Se for ao Google e pesquisar imagens de manifestações de apoio a Jair Bolsonaro e manifestações de apoio a Lula da Silva vai encontrar duas manchas completamente distintas. Não só ideologicamente, como cromaticamente. Se do lado dos apoiantes do antigo presidente do Brasil vê uma mancha vermelha, do lado do atual líder brasileiro verá quase uma bandeira viva, alimentada pelo uso dos símbolos nacionais como a bandeira ou a camisola da seleção Canarinha.
Faltam poucos dias para o Brasil ir a eleições e menos de dois meses para o início do Campeonato do Mundo de Futebol. Como é que estes dois eventos estão relacionados? A política brasileira fez uma 'invasão de campo' ao ponto de a Nike, no início do mês de agosto, a propósito do lançamento do novo equipamento que a seleção vai usar no Qatar, ser obrigada a 'chutar para canto' os candidatos presidenciais daquela que é encarada com uma das eleições mais importantes para o futuro do Brasil.
Sumariamente, os brasileiros foram impedidos de personalizar a camisola, que será usada pelos craques da seleção no Campeonato do Mundo, com referências aos candidatos na disputa pelo Palácio do Planalto, sendo que a proibição abrange os nomes de Jair Bolsonaro, Lula da Silva e Ciro Gomes.
A Nike declarou, numa nota, que "não permite a personalização" dos seus produtos "com palavras que possam conter qualquer linguagem religiosa, política, racista ou mesmo insultuosa".
A decisão da gigante desportiva é, no entanto, o sintoma de algo muito maior que se passa no maior país da América Latina. Para perceber os porquês desta desta história é preciso recuar até 2013, quando "a camisa da seleção tornou-se um símbolo" de "uma revolta mais ou menos generalizada contra os políticos", naquelas que foram as maiores manifestações da história do Brasil, tendo começado como uma contestação ao aumento do preço dos transportes públicos e rapidamente evoluído para um grito de revolta contra a corrupção, a falta de investimento nos principais serviços públicos do país e a organização do Mundial de 2014 e e dos Jogos Olímpicos de 2016.
"Naquele momento, vestir a camisa da seleção passou a significar a rejeição aos partidos – é como se dissessem que o único partido que importava era o Brasil, representado pela camisa amarela", explica Marcos Guterman, editor de opinião do Estadão e autor do livro "O futebol explica o Brasil: Uma história da maior expressão popular do país", no qual olha para o crescimento do desporto-rei no Brasil e, entre outros aspetos, para o uso que a política fez do futebol - e vice-versa.
"Não tardou, é claro, para que movimentos de extrema-direita, antidemocráticos por definição, capturassem esse sentimento e passassem a usar a camisa da seleção como seu símbolo, a ponto de que, hoje, quem usa a 'amarelinha' é imediatamente identificado com o bolsonarismo, isto é, com o movimento em torno do presidente Jair Bolsonaro, líder dessa onda de rejeição às instituições democráticas", acrescenta.
O jornalista e historiador confessa que o clima em torno da camisola da Canarinha se tornou de tal forma crispado que muitos brasileiros rejeitam hoje vestir o equipamento, um grupo onde se inclui.
"Eu mesmo tenho uma camisa da seleção, a amarela, que está há anos guardada na gaveta. Não tenho coragem de usar, e sei que há muitos brasileiros com o mesmo sentimento. Por isso, entendo quando a Nike tenta "despolitizar" a amarelinha, mas acho difícil que consiga", sublinha.
Já a nível interno, Marcos explica que do lado da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) espera-se pouco ou nada. "A CBF costuma ter participação insignificante em eleições. Tanto a seleção como os seus jogadores evitam entrar no jogo da campanha. Alguns têm posições políticas conhecidas, mas aparentemente preferem manter-se distantes da disputa. Logo, imagino que a CBF não se oporá a qualquer movimento que torne a seleção ainda mais neutra politicamente do que já é", afirma.
"Estranho seria se a extrema-direita não aproveitasse o poder do futebol para mobilizar seus 'ultras' contra os que enxergam como "'inimigos da pátria'"Marcos Guterman
Richarlison, internacional brasileiro e jogador do Tottenham, foi, mais recentemente, a exceção que confirma a regra. "Hoje em dia, o pessoal leva muito (a camisa) para o lado político. Isso faz a gente perder a identidade da camisa e da bandeira amarela", comentou o atacante. "Acho importante que eu como jogador, torcedor e brasileiro, tente levar essa identificação para todo o mundo. É importante reconhecer que a gente é brasileiro, tem sangue brasileiro e levar isso para o mundo", acrescentou.
"Estranho seria se a extrema-direita não aproveitasse o poder do futebol"
Tudo o que se passa, no entanto, não é surpreendente para Guterman. "No caso do Brasil, a seleção catalisa sentimentos nacionais que a extrema-direita naturalmente tenta capturar. Estranho seria se a extrema-direita não aproveitasse o poder do futebol para mobilizar seus 'ultras' contra os que enxergam como 'inimigos da pátria'", diz.
