As ruas de Paços de Ferreira, Lousada e Felgueiras voltam a preparar-se para o vazio com o anúncio de novas regras para conter a doença numa altura em que estes municípios registam um crescimento de casos na ordem dos 48%, em relação à última semana, e o hospital de referência começa a ficar sobrecarregado.
Em março, a entrada da pandemia em Portugal cresceu precisamente aqui, ligada às fábricas de calçado de Felgueiras e Lousada, onde chegaram empresários infetados, vindos das feiras internacionais em Itália. Sete meses depois, o novo crescimento na Europa tem mais uma vez reflexo nestes concelhos industriais do Vale do Sousa.
Apesar das fábricas que povoam este território, a principal tese é de que os casos a surgir nos três municípios se devem sobretudo a eventos familiares, como casamentos e batizados, que juntaram várias centenas de pessoas nos últimos meses. Esta é quer a perceção das pessoas nas ruas, quer a linha oficial apresentada pelas autoridades de saúde e discutida nas reuniões com os autarcas.
Estes três concelhos compõem o Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) Tâmega III Vale do Sousa Norte, tutelado pela Administração Regional de Saúde do Norte (ARS-N). A decisão de aplicar as mesmas restrições aos três municípios surgiu depois dos encontros entre as autoridades de saúde, os autarcas e o primeiro-ministro, que nesta quarta-feira se dirigiu a Paços de Ferreira.
Humberto Brito (Paços de Ferreira), Pedro Machado (Lousada) e Nuno Fonseca (Felgueiras) estiveram reunidos com António Costa cerca de três horas, para discutir as medidas apresentadas em Lisboa nesta quinta-feira, após o Conselho de Ministros, e que entraram em vigor às 00:00 de hoje.
Após o encontro, o primeiro-ministro disse aos jornalistas que "mesmo tendo em conta aquilo que é a previsão de aumento de pandemia na região [interior do distrito do Porto] ao longo das próximas semanas, haverá resposta do SNS para as necessidades de internamento geral e de internamento em cuidados intensivos".
Em causa está a capacidade de resposta do Hospital Padre Américo, em Penafiel, a unidade de referência de uma região com meio milhão de habitantes, que por estes dias tem enfrentado grandes dificuldades, com a insuficiência de profissionais.
A delimitação territorial teve, assim, em conta o mapa da administração de saúde e não tanto o da prevalência da doença, o que, na opinião do autarca de Felgueiras, faz com que as medidas naquela cidade sejam desproporcionadas, apesar de fazerem sentido numa lógica de evitar a sobrecarga do hospital de Penafiel.
Dos três líderes envolvidos, Nuno Fonseca foi o único que até agora falou à imprensa. O SAPO24 sabe que deste encontro com António Costa saiu uma espécie de "acordo de cavalheiros". Fonte próxima do processo disse que os autarcas acordaram em não falar sobre as medidas, cuja implementação deve caber aos ministérios da Saúde e Administração Interna. Afinal, se foram discutidas pelos autarcas com o chefe do governo, não há muito mais a acrescentar no dia em que são anunciadas pelo próprio primeiro-ministro, explica a fonte.
Após o anúncio do Conselho de Ministros desta quinta-feira, o SAPO24 procurou também esclarecimentos junto da ARS-N, não os tendo obtido até à publicação deste texto.
No Palácio da Ajuda, na tarde de ontem, Mariana Vieira da Silva salientou ainda não existir uma cerca sanitária, lembrando que as populações dos três concelhos podem circular entre eles.
Também "não é confinamento obrigatório: é dito para as pessoas estarem em casa, com exceção de algumas atividades", esclareceu a ministra de Estado e da Presidência, frisando que, embora as medidas não sejam iguais para todo o país, a lógica de dever de recolhimento deveria ser adotada por todos.
Segundo os números por concelho da Direção-Geral da Saúde (DGS), divulgados às segundas-feiras, o número de casos de covid-19 aumentou em Paços de Ferreira 76% numa semana, enquanto em Felgueiras a subida é de 24,2% e em Lousada de 39,2%.
Em Paços de Ferreira, concelho que registou o aumento maior, a 12 de outubro o número de infeções era de 738, enquanto esta segunda-feira a DGS atualizou os dados para 1.303 (mais 565), o correspondente a 76,5% de aumento.
Já Lousada registou, entre 12 e 19 de outubro, um aumento de infeções na ordem dos 39,2%, passando de 660 casos para 919 (mais 259). Em Felgueiras o aumento, em igual período de tempo, foi de 24,2%, com o registo de mais 154 infeções pelo novo coronavírus: de 634 para 788.
