisa que fiz foi escrever uma carta a António Guterres, então Alto Comissário para os Refugiados. A secretária respondeu-me a dizer que ia contactar a delegação das Nações Unidas em Saná, onde Sameh devia ir”. O processo correu tão bem ou tão mal que Sameh pediu a Milena: “Nunca mais me peças para ir lá”.
“Foi a pior experiência da minha vida”, diz Sameh. Sentiu-se humilhado. “Candidatar-me ao estatuto de refugiado era totalmente novo para mim, não é que eu quisesse esse estatuto, mas precisava dele. Não queria dinheiro, não precisava de assistência, nada disso, mas essas coisas fazem parte do processo. É como se estivessem à espera que eu mentisse ou representasse para conseguir o estatuto, que mendigasse e não tivesse formação, como se para ser refugiado não pudesse ter dignidade, estar limpo, ser educado. E eu cheguei lá de carro, no meu carro, ficaram surpreendidos; as pessoas vão lá rebaixadas. E levava os meus pais, a minha irmã, o meu irmão. Disse-lhes que só queria sair dali e levar a minha família. Não disseram nada, mas foi como se perguntassem o que estava eu ali a fazer e já soubessem que não podiam ou não iriam fazer nada por mim, mas tivessem de cumprir o protocolo”.
A delegação das Nações Unidas demorou a marcar a entrevista, mas passavam apenas dois dias quando chegou o veredicto: estatuto de refugiado negado. De certa forma, foi um alívio para Sameh. “De alguma maneira percebo que tenham rejeitado dar-me o estatuto de refugiado, imagino que haja pessoas a precisar dele muito mais do que eu”, conclui.
Mais tarde, Milena percebeu que, a ter resultado, Sameh não poderia escolher o seu destino, e o mais provável era acabar num campo de refugiados no Egipto ou na Turquia, de onde, passado sabe-se lá quanto tempo, seria enviado para uma terceira localização. “Têm de seguir os planos definidos pelas Nações Unidas para os refugiados, mesmo que exista uma solução à vista, o que não faz muito sentido”, considera.
Era preciso pensar noutra estratégia. Voltar ao país de origem, o Sudão, não era opção. Milena falou com a Organização Internacional para as Migrações que acabou por responder que, caso conseguisse obter uma autorização do serviços competentes no seu país, ou seja, do SEF – Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Sameh seria levado de Saná para qualquer país seguro na Europa. Daí, pensou, seria mais fácil trazê-lo para Portugal. Milena escreveu à directora do Departamento de Asilo a Refugiados do SEF, Maria Emília Lisboa, e chegou a ter uma reunião com alguns funcionários, “mas não ficou nada resolvido ou clarificado e nunca me responderam à carta ou ao pedido de reunião com a direcção”. Até hoje, apesar de os serviços públicos estarem obrigados por lei a dar uma resposta aos cidadãos no prazo máximo de quinze dias, de preferência antes, mediante a urgência do assunto. A carta que escreveu “tem o carimbo do SEF porque fui entregá-la em mão”, adianta. Milena tem um dossier sobre todo o processo, que guarda “religiosamente”.
Um anel de noivado via DHL
Milena não estava pronta para desistir. “Já não me lembro do motivo, mas Sameh tem uma parte da família nos Emirados Árabes Unidos e fui visitá-los, sempre tinha um bocadinho de Sameh comigo”, conta Milena. O irmão que vive com a família da mulher, todos do Sudão, tinha tido um filho há pouco tempo. “O bebé não tinha ainda um mês e era a cara do Sameh”. Milena tenta disfarçar a emoção: “Isso ainda me aproximou mais dele”.
Sentia a falta de Sameh e sentia também que tinha de fazer alguma coisa. “Nunca dei muito pelo tempo passar, não estava parada, estava sempre a tentar transpor mais um obstáculo, o que me dava esperança, porque cada vez que resolvia um problema estava mais próxima de uma solução. Não pensava que atrás de um obstáculo podiam estar mais vinte”.
Os serões de Milena e Sameh eram passados ao telefone, quatro, cinco horas de conversa. “Ele continuava a contar-me histórias e o meu entusiasmo crescia”. “Um dia”, conta Sameh, “falávamos sobre o que não tinha resultado, todas as tentativas falhadas. E a Milena diz-me: “Penso que se tivéssemos um laço, um parentesco, seria diferente. O que achas?” Foi assim que Milena pediu Sameh em casamento. “Foi muito pouco romântico”, diz ela. Os dois riem ao lembrar o episódio.