Jair Bolsonaro é, ele próprio, uma personagem ligada ao futebol. O jornalista brasileiro relembra que o atual presidente do Brasil, "quando jovem, queria ser jogador de futebol, e só não tentou a sorte nos gramados porque o pai não deixou".
Adepto do Palmeiras, treinado pelo português Abel Ferreira, Marcos Guterman diz que "Bolsonaro gosta mesmo de futebol" e que "essa identidade dele não soa falsa". O problema é que quando o governante transgride todas as regras de ética rival do desporto e percorre o país com cada uma das camisolas dos clubes do Brasileirão.
"Torcedores não bolsonaristas detestam quando ele veste a camisa de seus times ou quando resolve ver jogos desses times, forçando uma relação que não existe. Bolsonaro não se importa com o que dizem e vai continuar a explorar o poder do futebol no imaginário popular", afirma.
Ainda assim, Guterman simplifica a questão: "vestir a camisa de equipas ou da seleção não dá um único voto a ninguém. Torcedores do Corinthians não votam em Lula porque este é corintiano fanático. Votam porque identificam nele um líder. O mesmo acontece com Bolsonaro. Ambos, no entanto, sabem que ajuda muito serem vistos como parte do povo que ama futebol".
Agora, com o Mundial a jogar-se no pós eleições, caso Lula da Silva, que está à frente nas sondagens, vença, o jornalista brasileiro acredita que a "Copa enseje algumas manifestações". No entanto, duvida que tenham a dimensão que tiveram em 2013, uma vez que o torneio não decorre no país, como aconteceu então em 2014.
"A eleição já terá passado, e muito. E, finalmente, os brasileiros querem se divertir um pouco, e época de Copa é para isso", diz.
No outro cenário, de vitória do atual presidente do Brasil, Marcos acha que a CBF não trará a público nenhuma posição explícita sobre a "amarelinha". "As pessoas são livres para usar a camisa da seleção como bem entenderem, e a CBF, pelo que conheço, não deverá interferir", sublinha.
Em Portugal, qual é a relação da extrema-direita com a seleção?
Em Portugal, a relação entre a seleção nacional e o Chega, o único partido de extrema-direita com representação parlamentar, é bastante diferente. Apesar de André Ventura, presidente do partido fundado em 2019, ter-se tornado num rosto conhecido através do comentário desportivo, neste caso concreto associado ao SL Benfica, o partido nunca se procurou apropriar daquele que é o símbolo nacional do futebol em Portugal. Pelo contrário.
Se no Brasil, Jair Bolsonaro e os seus apoiantes usam a camisola da Canarinha, em Portugal é pouco provável que se encontre alguém com uma camisola das Quinas em manifestações de apoio ao Chega. Os episódios em que a seleção e o partido se encontram são de afastamento e nunca de proximidade.
O primeiro momento foi uma 'troca de argumentos' com Ricardo Quaresma, em 2020, quando o internacional português criticou André Ventura por este ter defendido um plano de confinamento específico para a comunidade cigana perante a ameaça do novo coronavírus.
"O populismo racista do André Ventura apenas serve para virar homens contra homens em nome de uma ambição pelo poder que a história já provou ser um caminho de perdição para a humanidade", escreveu na altura o jogador. Tendo o deputado respondido: "É lamentável que um jogador da seleção nacional se envolva em política (...) Espero que as autoridades do futebol não deixem que isto se torne o novo normal".
Já no final de junho de 2021, após Portugal ter sido afastado pela Bélgica do Euro2020, nos oitavos-de-final, Ventura e Diogo Pacheco Amorim, ideólogo do partido, criticaram publicamente os jogadores portugueses. Não pela eliminação, mas sim por, antes do apito inicial, os atletas nacionais terem-se ajoelhado contra o racismo
Pacheco Amorim disse que o jogo foi perdido por "11 idiotas" e que "a partir do momento em que a Seleção se ajoelhou de punho fechado, deixou de me representar". Já Ventura, escreveu que "não devemos nunca ajoelhar a não ser perante Deus e perante a Pátria".
Segundo explica Gil Gonçalves, investigador no Instituto de História Contemporânea da FCSH-Universidade Nova de Lisboa e cofundador do Museu Tricolor, projeto que pretende resgatar e divulgar a história do CF Estrela da Amadora, os dois casos têm contextos muito diferentes.
"O sucesso dessa cooptação da 'amarelinha' pode ter sido propiciado pela própria trajetória da seleção brasileira nos últimos anos", período em que a Canarinha somou várias desilusões - eliminação, em 2014, no Mundial organizado pelo Brasil, nas meias-finais, após uma goleada de 7-1 contra a Alemanha, e a desilusão da queda prematura em 2018, na Rússia, perante a Bélgica, nos quartos-de-final. "Pode, assim, ter-se feito, conscientemente ou não, uma simetria entre essas duas realidades que potenciou a associação da camisola a um discurso assente na ideia de regeneração nacional", explica ao SAPO24, colocando lado a lado a equipa e a sociedade, ambas num estado de desilusão e à procura de sucessos.
