Continuando a dar uso à tesoura, linha e agulha, ferramentas de trabalho que tem também tatuadas no antebraço esquerdo, apoiado na mesa ampla e repleta de tecidos de várias cores e padrões, a costureira Carla Pereira conta o que mudou com a pandemia e com o cancelamento das marchas populares de Lisboa.
Após 15 dias de confinamento, o Atelier-Prata voltou a ser local de trabalho, mas em prol de um projeto de solidariedade para “ajudar os hospitais e os bombeiros”.
“Andei a fazer cogulas, botas de proteção, mesmo a custo zero”, refere Carla Pereira, responsável pelo Atelier-Prata, localizado na zona de Braço de Prata, antiga zona industrial em Lisboa. A costureira doou a confeção, utilizando o tecido especial TNT que foi disponibilizado pela Junta de Freguesia de Marvila para produzir o material de proteção individual contra a covid-19.
Em declarações à agência Lusa, a costureira indica que o material confecionado foi distribuído pelos hospitais, inclusive a Maternidade Alfredo da Costa e o Hospital Dona Estefânia, pelos profissionais do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e pelos bombeiros, nomeadamente os operacionais do Beato e Penha de França.
Assim, o apoio no combate à pandemia foi assumido como uma prioridade, depois do cancelamento do concurso das Marchas Populares de Lisboa.
Encarregue da confeção do figurino de quatro marchas lisboetas, designadamente Marvila, Mouraria, Olivais e Lumiar, este atelier de costura tem em mãos “uma média de 230 a 240 fatos”, entre marchantes, aguadeiros, cavalinho, mascotes, porta-estandarte e padrinhos. No entanto, esse trabalho está hoje em segundo plano, porque os projetos das marchas que seriam exibidos este ano só vão brilhar em 2021.
“Aquilo que tínhamos feito está guardado, bem guardadinho, para o próximo ano. Assim que haja oportunidade de poder avançar com algumas coisas, porque há trabalhos que podemos fazer em série, como cortar folhos ou fazer folhos […], esses trabalhos, quando houver horas mortas, podemos ir adiantando”, explica a costureira, lembrando que a confeção de figurinos das marchas “é um trabalho sempre em cima do joelho”.
A confecionar figurinos para as marchas de Lisboa desde 2010, Carla Pereira, de 42 anos, recorda que participar neste mundo era “um sonho”, que começou a ser conquistado com o curso na área da costura, quando tinha 19 anos: “sempre pensei ‘um dia vou entrar no mundo do espetáculo’, porque sempre foi uma coisa que me fascinava”.
“Se fosse um ano normal, nesta altura estava na loucura, completamente na loucura, mas este ano eu sinto mesmo muita falta dessa loucura que preenchia os meus dias, as minhas noites, faz-me mesmo muita confusão não haver os arraiais e as marchas”, expressa a costureira, que diz sentir “um vazio” pelo cancelamento das Festas de Lisboa.
Quanto à diferença entre o trabalho de figurino das marchas e o de ajudar na resposta de emergência à pandemia, a responsável do Atelier-Prata sublinha que “são sentimentos completamente distintos”.
“Apoiar o Serviço Nacional da Saúde é uma necessidade que, como ser humano, me tocou cá dentro, em fazer a minha parte, senti uma necessidade de o fazer”, afirma Carla Pereira, referindo que a preocupação nas marchas é “cumprir com prazos”.
Sem o pico de trabalho das marchas, o atelier é hoje ocupado por duas costureiras, entre as seis máquinas de costura disponíveis, preparadas para o habitual reforço de mais quatro profissionais, mas que, este ano, não é preciso devido ao cancelamento das Festas de Lisboa.
“Tenho algumas pessoas que dependem, de alguma forma, deste dinheiro. É quase como uma lufada de ar fresco para o resto do ano, para fazerem aquilo que não podem, depois, com os ordenados que ganham, então isto é um extra e, tanto para essas pessoas como para mim, está a ser complicado”, avança a responsável do Atelier-Prata.
Com mais tempo e mais espaço para aceitar outro tipo de trabalhos, desde o pequeno arranjo de costura até à peça mais elaborada, o atelier regista o aparecimento de criadores portugueses a apostar na confeção de produto nacional, com coleções de biquínis e de quimonos, assim como a decisão de investir em máscaras comunitárias para proteção contra a covid-19.
“Comecei a fazer as máscaras, são 100% algodão, têm um valor de cinco euros, coloco-lhes filtros, também uns filtros de TNT de 100 gramas e têm uma abertura própria para pôr e tirar os filtros”, adianta a costureira, referindo que, além de ser um ajuda em tempo de pandemia, foi a solução encontrada para que “entrasse algum dinheiro”, para compensar os gastos assumidos com o início da confeção dos figurinos das marchas, despesas que ainda não tinham sido pagas pelas coletividades.
Além do cancelamento das marchas, o atelier de costura está a sofrer com o adiamento de casamentos, batizados e outras celebrações, inclusive festas de finalistas.
Devido à pandemia da covid-19, as Festas de Lisboa foram canceladas, pelo que não se realizará este ano a tradicional procissão de Santo António, nem os casamentos e o concurso das marchas populares. Os arraiais e desfiles estão proibidos.
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