Os ativistas foram inicialmente acusados de “tentativa de rebelião e atentado contra o Presidente da República”, a 20 de Junho de 2015, em Luanda, e posteriormente julgados pelo crime de “associação de malfeitores”, a 16 de Novembro do mesmo ano. O caso tornou-se o mais mediático da justiça angolana naquele ano, abrindo caminhos jamais vistos para o debate nos espaços de concertação social, com maior realce para a internet, o que acabou por influenciar a tomada de consciência cívica dos cidadãos angolanos, maioritariamente jovens, sobre a vida política, económica e social do país.
Volvidos cerca de dois anos desde a detenção e libertação por amnistia judicial, aquele que passou a ser conhecido como o caso “15+2” demonstrou, de acordo com fontes angolanas do SAPO24, algumas das fragilidades da justiça em Angola. Segundo o investigador do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, Precioso Domingos, “o sistema de justiça de Angola ainda é um arremesso a favor do poder político, apesar de algum avanço alcançado neste domínio”. Ou seja, frisou, “é um instrumento utilizado para favorecer o governo, sobretudo nas questões de fórum político como foi o caso ‘15+2’”, afirmou.
Precioso Domingos é também de opinião que a forma como o caso “15+2” foi conduzido “teve efeitos inesperados e serviu de evidência para os cidadãos cépticos sobre as insuficiências da justiça angolana”. Para o também economista, este caso “vai pesar contra o partido que sustenta o actual governo nas eleições gerais de quarta-feira, 23 de Agosto”.
“As autoridades serviram-se de uma amnistia forjada para encerrar o caso. E isto tornou evidente a intenção primária dos dirigentes [do MPLA] ”, salientou, acrescentando que o objetivo de toda essa encenação política e judicial “era a retirada dos jovens de cena”, pois eram “uma espécie de ‘pedra no sapato’ para o Presidente [José Eduardo] dos Santos”, frisou.
Uma sociedade civil mais actuante
Na perspetiva das fontes contatadas pelo SAPO24, o caso “15+2” contribuiu para uma maior participação da sociedade civil na vida política angolana, embora tenham existido várias tentativas de obstrução das liberdades fundamentais. Para o diretor-executivo da ONG OMUNGA, José Patrocínio, “a não observância dos direitos e das liberdades e garantias são mecanismos utilizados para evitar a participação dos cidadãos nas decisões do país”, mas sempre houve em Angola, pelo menos nos últimos dez anos, afirmou, uma crescente tomada de consciência política e cívica.
Entretanto, José Patrocínio também acha que “a coragem de evidenciar as opiniões em relação às questões da vida política, económica e social de Angola é o que sempre faltou nos angolanos, sendo que a cultura do medo ainda suplanta a consciência crítica entre os cidadãos”, garantiu.
O também representante da Plataforma Eleitoral da Sociedade Civil de Benguela, apelou à uma maior participação da sociedade civil angolana na vida política e cívica da nação, sem necessariamente “filiar-se uma organização partidária para prestar o seu contributo ao país”.
Já a socióloga Cesaltina Abreu, na sua intervenção aquando da apresentação do relatório da OMUNGA sobre intolerância política em Angola, afirmou que “a construção da cidadania ou da consciência democrática não acontece apenas por decreto ou porque a constituição [lhe] faz referência, mas é preciso se abra espaço para o diálogo sobre os problemas sociais e políticos, de modo tornar plural a discussão do país”.
Para a também observadora das eleições gerais de 23 de Agosto, “a democracia deve ter em vista a ideia da inclusão social, do alargamento da base social, com a perspetiva de tornar cada vez mais plural a constituição da base social e promoção da cidadania, porque as pessoas querem participar nos processos de decisão do país”.
Contudo, Precioso Domingos, voltando ao caso “15+2”, assegura que o sistema judiciário em Angola está bem definido do ponto-de-vista da separação de poder, “mas do ponto-de-vista prático, ou objetivo, há uma concentração total” das instâncias do Estado angolano no poder político, “o que torna o país fragilizado”, afirmou. Para o investigador do CEIC, “infelizmente, o que se assiste em Angola é consequência da concentração do poder político, que, em si mesmo, absorveu as outras duas formas de poderes, judicial e legislativo ou parlamentar”, lamentou.
O desmoronar do “castelo de areia”
O setor petrolífero ainda é responsável por mais de 95% das exportações angolanas, de acordo com dados oficiais, o que revela um país com uma balança comercial não diversificada e com altos índices de vulnerabilidade às oscilações do preço do petróleo no mercado internacional.
Depois de um curto período de crescimento, nomeadamente de 2002 a 2008, em que as receitas do petróleo foram distribuídas de “uma forma muito desigual”, de acordo com dados do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, que aponta que “60% do PIB foram captados por menos de 20% da população”, a economia angolana entrou numa rota de abrandamento que conduziu ao desmoronamento de um “castelo de areia” que não resistiu ao sopro da baixa constante do petróleo a partir de finais de 2014.
