Não era um homem duplicado, mas teve duas datas de nascimento. José Saramago nasceu a 16 de novembro de 1922, na aldeia de Azinhaga, no Ribatejo. Contudo, a Conservatória do Registo Civil menciona como dia em que veio ao mundo 18 do mesmo mês. O motivo explicou-o o próprio, em As Pequenas Memórias. “Foi o caso que meu pai andava nessa altura a trabalhar fora da terra, longe, e, além de não ter estado presente no nascimento do filho, só pôde regressar a casa depois de 16 de Dezembro, o mais provável no dia 17, que foi domingo. E que então, e suponho que ainda hoje, a declaração de um nascimento deveria ser feita no prazo de trinta dias, sob pena de multa em caso de infracção. Uma vez que naqueles tempos patriarcais, tratando-se de um filho legítimo, não passaria pela cabeça de ninguém que a participação fosse feita pela mãe ou por um parente qualquer, e tendo em conta que o pai era considerado oficialmente autor único do nascido (do meu boletim de matrícula no Liceu Gil Vicente só consta o nome do meu pai, não o da minha mãe), ficou-se à espera de que ele regressasse, e, para não ter de esportular a multa (qualquer quantia, mesmo pequena, seria excessiva para o bolso da família), adiantaram-se dois dias à data real do nascimento, e o caso ficou solucionado”.

Mas os equívocos não ficaram por aqui. Também o apelido Saramago não era do pai e passou a ser do filho. Nome de planta herbácea espontânea — Raphanus raphanistrum —, saramago era “alimento na cozinha dos pobres” e alcunha da família na aldeia. Por isso, aquele que teve como nome completo José de Sousa Saramago era para ter apenas um apelido. E a revelação só surgiu na escola primária, conta numa autobiografia. “Só aos sete anos, quando tive de apresentar na escola primária um documento de identificação, é que se veio a saber que o meu nome completo era José de Sousa Saramago…”. Na história resta, pois, a culpa do notário embriagado que tomou a liberdade de ‘batizar’ um menino sem que o pai soubesse, caso que o levou a adotar a alcunha também como apelido, por questões burocráticas.

Filho e neto de camponeses, Saramago deixou a aldeia aos dois anos para se deslocar para a capital com os pais, embora lá voltasse várias vezes e em períodos consideráveis até à idade adulta. Por isso, a Azinhaga fazia parte dele. Era ali que estavam os avós, filhos da terra e que a terra lhe dão a conhecer. Por isso, aquando a entrega do Nobel, em 1998, são eles que começam por ser recordados no seu discurso. “Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganhapão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável”.

Descalço pela aldeia até aos 14 anos — nas temporadas que lá passava —, dormiu debaixo da figueira com o avô e aprendeu a olhar para a morte na soleira da porta, com a avó. Tal como no dia em que recebeu o Nobel viu acabarem-se-lhe as moedas para falar com Pilar, também a família contava o que tinha nos bolsos durante a sua infância e adolescência. Sem recursos económicos, viviam em quartos, partes de casa e águas furtadas em Lisboa. Por isso, o jovem Saramago não pôde prosseguir os seus estudos além do ensino secundário: empregou-se como aprendiz de serralheiro mecânico nas oficinas dos Hospitais Civis, onde foi também desenhador e funcionário administrativo.

Aquele que pode ser visto como o homem dos sete ofícios que depois se torna escritor não tinha livros em casa. Em 1991, numa entrevista a um jornal de Lisboa, conta que leu os primeiros livros em criança — estando doente e de cama, a mãe percorreu as casas do bairro a pedir livros emprestados. Em adolescente, procurou-os ele: começou a frequentar bibliotecas e, assim, foram “centenas de livros” devorados, “sem nenhuma orientação”. Seus, mas escritos por outros e comprados com dinheiro emprestado por um amigo, só os viu aos 19 anos.