“Há um provérbio árabe que diz: 'A minha mulher é a minha coroa', literalmente. Porque quando um homem desposa uma mulher está a tomá-la de todos os outros e tem de respeitá-la acima de todas as coisas”Sameh
Sameh estava renitente; ambos sabiam o que queriam, mas não era a melhor altura e ele queria fazer as coisas da maneira certa. “Não há certo ou errado para isto”, disse Milena. E, para sua surpresa, Sameh enviou-lhe um anel de noivado via DHL. Uns meses mais tarde faziam o casamento virtual.
“Foi muito complicado, foi tudo complicado”, lembra Sameh. “No Iémen não existe o casamento civil, apenas religioso. Precisávamos da autorização do pai da Milena”, uma carta em que este declarasse que dava a sua filha a Sameh. Na verdade, não a Sameh, mas ao seu melhor amigo e padrinho, que seria o representante do pai de Milena. “Depois fomos de cartório em cartório para encontrar um juiz que celebrasse o contrato de casamento. Ninguém queria fazê-lo, diziam que ela era católica e eu muçulmano”, entraves mais do que muitos. “Até que encontrámos um juiz, óptima pessoa, que disse: “E então? Estão no vosso direito, é a vossa vida, a vossa vontade”. E fui registar-me no Ministério dos Assuntos Internos, o que levou tempo, depois no Ministério dos Negócios Estrangeiros, o que levou mais tempo. Para todos os documentos é preciso pagar um preço, aquele que cada um decide cobrar. Não que o sistema não fosse corrupto antes, mas desde que há guerra é a anarquia total. A seguir foi preciso enviar os papéis para Lisboa e daí para a Embaixada de Portugal na Arábia Saudita, para reconhecerem as assinaturas em nome da República do Iémen, sem esquecer que a minha certidão de nascimento é do Sudão e teve de ser reconhecida na Embaixada de Portugal no Egipto...”, desabafa Sameh.
Casaram em Novembro de 2016, por procuração. “Estava eu, um amigo nosso em representação do pai da Milena e o juiz”, relembra o noivo. “No final o juiz deu-nos os parabéns e umas passas para celebrarmos”, ri-se. É que a tradição diz que o noivo deve levar passas para celebrar a união. Sameh tinha pensado nisso, mas não conseguiu encontrá-las. Foi uma surpresa agradável quando o juiz abriu uma gaveta e de lá do fundo tirou os frutos secos. “Ah, eu não tive isso”, diz Milena entre risos. Há coisas que só agora descobrem, ao contar a história de fio a pavio pela primeira vez.
Finalmente casados, mas cada um em seu país. Inicialmente, Sameh fez algumas tentativas para levar Milena para junto de si. “Queria que ela conhecesse a minha família, o meu pai, a minha mãe... No fundo estava esperançado que, neste mundo estranho, a guerra pudesse acabar tão depressa como começou”, diz.
“Fiz algumas diligências a explicar que queria a minha mulher junto de mim, e houve até alguém no departamento que emite os passaportes que me disse: 'Se a quer assim tanto, vá ter com ela. Mas não queremos cá olhos azuis, não assumimos a responsabilidade pela entrada dela no país'. E então esperámos, esperámos, até que decidi que tinha de vir para Portugal”. A tristeza na voz de Sameh é indisfarçável quando conta isto. “Foi uma decisão difícil e fácil ao mesmo tempo. Fácil porque, finalmente, vinha ter com a Milena - já tinha feito mil cenários na minha cabeça a imaginar como seria quando a visse, quando ela estivesse assim pertinho de mim. Difícil porque deixo o meu pai e a minha mãe no meio do fogo. Nunca antes os tinha deixado nem tampouco viajado para onde quer que fosse”. E esta foi uma viagem incrível.
Os pais de Sameh, tal como os de Milena, sempre apoiaram o filho. “Aconselharam-me a vir para Portugal: “Vai, não te preocupes connosco, está tudo bem. É a tua vida, a rapariga está à tua espera”. O meu pai chegou mesmo a perguntar-me: “Até quando achas que vai esperar por ti?” Dizia-me que já se arranjavam sozinhos muito antes de eu ter nascido e iria continuar a ser assim. [risos] São verdadeiros heróis e adoram esta relação, queriam que resultasse”, diz emocionado.
“O meu pai nunca falou com o Sameh, mas o Sameh escreveu-lhe uma carta”, revela Milena. “Tu recebeste a carta e deste-lha?!”, pergunta Sameh admirado. “Claro, e guardam-na com imenso carinho”.
Sameh explica que na sua cultura quando um homem pede uma mulher em casamento ao pai da noiva tem de lhe garantir que a sua filha será a jóia da coroa. “Há um provérbio árabe que diz: 'A minha mulher é a minha coroa', literalmente. Porque quando um homem desposa uma mulher está a tomá-la de todos os outros e tem de respeitá-la acima de todas as coisas”. “Um dia”, confessa Milena, “gostava de ter um casamento tradicional sudanês”.