Entretanto, contrariando as “desculpas oficiais” para a atual crise económica em Angola, o CEIC atesta que “o abaixamento do preço do barril do petróleo só veio pôr a nu as falhas de gestão económica num país que foi capaz de gerar cerca de 580 mil milhões de dólares [norte-americanos] de receitas de exportação de petróleo”, mas não foi capaz de produzir mais e distribuir melhor. “A mais importante prioridade definida pelo MPLA foi a da acumulação primitiva de capital e a criação de uma burguesia nacional capaz de disputar o poder financeiro às empresas estrangeiras existentes e comprando ativos mobiliários e imobiliários nas praças estrangeiras e deixando o país sem 29 mil milhões de dólares americanos, colocados no exterior a título de transferências de capitais”, lê-se no Relatório Económico de Angola 2016, do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola, que lamenta o facto de, além de não terem sido feitas reformas estruturais fundamentais na economia, os próprios angolanos com poder financeiro não terem confiança em si nem no seu país.
Como consequência da não diversificação económica e dinamização do seu tecido produtivo, Angola continua a ser um país altamente dependente das importações e, diante da carência de divisas para pagar a compra de bens e serviços no exterior, registou-se, desde 2015, a subida em flecha da inflação (em 2016 foi superior a 40%), o aumento da dívida pública e a desvalorização da moeda nacional, o kwanza, fragilizando o poder de compras das famílias, 60% das quais a viver com menos de 2 dólares por dia, segundo dados divulgado pelo CEIC.
Precioso Domingos explica que “a não diversificação da economia faz de Angola a segunda economia do mundo mais concentrada no petróleo, depois do Iraque”, sendo que, resultado da baixa do preço do petróleo, a economia ressentiu-se e com isso "ocorreu o encerramento de várias empresas estrangeiras, despedimentos em alguns setores da função pública e aumento dos níveis de desemprego”, o que “colocou o país na ponta da navalha”, afirmou ainda o economista e professor de microeconomia internacional na Universidade Católica de Angola.
Segundo este analista, a “corrupção é o grande cancro que enferma o crescimento económico em Angola” e “enquanto não for combatida será difícil superar os níveis de subdesenvolvimento registados” atualmente no país, alertou. Para Precioso Domingos, a pouca qualidade das infra-estruturas económicas em Angola é consequência da corrupção que assola o país. “A corrupção que há no sector das infra-estruturas retira o efeito que as obras deviam gerar à economia, e posteriormente acabam comprometendo todo processo de diversificação económica e consequente desenvolvimento”, analisou.
Precioso Domingos lamenta ainda que a crise tenha anulado “a tendência de surgimento de uma classe média em Angola”, e limitado “consideravelmente a perspetiva de ascensão dos mais desfavorecidos”. “Como consequência da desvalorização da moeda nacional, a escassez do dólar, a subida dos bens de primeira necessidade, tendo em conta a perda do poder compra, anulou o aparecimento tímido da chamada classe média, tornando visível a diferença entre pobres e ricos”, explicou, em linha com o relatório do CEIC, que atesta que “a distribuição de rendimento em Angola é tão desigual, díspar e acintosa que remete para a vala dos deserdados cada vez mais pessoas”, pois “a crise financeira e económica, iniciada em finais de 2013, está a agravar a situação de exclusão social no país, atirando crescentes camadas da população para situações de pobreza absoluta e relativa”.
Recorde-se que, nos últimos dois anos, com realce em 2016, os cidadãos angolanos enfrentaram uma série de limitações de bens e serviços, cuja quantidade importada tinha sido reduzida, substancialmente, devido à carência de moeda estrangeira no país, em resultado da redução abrupta das receitas petrolíferas. Devido a esta situação, o economista Precioso Domingos afirma que os hábitos e costumes alimentares dos angolanos foram mudados radicalmente, e abriu-se portas para outros comportamentos de consumo, limites acirrados na dieta alimentar. “Hoje, certamente, as pessoas vão com menos frequência aos restaurantes, aos mercados, e vai-se criando a cultura de poupança, disciplina financeira dos consumidores e evidenciou-se, de forma acentuada, o desnível social e económico entre os que tem mais e os desfavorecidos”, comentou.
Considerando os actuais constrangimentos económicos e sociais que Angola enfrenta, e supondo que o actual governo se mantenha no poder, Precioso Domingos afirma que o MPLA terá um grande trabalho, tendo em conta os desafios que o seu candidato, João Lourenço, assumiu, nomeadamente ao nível do combate à corrupção, que “tornou o partido mais forte em termos de manutenção do poder”.
Entretanto, recorde-se que o próprio MPLA admitiu que o seu programa de governação na última legislatura foi "profundamente" marcado pela crise económica e financeira, mas ainda assim houve alguns progressos. Na sua proposta de Programa de Governo 2017-2022, o partido que tem João Lourenço como candidato a Presidente de Angola aponta o crescimento médio anual negativo do sector petrolífero (0,96%), mas destaca que, no mesmo período em análise, o crescimento médio anual da economia no seu todo foi positivo (3,7%), “porque o sector não petrolífero contrabalançou a quebra do sector petrolífero com uma média de crescimento anual de aproximadamente 6,2%, com destaque para os setores da agricultura (11%), indústria (8%), construção (11,9%) e energia (14,3%)", explica uma nota divulgada na altura do lançamento da pré-campanha do partido.