"O Chega não tem - nem parece que vá ter - um movimento de massas do seu lado da mesma envergadura do que apoiou Bolsonaro. Disputar um símbolo tão transversal com uma base de apoio minoritária não será fácil"Gil Gonçalves
"Também não podemos perder de vista que a sociedade brasileira se encontrava completamente polarizada, e só isso permitira a cooptação de um símbolo tão transversal - de resto, uma cooptação tão bem sucedida que a camisola amarela é já censurada pelos mais acérrimos opositores de Bolsonaro, que a renegam - o caso de elementos do MST que criaram um kit alternativo vermelho é sintomático, mas também a mais moderada defesa de um regresso à camisola azul e branca dos tempos do Maracanazo -", acrescenta.
O investigador acredita que estas são as mesmas razões que impedem que o mesmo suceda em Portugal: "O Chega não tem - nem parece que vá ter - um movimento de massas do seu lado da mesma envergadura do que apoiou Bolsonaro. Disputar um símbolo tão transversal com uma base de apoio minoritária não será fácil".
Gil Gonçalves acrescenta ainda que tendo a Federação Portuguesa de Futebol "sido sempre promotora de um discurso que reitera os valores liberais do multiculturalismo e antirracismo, emanados da FIFA e UEFA", por consequência, a seleção tem-se associado, por isso, "a causas que em tudo chocam com os valores do Chega".
"A diversidade espelhada na própria seleção também não permite essa associação, tal como acontece, por exemplo, no caso francês. Isso não quer dizer que um fenómeno semelhante não possa ocorrer no espaço europeu. Basta olhar para a seleção húngara, que já fez de vários dos seus encontros verdadeiros comícios pró-Órban - que tem apostado muito no futebol para a promoção da sua retórica etno-nacionalista, cooptando, por exemplo, o nome de Puskás para o efeito, como é o caso do Puskás Academia, equipa coqueluche do regime. Mas, novamente, falamos de um movimento político que não só tem uma base de apoio muito maior do que a do Chega, como está no poder há vários anos".
A mesma visão é partilhada por Daniel Freire Santos, licenciado em História e mestre em Museologia, também parte da equipa do Museu Tricolor, que, "não querendo fazer futurologia", acredita que seja "difícil" vermos uma apropriação de um elemento como o da camisola da seleção nacional portuguesa pela extrema-direita.
Autor de um ensaio sobre futebol e fascismo, com Gil Gonçalves e Andreia Fontenete Louro, Daniel explica que a proximidade da direita radical ao futebol teve a sua relevância sobretudo durante a década de 90, quando vários grupos organizados, "seguindo um pouco a tradição da subcultura 'ultra' italiana, que emerge em força nos anos 70 em Itália, num contexto que era também o de "guerras urbanas" entre movimentos de esquerda e de direita, e até espanhola, procuraram associar-se a movimentos ideológicos ou a tendências políticas; uma associação que tanto é válida para a extrema-direita como para a extrema-esquerda, que pelo menos até ao final da primeira década do século XXI era facilmente identificável nas bancadas através de tarjas, bandeiras, panos etc."
Em Portugal, exemplifica, "são geralmente apontados diversos subgrupos dentro das claques que detinham conexões à extrema-direita, do Sporting, Porto ou Benfica à Académica, Boavista, Farense ou Salgueiros".
"Apesar de tudo isto, a seleção nunca foi o foco no que toca ao apoio, nomeadamente vindo da extrema-direita. E aqui apenas posso especular: creio que as conhecidas rivalidades entre os diferentes grupos de apoio, juntamente com o facto de não se reverem na diversidade étnico-racial da equipa portuguesa, talvez sejam algumas das razões para tal", assume Daniel Freire Santos ao SAPO24
Exemplos, cita, há vários. "Em março de 2017, num jogo no Estádio da Luz (Portugal Vs. Hungria), um grupo de apoio à seleção do qual faziam parte, por exemplo, Fernando Madureira e Daniel Samico, dirigentes em claques afetas ao FC Porto e Sporting CP, respetivamente, entoaram cânticos contra elementos supostamente afetos a grupos de apoio do SL Benfica". Outro caso encontra-se no mais mediático subgrupo de extrema-direita, 'Grupo 1143', próximo da Juventude Leonina, que tem como membro Mário Machado, que, "numa entrevista há uns anos para um curioso livro sobre o mesmo grupo, afirmaram que não apoiavam a seleção pelo facto de não considerarem muitos dos jogadores 'verdadeiros portugueses'".
Resta-nos, por agora, assistir à forma como este fenómeno se vai ou não desenrolar. A eleição presidencial no Brasil tem a primeira volta marcada para 2 de outubro e a segunda, caso nenhum candidato conquiste a maioria absoluta, para 30.
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