"Espera aí que eu interpreto”, é assim que começa a conversa de alguns dos intérpretes com o SAPO24. É que na conversa havia, além de interpretes ouvintes, também interpretes surdos e, assim, Márcio Antunes interpretava as perguntas e Neuza Santana ia respondendo, mas também dando voz às respostas que Ricardo Madaíl dava em gestos. Confuso? Nada. Uma máquina bem oleada já que foi assim que foram fazendo ao longo da JMJ, tal como contam.
Este tipo de trabalho não é uma novidade para Neuza, nem para a Igreja em Portugal. “O Santuário de Fátima tem uma prática de interpretação de missas e celebrações. Como por exemplo, os 12 e 13 de maio, mas também na altura da Páscoa. Há assim uma série de celebrações especiais que já têm interpretação”.
A equipa do Santuário, da qual Neuza faz parte, tem uma equipa de 12 interpretes de língua gestual “já estabelecida e com uma prática de trabalho nesta área. Se calhar serão as pessoas que têm mais experiência em Portugal nesta área.” E foi exatamente numa reunião entre os responsáveis pela equipa de interpretação e de tradução da Jornada Mundial da Juventude e do Santuário de Fátima que tudo começou. “O Santuário foi contactado para que, a partir dali, pudesse ser constituída uma equipa para os cinco momentos principais da JMJ.” Ficou combinado que essa equipa desdobrar-se-ia em várias: “há sempre um grupo no estúdio e outro grupo no presencial. Esse grupo é constituído por algumas pessoas que são intérpretes de língua gestual portuguesa, e outras pessoas que são intérpretes de gesto internacional para os surdos estrangeiros”.
A forma como as pessoas surdas chegam até aos intérpretes fica a cargo da organização do evento. Mas “existem alguns voluntários que estão mesmo a acompanhar as pessoas surdas da JMJ, dos vários países, e encaminham-nas para uma zona reservada". Embora, lembre Neuza, haja jovens surdos e pessoas surdas "que vão com grupos organizados da sua zona e preferem estar junto dessas pessoas e, por esse motivo, é que durante todas as celebrações existe interpretação em gesto internacional a ser transmitida nos ecrãs espalhados pelo recinto”.
O gesto internacional como plataforma comum
Mas afinal o que é o gesto internacional? Ricardo Madaíl estabelece uma distinção, “não é uma língua propriamente dita, não há um léxico padronizado porque existem várias formas de fazer passar a mesma ideia, através de vários gestos diferentes.” Intérprete surdo, Ricardo conta que “existe a língua gestual americana que acaba por ser uma referência, mas não é a base. É uma referência porque normalmente fazem uma explicação mais visual”.
Os intérpretes contam, ao SAPO24, ter visto “no recinto outras pessoas a interpretar para outras línguas gestuais, nomeadamente espanhola, inglesa, holandesa, alemã, francesa, italiana.
Mas à falta de intérpretes de cada língua, o gesto internacional é uma solução eficaz. “O gesto internacional acaba por ser uma forma de comunicação que foi criada para o encontro de pessoas de vários países diferentes. Podemos se calhar dizer que começou através dos americanos, e eles acabam por ter esta influência, e o inglês acaba por ser considerado como uma língua franca”, explica Ricardo.
“Nós, surdos, ao contactarmos com pessoas diferentes, países diferentes, tentamos criar uma forma que vá ao encontro do sistema da língua de cada um, e da forma mais uniformizada possível que todos se possam entender. Aí vamos buscar alguns gestos americanos, sendo que às vezes também dizemos que esse gesto não é o melhor, é melhor um mais visual”. Para Ricardo é importante passar a mensagem de que o gesto internacional, não é uma língua, mas sim um sistema. “Desde que o contexto seja passado isso é o mais importante, não há regras gramaticais mesmo formais porque, por exemplo, a língua gestual portuguesa tem regras, tem gramática própria, tem questões de sintaxe. O gesto internacional não pode ser chamado língua por este motivo, é um sistema, podemos chamar-lhe um sistema e não uma língua”.
Lado a lado, em frente às pessoas surdas, houve na Jornada um intérprete de língua gestual portuguesa e um interprete de gesto internacional em espelho com uma espécie de duplos. Isto porque estando lado a lado não era confortável visualmente uma pessoa estar a olhar para o lado para ver o que se estava a passar.” Mas há outro pormenor que justifica a posição valoriza a inclusão, “como os nossos interpretes de língua gestual são surdos - porque fazem um trabalho muito melhor que qualquer outro interprete ouvinte a nível de gesto internacional, principalmente - e considerámos importante haver o interprete feed”. Cada uma destas equipas interpreta cerca de 15 minutos e depois vai rodando “porque é muito cansativo, é muita informação, há várias línguas a acontecer ao mesmo tempo e temos que fazer aqui um trabalho muito bem articulado em equipa em que nada pode falhar".
O modelo que seguem é o do Santuário de Fátima, até porque “quem faz parte da equipa já trabalhava junto e já tem um sistema mais ao menos estabelecido e acabamos por seguir esse modelo”, a novidade foi o gesto internacional “o que começou por ser uma aventura e tivemos que ajustar muitos pormenores para isto correr bem”, considera Neuza.
Para correr tudo, como diz, “muito bem” criaram dois meses antes um grupo no WhatsApp para partilhar gestos, vídeos e tirar dúvidas. “A equipa do Santuário de Fátima disponibilizou logo todo o trabalho que tem feito em termos de registo. Isto porque os interpretes de gesto internacional têm que perceber minimamente aquilo que está a ser dito em língua gestual portuguesa e nós já temos muitas orações padronizadas, muitos ritos padronizados, o que acaba por ser uma mais-valia e eles têm que receber a informação dessa forma e traduzi-la para gesto”. Apenas no dia 30 de julho reuniram presencialmente em Fátima e “estivemos a articular coisas, a definir gestos iguais para frases como 'Maria levantou-se e saiu apressadamente' esse tipo de coisas, digamos que defini-las atempadamente”.
Para facilitar e tornar mais célere o trabalho a equipa de intérpretes teve acesso antecipadamente aos discursos do Papa Francisco, mas os improvisos trouxeram alguma dificuldade acrescida. "Todos nós temos acesso ao texto e depois ele improvisa, ou salta, e a dada altura nós já percebemos que é melhor não haver o intérprete de apoio a traduzir, só estar focados no espanhol porque se não, não dá”.
A equipa é composta por intérpretes licenciados em língua gestual portuguesa, “tal como é requerido por lei”. Ricardo alerta para o facto de ser importante “valorizar a profissão” e, para isso, a prática de trabalho com os colegas ouvintes é essencial. “Porque às vezes olham para a língua gestual portuguesa como sendo uma linguagem. Mas requer uma preparação e um cuidado, tal como a tradução de outra língua qualquer. Nós tivemos muito tempo de preparação, e somos seis interpretes surdos, estamos sempre a discutir".
Para Ricardo a experiência na JMJ foi mais que um trabalho e um passo em frente na vida dos peregrinos surdos, "acaba por ser um benefício para a sociedade porque este passo importante que vai dar maior qualidade e mais riqueza neste tipo de interação”.
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