Investimento no betão “atrai” votos
Nos últimos cinco anos, em resultado da carência de fundos próprios para promover o crescimento económico, Angola viu a sua dívida pública disparar, nomeadamente com empréstimos contraídos pela estrutura central do Estado e por empresas públicas, “muitos de racionalidade e viabilidade económica duvidosa, apenas persistindo por decisão política e enquanto veículos de tráfico de influência”, critica o CEIC.
Em 2016, a dívida pública angolana teve um custo diário de 28,5 milhões de dólares americanos, atingindo mais de 10.400 milhões da mesma moeda no final do ano, o que representou 62,3% do PIB do país, segundo estimativas da Economist Intelligence Unit, cita o CEIC.
Dos investimentos públicos, a construção continuou a ser prioridade. O CEIC apurou que dos 10 mil milhões de dólares identificados no Orçamento Geral do Estado de 2015 como financiamento externo necessário para cobrir o défice fiscal, 9,5 mil milhões de dólares foram praticamente conseguidos e estão a ser usados na construção de duas barragens, da nova marginal e na reconfiguração urbanística de Luanda, o que mostra que o investimento no betão continuou a ser prioridade do atual governo, embora se questione a qualidade das obras. Segundo analistas angolanos, grande parte das obras públicas de construção civil iniciadas em 2016 visaram “simplesmente atrair o eleitorado”, uma vez que elas criam uma “falsa imagem de trabalho e compromisso do Governo do MPLA com o desenvolvimento do país, mas acabam, em muitos casos, por ser pouco duradouras e úteis para o cidadão comum, a quem devia ser prestada mais atenção em termos de melhoramento das condições de vida”.
Ainda sobre a aposta do Estado angolano no sector da construção civil, o CEIC alerta que “a prevalência do público sobre o privado é um fator de risco para a atividade de construção civil no país, bastando que ocorram imponderabilidades externas para que o investimento público diminua, como manifestamente são os casos registados em 2015 e 2016”.
Sistema financeiro descredibilizado
A descredibilização internacional do sistema financeiro angolano é um facto que criou uma enorme mancha negra no Governação do MPLA nos últimos cinco anos, considerando que, atualmente, “o sistema financeiro angolano encontra-se numa situação de instabilidade”, de acordo com o CEIC, que defende que o “funcionamento regular, a transparência e a efetividade de um sistema financeiro são características absolutamente fundamentais para gerar confiança nos agentes económicos – depositantes e investidores – promover o investimento privado e apoiar o crescimento da economia”.
Pelo contrário, e apesar de o discurso oficial admitir a urgência de uma mudança de paradigma no setor, “são reduzidos os avanços, principalmente devido à falta de vontade política para o fazer com adequação e efetividade”, sendo que “não se deve menosprezar o facto de que o setor bancário é um dos mais rentáveis da economia [angolana] e a propriedade dos mais importantes bancos privados é de 'pessoas politicamente expostas', provavelmente pouco interessadas em adotar critérios de total transparência”.
Para o CEIC, o caso do BPC (Banco de Poupança e Crédito) “é um exemplo flagrante de falta de supervisão, de perversidade de influências pessoais sobre instituições que deveriam ser independentes”. O Centro de Estado e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola recomenda que o Estado privatize os bancos públicos comerciais, “sob pena de constantemente ser o Orçamento Geral do Estado a cobrir os seus prejuízos”. Acredita-se, entretanto, de acordo com esta instituição académica, “que o Governo só ainda não o fez porque essas instituições são, afinal, usadas como canais de influências e de distribuição de benesses aos agentes políticos e empresariais mais ligados à atual governação partidária”.
Na avaliação que faz do sector bancário, o economista Precioso Domingos afirma que “em Angola a banca não está ao serviço do setor privado”, pois “ela é dependente do Estado e lucra apenas por via das operações cambiais e empréstimos de valores monetários ao Estado”, frisou, afirmando ainda ser “desleal a forma como o Estado concorre com os investidores privados, oferecendo altas taxas de juros, mais atraentes, porém para o seu benefício”, daí que considera “urgente a diminuição da participação direta do Estado no mercado financeiro, de modo a não comprometer o progresso económico”, alertou.
Para ter uma avaliação mais atual dos últimos cinco anos de governação do MPLA, bem como das estratégias do partido, caso vença, para fazer frente à crise e cumprir com o seu programa — corrigindo o que está mal e melhorando o que está bem — o SAPO24 contactou ontem alguns analistas económicos e políticos afetos à estrutura do atual Governo e do MPLA, mas estes adiaram as entrevistas para depois das eleições de hoje.
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