Nestes três concelhos há agora o dever de permanência no domicílio e estão também proibidas quaisquer celebrações e eventos com mais de cinco pessoas (salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar). Passa ainda a ser obrigatório o encerramento de estabelecimentos às 22:00, com algumas exceções, e o teletrabalho é obrigatório para todas as funções que o permitam, independentemente do vínculo laboral.
O pau de dois bicos
Percorrer as ruas do centro de Felgueiras em outubro pouco tem a ver com o mesmo movimento feito em março. Agora, há mais gente nas ruas, mais carros, mais comércio aberto. Afinal, ao fim das aulas saem as crianças das escolas, saem os lanches das cafetarias. Quando aqui estivemos, há sete meses, as secundárias do concelho foram as primeiras a encerrar.
Esta quinta-feira há no céu um prenúncio de nuvens escuras: mau tempo a caminho. Apesar disso, é debaixo do céu que está Nuno Fonseca, o presidente da câmara. Tem-se sucedido em entrevistas desde que o governo anunciou a novas restrições e fala ali mesmo para as câmaras da televisão, no cimo da praça da República, com o jardim nas costas e de frente para o edifício da câmara.
"Felgueiras aparece neste cenário de uma forma desproporcional", considera o autarca. "Aliás, nós estamos metidos neste contexto porque as medidas aplicadas foram do ponto de vista daquele que é a autoridade de saúde que regula toda esta região — estamos a falar do ACeS Tâmega III Vale do Sousa Norte, que engloba estes três concelhos —, e, daquilo que foram as reuniões tidas com as autoridades de saúde e com o senhor primeiro-ministro, entre outras entidades presentes, entendeu-se aplicar a mesma medida para todos os concelhos", explica o autarca.
Nuno Fonseca diz que chamou a atenção para a desproporção, "porque existem outros concelhos aqui limítrofes com muito mais casos do que Felgueiras", afirma. Segundo o autarca, "em Felgueiras estamos a falar de cerca de 30 casos no dia de ontem, andaria com uma média de 25 a 30 casos — e em Paços de Ferreira temos uma média de 100 a 150 casos por dia", diz.
"Existem números bem diferentes, como existem por exemplo noutros concelhos, como Guimarães, que são aqui limítrofes e para onde [as novas medidas] podiam ter sido estendidas", defende Nuno Fonseca.
"Estas medidas vêm também num contexto em que é identificada pelas autoridades de saúde a necessidade de controlar toda a região, uma vez que o hospital de referência e que dá suporte aqui a estes concelhos, o Hospital Padre Américo, em Penafiel, começa a ficar com a sua capacidade lotada; há necessidade de reforço dos meios técnicos e humanos nos nossos centros de saúde", diz Nuno Fonseca.
"As pessoas hoje estão mais maduras, percebem os impactes que estas restrições têm na nossa economia; as pessoas percebem que hoje não podemos parar, conforme muitos pediam para parar naquela primeira fase", explica o autarca.
Hoje, existe "um contexto diferente, há aqui um crescimento de casos depois de uma fase de férias, quando muitos de nós certamente relaxámos; e um início de ano de aulas que não existiam naquela altura", diz. "Todas estas situações levam a que, naturalmente, surjam mais casos".
"Felgueiras continuou a trabalhar, a nossa economia continuou a trabalhar, os milhares de pessoas que vão trabalhar todos os dias, preocupadas, porque também têm filhos e têm medo de chegar a casa contaminadas de uma fábrica, do local onde trabalham, mas continuamos a acrescentar à economia nacional — e não vamos deixar de o fazer, vamos continuar a ser um exemplo e vamos, acima de tudo, acatar aquilo que nos é pedido", garante Nuno Fonseca, que critica a decisão de proibir as duas feiras semanais do concelho, em Felgueiras e na Lixa.
Nesta quarta-feira, Felgueiras tinha registado 50 novos casos de covid-19, adiantou o autarca ao SAPO24. "Na globalidade, desde março estamos com cerca de 1.040 casos. São números que gostaríamos de ver com menos expressão, mas mesmo assim ainda controlados num contexto nacional que expressa já um número de caso bem mais elevado", afirma.
Ao fundo da praça da República, já na praça do Foral, está um edifício iluminado de pequenas lâmpadas cor de laranja. O complexo é gerido por José Mário Sousa e inclui o Café Jardim, aberto em 1948, uma loja de doces, aberta em 1974, e o alojamento local, aberto no ano passado. A empresa tem também uma fábrica de doces, que distribui em supermercados.
José Mário não nota nos clientes razões que justifiquem o aumento de casos. Afinal, "de uma forma geral as pessoas têm cuidados", diz, embora admita que "há sempre um ou outro menos inteligente que insiste em não cumprir algumas medidas".
