Do problema surgiu a oportunidade: o que fazer com os milhares de manuais escolares que deixam de ser utilizados todos os anos? Até agora havia quem os guardasse para os irmãos mais novos, outros doavam a bancos de manuais usados e havia também quem os deixasse em arrecadações, a ganhar pó.
15 mil livros, 15 mil histórias
Nem parece um dia de agosto, pelo menos no armazém da Urbanos Press, em Vialonga, que não abranda o ritmo de trabalho. Empilhadoras circulam de um lado para o outro a grande velocidade, carregadas com jornais e revistas já fora do prazo. Daqui seguem para a reciclagem, mas não sem antes serem conferidos.
Numa outra área do armazém, milhares de livros escolares estão agrupados e prontos para seguir viagem. É o espaço reservado aos manuais escolares recolhidos pela Book in Loop. Vestidos com coletes refletores, os três fundadores da plataforma distinguem-se bem na azáfama do armazém. João Bernardo, Manuel Barata de Tovar e José Pedro Moura vão circulando pelo meio dos livros, agrupados por disciplinas e assentes em paletes de madeira. “São mais de 15 mil, os que recebemos”, diz João Bernardo.
Uma poupança potencial de 80% nos manuais escolares
Os miúdos tiveram a ideia, mas quem poupa são os pais. Com 18 anos, o mais novo dos fundadores da empresa, João Bernardo Parreira, explicou ao SAPO24 o conceito Book in Loop. O modelo de negócio divide-se em duas fases. Primeiro, os livros são recolhidos através de uma rede de parceiros à escala nacional, nomeadamente nas lojas Lidl ou em postos de gasolina da Alves Bandeira. Depois de entregues, os livros são verificados através de um controlo de qualidade certificado pela Universidade de Aveiro. Os pais recebem 20% do valor original do livro se todos os manuais daquele modelo forem vendidos no final da campanha escolar. Caso contrário, o dinheiro é distribuído por todos os que entregaram aquele livro, em partes iguais, para que nenhum fique a perder.
Na segunda fase, os manuais são colocados à venda através do site da Book in Loop. O utilizador regista-se, diz que manuais pretende e compra-os por 40% do preço de capa. Por exemplo, um manual que custe 20 euros novo, saí ao utilizador da Book in Loop por 8 euros.
“Book in Loop, em que é que lhe posso ajudar?”
Quando fomos falar com os fundadores da Book in Loop, a sua loja online tinha acabado de abrir. O telefone não parou a manhã toda, com dezenas de e-mails e notificações a cair a cada minuto. Valham-lhes os computadores, que vão dando os dados das encomendas em tempo real.
No primeiro dia, as perguntas dos utilizadores são muitas. O conceito é novo e “é normal que surjam dúvidas”, afirma João Bernardo. De facto, a equipa já estava preparada para isto. “Não contratámos ninguém para atender os telefones, assim sentimos que estamos mais próximos dos nossos clientes”, garante João. O volume de telefonemas não impede que todos os interessados tenham resposta, pelo menos enquanto os smartphones tiverem bateria. Manuel desabafa: “São 15 mil utilizadores registados no site. Basta que 5% tenham dúvidas e já é muita gente”.
José Pedro Moura, o auto-intitulado “cota do grupo”, tentava resolver ao telemóvel alguns problemas de última hora. “Alguns utilizadores estão com um ‘Erro 500’!”, exclamava. João e Manuel questionavam-se: “Mas o que é o ‘Erro 500’”?, traídos pela nomenclatura informática, que teima em esconder aquilo que podia logo ser revelado.
Os telefonemas multiplicam-se, os informáticos resolvem os problemas à distância e José Pedro precisa de uma pausa, uma cigarro para “acalmar o stress do dia”. A felicidade de ver algo novo nascer é, ao mesmo tempo, consumida pelo medo de falhar, e, por isso, é melhor esperar pelo final do dia para festejar, até porque até lá existem e-mails para responder e chamadas para atender.
Manuel e João Bernardo conheceram-se em Coimbra, a cidade onde a ideia da Book in Loop cresceu. O projeto foi apresentado no Startup Weekend em 2014, tendo conquistado o 2.º lugar no referido concurso de empreedorismo. José Pedro foi um dos oradores desse evento e rapidamente se tornou no terceiro sócio do projeto, logo depois de ter saído da empresa onde trabalhava.
A força de acreditar
Na conversa que mantivemos com João Bernardo, há um verbo que pauta o seu discurso: “acreditar”. Grande parte do sucesso do projeto está na força com que estes jovens acreditam nele. João sabe disso. O seu discurso marca uma postura que agrada aos investidores. “Nós acreditamos que os resultados que temos este ano provam que existe espaço para este modelo”, diz João.