Todavia, pela vida fora as letras foram-se desenhando à sua frente. Quem começa a ler não mais consegue parar enquanto a saúde ajuda, quem começa a escrever há-de fazê-lo também até ao fim da vida, e Saramago não tinha outra ambição além dessa —embora admitisse que “deixar de escrever é inevitável” e não “um drama”. Por isso encarou sempre tudo com naturalidade. “Não posso escrever? Bem, é pena. Mas posso viver? Sim? Então, vou viver".

créditos: José Luís Roca / AFP

Foi, no entanto, um acaso do destino que o fez mudar de rota. Depois de ter passado pela indústria cerâmica e por uma companhia de seguros, onde permaneceu 10 anos, José Saramago foi convidado para o lugar de editor literário dos Estúdios Cor. Em 1969 torna-se militante do Partido Comunista Português e dois anos depois demite-se dos Estúdios Cor e ingressa no Diário de Lisboa, como jornalista. Mais tarde, chega ao Diário de Notícias como diretor-adjunto, cargo que desempenhou entre Abril e Novembro de 1975, no calor da revolução. Os seus escritos no DN marcaram o jornal e puseram-no sob fogo. Pelo meio colaborara como crítico literário na Revista Seara Nova.

Era o início do Saramago como hoje o conhecemos. O ano de 1976 marcou a a altura em que começou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. Mas os livros que saíam de si já tinham chegado. Em 1947, ano do nascimento da única filha, Violante, Saramago publicou o primeiro livro, um romance a que chamou A Viúva, mas que “por conveniências editoriais" saiu com o nome de Terra do Pecado.

Mas o que agora é percecionado como o início de um percurso não o foi, na altura, para Saramago. “Se eu tivesse essa ideia de uma carreira literária, depois do ano de 1947, em que escrevi o meu primeiro livro, tinha continuado. E, no entanto, estive 20 anos sem escrever, praticamente, e sobretudo sem publicar”, declarou à Lusa quando publicou A Viagem do Elefante, em 2008.

Quando escreveu “o primeiro livro que tem um significado, como é o Manual de Pintura e Caligrafia, em 1977, tinha 55 anos, já uma idade avançada”, sublinhou, o Levantado do Chão, em 1980, tinha 58 anos, e Memorial do Convento, “que realmente abriu muitas portas”, tinha 60 anos.

Até aí, explicou, não houve qualquer “vocação reprimida”. E, por isso, quando retomou trabalho, fê-lo sem parar. A justificação era-lhe simples: “acho que tinha qualquer coisa para dizer e então, desde essas datas até hoje [2008], não parei”, referiu.

Entre livros, José Saramago casou com Pilar del Río em 1988 e em Fevereiro de 1993 decidiu repartir o seu tempo entre a sua residência habitual em Lisboa e a ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, em Espanha. E é esta relação que vai espelhar muito daquilo que se achava que um homem sisudo não podia ser. Francisco Sena Santos, cronista do SAPO24, explica-nos esta relação do escritor com a mulher. “Há uma coisa que é lindíssima, que é Saramago ser um homem bastante crescido com uma ternura de namorado com a Pilar. Em todo o momento há uma ternura. Em Estocolmo, na manhã da entrega do Nobel e do discurso no banquete, quando estive a entrevistá-lo, Pilar estava com uma flor na mão, foi ele que lhe deu a flor. Saramago tinha sempre uma delicadeza para ela. Não tenho dúvidas de que a Pilar, se não menos combativa do que ele, não menos angulosa, diria mesmo não menos ácida do que ele, adocicou-o — e ele era um simpático casmurro. É como se a Pilar tivesse estimulado os prazeres do namoro. Eles eram tipos crescidos, com uma diferença grande de idades entre eles, e pareciam muito como namorados. De mão dada, sempre”, refere.

E José Saramago tinha noção da imagem que passava habitualmente. “Talvez eu seja um pouco orgulhoso, seco, frio em relação às pessoas, mas também é verdade que sou extremamente sensível com os meus próximos: amigos e família”, chegou a afirmar. Contudo, era um homem tranquilo, embora às vezes “perdesse a cabeça”. Mas eram cóleras breves, que não deixavam sinais — talvez só nos livros que escreveu, onde apresentava uma visão muito própria do mundo, um mundo real mesmo que cruzado pela ficção.