"Felgueiras é uma terra muito industrial, de muita circulação, de muita entrada e saída de mercadorias e de motoristas. Rola muita coisa aqui e é provável que aconteça, até pela proximidade com as cidades vizinhas que também têm um número de casos muito grande", afirma.
"No final do mês de fevereiro, mesmo no final, já se começaram a sentir alguns efeitos negativos da pandemia, embora em Portugal não houvesse casos", conta o empresário. "As televisões passam as informações de que seria uma questão de tempo até chegar e, realmente, começaram logo a sentir-se os efeitos económicos da covid-19, com a diminuição da clientela."
Com o surgimento dos casos, "a questão económica agravou-se: as pessoas deixaram de sair". "O problema foi maior ainda nesta zona, havia muito desconhecimento, as pessoas não sabiam como lidar com o problema e entraram um bocadinho em pânico, no início — e houve uma quebra drástica da faturação, em todas as áreas da nossa empresa", revela José Mário.
Apesar de o café ter sido fechado por decreto, de terem decidido encerrar o alojamento local e das limitações na fábrica e na loja, não foi necessário despedir trabalhadores, garante o empresário. "Com muito custo, mas não despedimos ninguém", conta ao SAPO24 no salão do Café Jardim, onde, por volta das 19:00 desta quinta-feira, apenas uma senhora tomava o lanche.
Para aguentar, foi necessário, no entanto, recorrer às linhas criadas pelo governo, como o lay-off: "fizemos tudo o que pudemos, e continuamos a fazer o que está ao nosso alcance para não despedir nenhum funcionário — e não temos intenção de despedir ninguém", reafirma, depois de algumas notícias em março terem dito que ponderava encerrar a atividade, o que José Mário Sousa desmente.
"Parece-me que é melhor tomar medidas mais restritivas nesta altura e impedir que a doença se propague ainda mais do que deixar andar, deixar andar, e daqui a pouco está aí o Natal à porta, com muito mais movimentação de pessoas, e, aí sim, o problema pode ainda agravar-se muito, muito mais", acredita.
Mas, claro, novas restrições implicam mais um rombo: "no nosso setor de atividade, ligado ao turismo, à restauração e à distribuição, tivemos quebras terríveis — todos nós. Tudo o que possa ser feito para atenuar o problema é positivo".
No fim das contas, "é um pau de dois bicos: queremos que a economia ande, mas também não queremos que os hospitais encham. Andamos aqui a gerir duas coisas muito difíceis de gerir ao mesmo tempo, mas eu acho que a saúde está sempre em primeiro lugar que os negócios".
O jogo da boda
Metade da cara do antigo bispo do Porto, nascido em Lousada, António Augusto de Castro Meireles está coberta pela indistinta máscara cirúrgica. Alguém há de ter decidido escalar a estátua, no centro da vila natal do cura, e protegê-lo também (apesar do metal de que é feito) da pandemia que cresce neste município.
Aqui diante do Senhor dos Aflitos, a noite traz uma impávida ausência para o centro de Lousada. Uma pessoa usa o multibanco de uma repartição bancária. A farmácia fecha as contas e desliga a iluminação da cruz verde que lhe anuncia a presença. A noite cai, com o princípio de uma chuva miúda, na correnteza murada por lojas fechadas, um tribunal fechado e uma autarquia fechada também.
O atual bispo do Porto, Manuel Linda, escreveu ontem “ao Povo de Deus das Vigararias de Felgueiras, Lousada e Paços de Ferreira, especialmente aos Vigários da Vara e demais sacerdotes e diáconos”. No documento, diz que “governantes e autoridades de saúde puseram-[no] ao corrente de alguns dados de transmissão de contágios da pandemia”.
"Ressaltando sempre que a Igreja tem sido exemplaríssima na organização das celebrações, chamam a atenção, entretanto, às festas sociais que habitualmente se seguem aos grandes acontecimentos religiosos: Crismas, Primeiras Comunhões, Profissões de Fé, Casamentos, Batizados, etc."
Assim, "porque, como dirigentes da comunidade, assumimos específicas responsabilidades morais e porque o bem comum faz parte da doutrina que pregamos”, o bispo pede, “até decisão em contrário", que se mantenham "as celebrações das Missas habituais e sacramentos inadiáveis, reforçando, porém, as conhecidas medidas de segurança", mas que se adiem "até finais de novembro, as celebrações comunitárias de Crismas, Comunhões e Profissões de Fé".
"Nessa altura, avaliar-se-á novamente se poderemos ou não remarcar essas celebrações", explica.
