Embora Portugal se aproxime rapidamente da fasquia dos três milhões de pessoas vacinadas com a primeira dose, está ainda longe no horizonte a meta de 70% da população imunizada, prevista apenas para o final do verão. Todavia, segundo o investigador Miguel Castanho, do Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a associação desse número ao conceito de imunidade de grupo está já desatualizada.
“As pessoas vacinadas estão protegidas contra formas graves da doença e suas consequências, mas não estão completamente impedidas de serem infetadas, de multiplicarem e de transmitirem o vírus. Ou seja: aquela ideia de que existiria uma percentagem das pessoas que estava completamente imune e que, portanto, o vírus não podia socorrer-se delas para se multiplicar, já não se aplica”, observa.
Sublinhando que “não há ninguém a salvo” enquanto a vacinação não for quase total, Miguel Castanho avisa que o “número mágico dos 70% que foi adiantado já não é tão mágico assim” e que é indispensável continuar “em passo acelerado até aos 100% de população vacinada”.
Quanto à diminuição do número de anticorpos ao longo do tempo e o cenário de uma vacinação praticamente contínua, a primeira aposta deve recair num reforço da proteção.
“Creio que é provável um sistema de vacinação periódico, mas não diria anual”, considera o investigador do IMM, que reitera a necessidade de acompanhar as novas estirpes do SARS-CoV-2 para se perceber até que ponto se justifica um novo plano de vacinação e “quando será oportuno ser vacinado de novo: com uma terceira dose da vacina, eventualmente uma terceira dose atualizada para novas variantes ou até uma nova vacinação mais à frente”.
Por sua vez, a investigadora Diana Lousa, que desenvolve o seu trabalho no Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB) António Xavier, da Universidade Nova, lembra que a vacinação “começou mais ou menos ao mesmo tempo em todo o lado” e que, por isso, “ainda não houve tempo suficiente para se saber o que acontece a longo prazo” à imunidade, mas não esconde alguma esperança no desempenho contra a covid-19.
“Tudo indica que pelo menos a médio prazo há uma boa imunidade e razões para estarmos otimistas, mas, mais a longo prazo, ao fim de um ou dois anos, é impossível, porque ainda não houve tempo para quantificar”, refere, apontando o caminho: “Mesmo que a imunidade comece a diminuir, haverá sempre possibilidade de se levar novas doses da vacina que voltem a fazer um impulso na imunidade”.
Para a bióloga computacional, o progresso da vacinação a nível nacional e internacional deverá resultar na alteração do perfil da covid-19 para uma “doença com sintomas moderados, como uma constipação ou gripe, e que passe a ser uma doença endémica”, com a qual é possível conviver de “forma mais normal” e sem as restrições que a pandemia causou. E nem as novas variantes, que não deixam de ser “um risco para as vacinas”, causam inquietação.
“Há razão para termos alguma preocupação e para seguir o que está a acontecer, andando sempre a sequenciar o genoma do vírus em larga escala e com frequência para sabermos que variantes novas estão a surgir e os efeitos delas, mas não há razão para alarme, porque teremos capacidade de nos adaptar nas vacinas. Pela forma como são feitas, é bastante simples adaptar estas vacinas às novas variantes”, defende.
Miguel Castanho subscreve a tese de uma alteração na maneira de encarar a covid-19 para “uma doença de todos e não apenas de pessoas mais velhas” e realça a importância de cautelas face às potenciais “sequelas duradouras” após a infeção e que podem manifestar-se “ao nível do sistema nervoso central e do sistema cardiovascular”. Por conseguinte, advoga uma maior urgência no ritmo de administração das vacinas.
“De facto, há um declínio [dos anticorpos com o tempo] e se não acelerarmos o plano de vacinação, pode ser que percamos a corrida e que as primeiras pessoas já deixam de ter anticorpos enquanto as últimas não foram ainda sequer vacinadas”, alerta, embora assuma também alguma expectativa na subsistência de qualquer tipo de imunidade celular após a diminuição do número de anticorpos.
Se a prevenção da covid-19 ganhou uma arma de peso com o lançamento das vacinas em menos de um ano após o surgimento da pandemia, o futuro combate às suas marcas deve passar igualmente por outro tipo de tratamentos, segundo os dois especialistas.
“É claramente necessário ter terapias alternativas e que tenham como alvo outras proteínas que não só a proteína da espícula, porque dá-nos mais margem de segurança. [Vacinas e medicamentos] podem ser completamente complementares”, refere Diana Lousa, secundada por Miguel Castanho: “Temos de estar preparados para que a vacinação não resolva tudo. Como é uma doença que deixa sequelas, temos não apenas de prevenir, mas também combater a doença. Não podemos abdicar de desenvolver medicamentos”.
Entre os diferentes avisos, Diana Lousa e Miguel Castanho partilham também algum otimismo de que o vírus SARS-CoV-2 deixe progressivamente de originar novas mutações de risco.
“Como a zona da proteína que faz a interação entre o vírus e a célula é relativamente pequena - e é aí que se dão as mutações -, poderemos ter esperança de que a capacidade de o vírus criar novas mutações é limitada”, explica o investigador do IMM. E a especialista do ITQB Nova resume: “Embora já tenham surgido algumas variantes de preocupação, não são assim tantas. Não é assim tão simples e tão provável que apareçam variantes de preocupação”.
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