O encontro no Egipto antes de Portugal
Passaram dois anos desde o casamento e nada se resolvia: Milena e Sameh continuava separados. Sentiram-se desamparados e impotentes, mas nunca desistiram. “A embaixada portuguesa no Egipto é também responsável pelo Sudão, mas não queria comprometer-se”, afirma Milena. “Mas eu tinha estado com os juristas da ACM [Alto Comissariado para as Migrações], que me ajudaram imenso. De todas as entidades que contactei, foi na ACM, com o Dr. Pedro Calado e outros juristas, que encontrei as pessoas mais empenhadas. Deram-me toda a legislação de que eu precisava e garantiram que Sameh tinha direito a vir. Levei a legislação comigo para o Cairo para ter a certeza de que não nos diziam que não”.
“Ela preparou um arsenal”, afirma Sameh orgulhoso. “Sabia todas as leis onde cabia a nossa situação e não estava disposta a ouvir um não. Eu pensei que não ia resultar, mas quis dar mais uma oportunidade. Ela estava bem munida e tinha 100% de certeza de que ia dar certo. Mas foi muito cansativo”.
Sameh já tinha saído do Iémen para o Sudão. Antes já tinha feito a viagem de Saná para Áden, agora feita capital. A família e amigos “viajaram” com ele, agarrados ao telefone, seguindo-lhe todos os passos. “Foi preciso parar em diversos checkpoints e tínhamos definido um plano: teria de falar-lhes de duas em duas horas e eles esperariam no máximo mais meia hora antes de mandarem alguém atrás de mim, e teria de fotografar tudo: autocarro, pontos de referência, pessoas que nos mandassem parar, tudo o que permitisse identificar onde me encontrava”, diz Sameh. “Jamais voltaria a fazer o percurso inverso”.
“Não sabia nada disso”, diz Milena impressionada. “Claro que não, quisemos poupar-te”, responde Sameh. Uma vez no aeroporto, foi preciso explicar o passaporte caducado. “Eu sabia, mas ia regressar ao meu país. No Iémen não há embaixadas, não havia nada que eu pudesse fazer. Uma das consequências da guerra é que todos os conseguiram colocaram um filho num cargo para o qual não tem qualificações e agora ninguém sabe as regras mais elementares. Só depois de eu ter ameaçado ir dali direito à base militar – o Sudão está com a convenção que ataca o Iémen – é que se assustaram um pouco e foram buscar o chefe do aeroporto: 'Se vai voltar para o seu país, o problema é deles, não nosso'. E lá fui”.
No Sudão, nova questão: “Deixaram-me entrar com a condição de só renovar o passaporte e sair. Como não fiz o serviço militar no Sudão, queriam empurrar-me para o Exército”. Sameh teve de entrar e sair e ficou escrito que da próxima vez que for ao Sudão terá de fazer a tropa. “Por tudo isto, não me era possível voltar atrás, estava sem saída”.
Mas não foi preciso. Vieram juntos do Egipto, onde se encontraram, e foi lá que Sameh lhe ofereceu o anel que Milena traz no dedo, comprado no Sudão, e que representa o “amor infinito”.
“Não gostei do Egipto”, confessa Sameh. Adorei ter lá uma família enorme, mas só pensava na Milena. Apesar disso, somos ambos doidos o suficiente para ter tentado ali a nossa sorte caso a embaixada tivesse recusado o meu visto”. O que esteve para acontecer. No email que recebeu estava escrito que o visto não seria concedido. “O Egipto é para os egípcios, vá ao Sudão”, disseram.
Tudo acabou bem e a viagem do Cairo para Lisboa já foi feita em conjunto. Milena e Sameh estão a viver como marido e mulher desde Outubro do ano passado. O Natal de 2018 já foi passado em Portugal e Sameh está a trabalhar desde Janeiro: é analista de conteúdos de vídeo na multinacional norte-americana Cognizant. “A empresa tem um centro multicultural extraordinário, conheço espanhóis, alemães, turcos, gente de todo o mundo. É um ambiente fantástico e são todos muito simpáticos, interessados no background de cada um, e as origens são um tema de conversa habitual. É muito interessante e divertido conhecermos aqueles com quem trabalhamos, só tenho a agradecer a oportunidade”, afirma Sameh.
Sameh, que nunca tinha viajado, diz que Lisboa é “a coisa”, e foi a cidade que mais o “impressionou”. E já tem planos para gastar o seu primeiro ordenado: “Uma aliança de casamento para a Milena”. Melhor do que isto, só a certeza de poder voltar ao Iémen e visitar os seus pais, mas isso terá de esperar mais um pouco, até Sameh conseguir a nacionalidade portuguesa. A língua já fala: “Eu vou falar português contigo”, sorri.
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