Já os "Casamentos, Batizados e outras celebrações são momentos de justificado júbilo. Recorde-se, contudo, às comunidades e aos diretamente interessados que as celebrações familiares ou em grupo, que habitualmente se lhes seguem, podem transformar-se em ocasião de novas infeções. Por isso, pede-se a compreensão de todos e que, exceto em casos de justificada urgência, se adiem mais algum tempo".
“Em tudo o mais, valham as regras do bom senso. E que os sacerdotes e diáconos privilegiem uma função pedagógica e educadora que nos está inerente enquanto guias da comunidade".
Num bar de Lousada, está só Jorge Queirós sentado a uma mesa, diante do ecrã onde o SC Braga marcará três golos ao AEK Atenas, na primeira jornada do grupo G da Liga Europa de futebol. Interrompido o jogo, o jovem aponta a tese para o mesmo lado: as festas, as bodas.
"Eles às vezes até se passam comigo, mas nisso não facilito", conta Luís Magalhães, atrás do balcão. Quem se passa são os poucos clientes, quando ele os lembra com o seu "olha a máscara". "Eu quero trabalhar o máximo de tempo possível e assim não dá", conta o funcionário. O bar, que durante a semana tinha autorização para encerra às duas da madrugada, está em tempos pandémicos a fechar à meia-noite. A partir desta sexta-feira, não pode estar aberto depois das 22h. Com a maioria dos clientes a chegar apenas por volta das 21:30, Luís acredita que poucos sairão de casa agora.
Numa boa noite, veria o bar encher. Havia de servir cerca 120 pessoas, antes de encerrar às 4 da madrugada, nos fins de semana. Desde que a pandemia tocou Lousada, porém, o melhor dia foi um domingo deste verão, com cerca de 90 no turno inteiro.
Números longe das duas centenas de convidados de que já lhe falaram em casamentos recentes. Mais: "aqui as pessoas têm calma a beber porque têm de pagar, não é? Num casamento está tudo pago". "Qualquer pessoa civilizada, quando bebe um copo, perde um bocadinho a preocupação", acrescenta Jorge, que propõe limites à quantidade de bebidas permitidas.
A equipa do Sporting de Braga adiantou-se no marcador com um golo de Galeno, aos 44 minutos. Jorge acredita que o que está a acontecer aqui agora pode ser muito bem o vírus a adiantar-se, com uma repetição — e um prenúncio — do que aconteceu em março. A doença começa a crescer aqui, antes de aumentar no resto do país.
"Aqui estamos adiantados", diz, ainda antes de o avançado Paulinho ampliar a vantagem dos bracarenses, aos 78 minutos, e Ricardo Horta, aos 88, fechar o resultado, frente a uma equipa grega que contou com os portugueses Hélder Lopes e Nélson Oliveira.
O tempo morto
A chuva cai agora em aguaceiros pesados. No centro de Paços de Ferreira, ali ao lado de Lousada, não há ninguém. Numa esplanada encharcada à beira da rotunda em frente à câmara, dois ou três homens vão falando — e é só. Pouco adiante, num restaurante antigo, uma luz ténue escoa dos vidros foscos. Ao abrir a porta, três rostos viram-se para quem entra. São as únicas pessoas ali sentadas: os proprietários, marido e mulher, e uma empregada.
O homem não queria dar entrevistas, mas como ainda não são dez horas da noite e esta quinta-feira já tem a sala do restaurante vazia, aceita falar. Antes de março, havia mesas e cadeiras para 120 pessoas. Hoje, estão quase todas arrumadas: com as que sobram, sentaria 55 pessoas, se 55 pessoas entrassem no estabelecimento — não entram.
A sentença é simples: "Estão-nos a matar devagarinho", acusa João Marceneiro. "Pode registar aí: estão-nos a matar". A mulher, que janta ao lado, deita a cabeça nas mãos e as palavras ficam ali penduradas em frente aos pratos de feijoada, de onde sai o bom cheiro da comida.
O trabalho é pouco, quase nenhum. Pagar aos dois empregados exige matemática. Vale o ‘take away’, que "graças a Deus tem saído bem", diz a mulher. Pior seria voltar a fechar tudo; porque se fecha tudo novamente, se param as escolas, param os autocarros, param os pais que têm de ficar em casa, param os clientes ocasionais, que ali vão por uma sandes, um sumo. "Pára tudo", teme o casal, que gere O Marceneiro, restaurante típico no coração de Paços de Ferreira. "Estamos os dois aqui, não pinga de lado nenhum e a renda não baixa um cêntimo, a água continua a sair, a eletricidade continua a sair".
"Não morremos da doença, mas estão a matar-nos com a cura", afirma João. "Se quiser sentar-se aqui a jantar connosco, pode comer. Mas nem eu lhe posso dar mais nada, nem você me pode dar alguma coisa".
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