Destas visões, também criadas no dia a dia, tira Francisco Sena Santos uma lição que o acompanha há muitos anos. “José Saramago gostava imenso de música e, sempre que podia, quando era quarentão, antes da celebridade, no tempo em que havia récitas no Coliseu, Saramago ia para lá. E contou-me uma vez uma coisa que adotei em relação ao jornalismo e em relação a tudo. Ele ia para o galinheiro, que era lá em cima no peão: é o sítio onde as pessoas ficam em pé. É a parte mais alta do Coliseu e ele ia por duas razões: uma, porque era mais barato; outra, porque dali se via tudo. Lá de cima via-se os ilustres, via-se a plebe. Lá do topo do galinheiro observa-se o mundo”, relata. “E isto para mim ficou como uma lição. É de facto alguém que está de fora, ou seja, quem está no galinheiro não está no centro. O galinheiro tem os excluídos, só que aqueles excluídos são os mais incluídos porque veem tudo o que se passa. Podem andar e cá em baixo um tipo não pode sair da cadeira, não se pode mexer; lá em cima pode dar a volta ao redondel, ver o que quer”.

Saramago queria, pois, ver tudo. E fazia também com que todos vissem o que ele também podia observar, através do que escrevia. Em Viagem a Portugal refere isso mesmo: é preciso ver, ver mais. E melhor. “É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre”.

créditos: Jan Collsioo / AFP

Talvez para José Saramago esta viagem só tenha começado realmente com a atribuição do Nobel da Literatura, a 8 de outubro de 1998. Para aquele que dizia não ser pessimista, —“o mundo é que é péssimo" —, receber o Nobel foi uma conquista aceite de forma natural. Afinal, o escritor dizia não ter nascido “para isto”. Mas foi o que lhe deram. Naquele dia, “o que é espantoso é que no Saramago não há um gesto de júbilo. Não há euforias visíveis, tudo é contido no Saramago”, diz Sena Santos. Na primeira entrevista, já em Estocolmo, “Saramago disse que sabia que era possível [ganhar o Nobel] mas não estava nessa ansiedade e que se votasse em alguém votava na Sophia de Mello Breyner para Nobel”, refere.

Com esta atitude despojada, mostrou a simplicidade e humildade de um homem de porte sisudo e de temperamento reservado. Em entrevistas, chegou a referir que apenas queria ter “saúde e vida longa”, sem no entanto esquecer tudo o que por ele tinha passado, tudo o que aprendera — afinal, nada melhor para moldar alguém do que as vivências.

E é isso que resta também para quem continua por cá, depois desta vida longa que conseguiu (e consegue) ter: memórias em forma de livro, realidade cruzada com ficção, ajudando a traçar o perfil do único Nobel da Literatura que calhou em sorte ao país.

No discurso que se ouviu na Academia Sueca está uma espécie de resumo da vida e obra até então. É um começo e um fim em si mesmo; é uma peça de literatura que não o era para ser mas foi, porque daquelas mãos outra coisa não saía. E é ali que encontramos, ainda hoje, ligação com o que nos ficou. Se o avô de José Saramago, antes de morrer, “foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver”, é uma das árvores de Azinhaga que aparece, discreta, frente à Casa dos Bicos, agora espaço de Saramago em Lisboa, onde repousam as suas cinzas sobre terra de Lanzarote, que o juntaram para sempre à sua obra Memorial do Convento.

A história deste pormenor que reúne homem e livro conta-a o ensaísta Eduardo Lourenço ao SAPO24, que no dia do funeral de Saramago comprou um exemplar da obra que retrata a construção do grande monumento do reinado de D. João V e entregou a Pilar, pedindo que o colocasse junto ao escritor, porque ali “está tudo”. “Foi uma homenagem a José Saramago, um homem com quem tive um encontro estranho, não vínhamos exatamente das mesmas direções, só tarde nos encontrámos”, começa por explicar. “Está lá [no Memorial do Convento] toda a mitologia cultural e toda a estética de Saramago. É daqueles livros que só se escrevem uma vez. Pensei que era um acontecimento que ultrapassava a pessoa, até José Saramago. Talvez o país não contasse que ia ter aquele prémio [Nobel], que é um prémio mítico da cultura ocidental, todos os escritores sonham com ele, é uma consagração diferente de todas as que conhecemos”.

O homem morre, mas o escritor e os livros não. Por isso, Saramago continua entre nós, pronto a ser descoberto vezes sem conta. “É uma obra que precisa de ser revista e revistada, mais complexa do que a sua aparência. É uma viagem na história ao mundo que era dominante na cultura ocidental, mas a criação literária também é importante. O que conta é verdadeiramente o livro”.


Veja aqui o trabalho especial que o SAPO24 preparou para assinalar os 20 anos do Nobel