Os números são animadores. Vários meios de comunicação social divulgaram a plataforma e isso resultou nos já referidos 15 mil utilizadores registados. Mas os três sócios não querem ficar por aqui. O seu objetivo é claro: “expandir”. Mercado internacional? “Para já não, queremos" primeiro "chegar a mais famílias, para termos mais livros para troca”, afirma João. No médio prazo, e com o objetivo de atenuar a sazonalidade deste modelo de negócio, a Book in Loop pretende ganhar novos clientes no ensino superior, apesar não ser algo “para o imediato”.
“Passa os livros a outro e não ao mesmo”
O conceito da Book in Loop é mais alargado do que a simples troca de livros. Exemplo disso é a parceria estabelecida entre a empresa e a AMI. E é sem ter almoçado que os três jovens nos levam a conhecer as instalações desta entidade, no Braço de Prata, em Lisboa. Somos recebidos pela Diretora de Marketing da instituição, Isabelle Poinsot, que nos confessa que foi ela que tomou conhecimento da Book in Loop e que lhes propôs uma parceria. “Pensei logo: que boa ideia, a destes jovens!”, confessa. A associação tem, desde 2004, um kit disponível em alguns supermercados chamado “Kit Salva Livros”. O produto consiste em 10 capas plásticas para forrar livros, que no final do ano podem ser tiradas sem danificar as capas. O kit incluí ainda etiquetas das personagens Disney. A Book in Loop vende este kit juntamente com as encomendas de manuais (existindo ainda a possibilidade de doar o dinheiro angariado com a venda de manuais à instituição).
“Tem de haver uma preocupação em pensar a longo prazo”
A Book in Loop “não tem um cliente tipo”, trabalha para “as famílias portuguesas”, resume João Bernardo. Uma delas mora nos arredores de Tires, em Cascais. A mãe, Sónia Diz, recebe-nos à porta com o filho mais novo. Miguel tem 10 anos e passou para o 5.º ano. De olhos verdes e cabelo despenteado, as preocupações do caçula da família prendem-se com aproveitar o que ainda falta das férias. Com ele estão Margarida, de 16 anos, e Francisca, de 14. Sentadas no sofá, as irmãs têm em frente uma televisão com desenhos animados. No entanto, para Margarida, esta podia nem estar ligada. Os dedos alternam rapidamente na tela do smartphone, tão rapidamente como a velocidade com que "salta" entre histórias no Snapchat. A família teve conhecimento da plataforma através da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas.
“Foi sempre um hábito de família, a reutilização de manuais”, afirma Sónia. “Todos os anos seriam mais de 600 euros em livros”, uma despesa que facilmente dispara para “perto dos 1.000 euros se contarmos com os manuais do curso de inglês e o material escolar”, conta. Os miúdos já sabem que têm de estimar os livros apesar de, no princípio, “ter sido complicado” porque “os outros não o faziam”.
“Os currículos mudam frequentemente”
“Apesar de terem apenas dois anos escolares de diferença e de andarem na mesma escola, é difícil passar os manuais de uma filha para a outra”, isto porque “os currículos mudam frequentemente” e as “editoras alteram a ordem dos capítulos e as imagens dos manuais”, desabafa Sónia.
Francisca, sentada numa pequena mesa rodeada dos manuais escolares, mostra-se orgulhosa por reutilizar os livros. “Todos os anos recebo os manuais de uma amiga”, afirma. Os mesmos livros são depois passados para outra amiga, sendo que também já existiram outros tempos em que recorria a bancos de livros.
Entre Coimbra e Lisboa
A vida dos fundadores da Book in Loop está hoje algures entre Coimbra, a cidade onde a empresa está sediada, e Lisboa, onde mantêm a maior parte das reuniões com os parceiros.
João Bernardo e Manuel planeiam regressar a Coimbra ainda nesse dia, marcado pelo lançamento da loja online (estávamos em meados de Agosto). No entanto, acabam por ficar por Lisboa mais algumas horas, com receio de que a rede de telemóvel falhe a meio da viagem e que existam clientes que fiquem sem respostas. Quanto a José Pedro, seguiu para o Alentejo. É o dia de aniversário do pai. Antes de partir, questiona Manuel: “Tu imaginas o que é a felicidade de um pai que não te vê há muito tempo e que te vai ver no seu dia de anos?”. A pergunta ficou sem resposta. Mas José Pedro tem, certamente, mais um motivo para comemorar.
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