Em São Paulo, a relação com a minha mãe era dominada por orelhões caprichosos que comiam meus cartões. A associação com elas ficou tão forte que, quando via um orelhão, logo pensei nela, como se fosse uma extensão inanimada dela, ambas magras e cabeçudas.
Sempre de domingo, quando ligava para a minha mãe, observava os minutos de crédito diminuindo rapidamente enquanto ela contava dos vizinhos e das amigas do clube de ginástica dela.
Demorava até o penúltimo minuto do cartão para perguntar como eu estava.
Nessa hora, o entusiasmo com o qual falava dos vizinhos já não estava mais na sua voz, e perguntava com o tom de quem não espera ouvir nada de bom.
Imagens com a minha namorada passaram pela minha cabeça neste último minuto do cartão, dos braços finos dela e da sua pele muito branca, que tinha alguns pelos longos e escuros crescendo em cima, e que passávamos quase todos os minutos que tínhamos juntas peladas na minha cama box spring, e que eu ficava muito suada e ela não, porque ela simplesmente não transpirava e sempre cheirava bem, mas que no nosso relacionamento, nunca passamos de um certo ponto, por exemplo, não fazíamos xixi uma na frente da outra, e muito menos cocô; e que conversávamos pouco, mesmo tendo tudo para conversar, tudo para esclarecer; e que nós não contávamos ou ríamos de todos os nossos defeitos, o que eu acreditava ser a melhor coisa de um relacionamento, e que por tudo isso, eu não sabia se tínhamos um relacionamento não, ou o que era, e que não arrumava a coragem de pôr a pergunta, nem a mim nem a ela.
Mas nada daquilo parecia possível contar.
Provavelmente eu contava algo sobre a minha vizinha Helga nos restantes 60 segundos, já que a minha mãe falava dos vizinhos o tempo todo, assim eu mantive a tradição. Eu posso ter contado como ao domingo eu sempre ia ao Parque Ibirapuera com ela, e como ela era uma mistura entre alemã e brasileira, mas provavelmente mais alemã, porque se chateava quando eu chegava uns minutinhos mais tarde da hora combinada para irmos malhar no parque. Eu considerava o passeio ao parque uma atividade de lazer, enquanto Helga orquestrava e estruturava cada passo, desde o caminho de carro e o lugar onde ela gostava de estacioná-lo, até o local que ela achava ideal para nós colocarmos os nossos calcanhares para esticarmos os tendões das pernas, o que era um pequeno chafariz na entrada mais perto de casa. Depois desses rituais preliminares, fomos diretamente para a pista de cooper, onde completávamos uma sequência de aparelhos por ela predeterminados.
Ela gostava particularmente de uma espécie de balanço com alças que supostamente trabalhava a cintura, a falta da qual, no meu caso, dava motivo por uma certa preocupação, e sempre quando chegávamos a este aparelho, a Helga dava uma pequena parada de contemplação, em que ela passava o olhar pelo meu corpo, demorando na região da barriga, e terminava por dizer que este exercício iria me fazer especialmente bem.
Texto por Doris Bunch. Hoje, Dia dos Namorados, publicamos uma seleção dos textos que resultaram da iniciativa lançada pelo SAPO24 e O Primeiro Capítulo, assinados por novos nomes de quem tem na escrita uma forma de expressão.
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