Depois de dois ativistas ucranianos acusarem o professor Vladimir Pliassov de espalhar propaganda russa no Centro de Estudos Russos (CER) da Universidade de Coimbra, o reitor determinou a sua exoneração imediata, mesmo tratando-se de um cargo a título gracioso, já que o docente estava reformado daquela instituição. Pliassov foi docente da FLUC durante 35 anos. Ensinou literatura e cultura russas e criou o Centro de Estudos Russos em 2012, na Universidade de Coimbra.

A exoneração imediata do professor russo está a levantar indignação junto da comunidade académica de Coimbra, sobretudo por não lhe ter sido dado o direito de resposta. Por essa razão, uma petição pública está a decorrer online a pedir ao reitor a reintegração do docente na direção do CER.

“O Professor Vladimir Pliassov, durante 35 anos, prestou um inestimável serviço à Universidade de Coimbra no ensino da literatura, da cultura e da história russas, num espaço que se tornou, em 2012, o primeiro Centro de Estudos Russos (CER) da Península Ibérica, que prestigiou em muito a universidade que V. Exa dirige”, diz a petição assinada por mais de duas mil e quinhentas pessoas.

“É eticamente reprovável que um conflito que nada tem a ver com pessoas que prestam um contributo inestimável na promoção da sua cultura determine o seu cancelamento”, diz a petição, que considera ainda lamentável a falta de distanciamento da academia entre o “discurso literário, gosto pela liberdade e pelo sentido de justiça” e a “discriminação, pela perseguição política e pela injustiça, num desrespeito total pelos direitos humanos”.

Os autores da petição demonstram preocupação pelo caminho que a Universidade está a tomar, “fica comprovado que a universidade que dirige se rege por preconceitos e estereótipos, que são sempre redutores e próprios do senso comum e não de um ambiente académico, científico”, lembram.

Docentes da FLUC preocupados com a forma como o despedimento foi feito

Na quarta-feira, cerca de 60 docentes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra enviaram uma carta-aberta à reitoria demonstrando também preocupação à forma como o reitor exonerou Vladimir Pliassov de todas as funções que o ligavam ao CER “sem a realização de um inquérito que lhe permitisse responder às acusações de que foi alvo”, pode ler-se na carta.

Através desse documento intitulado, “Pelo direito ao contraditório e à presunção da inocência”, os docentes afirmaram que “foi com perplexidade” que tomaram conhecimento do “despedimento sumário” do diretor do Centro de Estudos Russos, Vladimir Pliassov.

Pliassov foi acusado de “propaganda russa” por dois ativistas ucranianos, num artigo de opinião publicado no Jornal de Proença e depois replicado pelo jornal Observador, que alegaram posteriormente, na Rádio Renascença, que o docente russo seria um ex-agente do KGB.

Dois ativistas ucranianos e ex-estudantes da UC denunciam “propaganda russa”

No referido artigo, Olga Filipova e Viacheslav Medviedev acusaram a Universidade de Coimbra de ser "um espaço para transmitir a propaganda imperial russa e a cultura que criou a Rússia moderna", através do CER.

“A propaganda imperial russa moderna reivindica: historicamente não há Ucrânia e não deveria existir. Afirma que houve uma agregação fictícia de territórios independentes num quase-estado e que, no entanto, a maior parte desse Estado, ou seja, o leste e o sul, “é terra russa”, que deveria ser definitivamente anexada à Rússia. A língua ucraniana é uma paródia, extraída da língua russa”, lê-se no artigo.

Os dois autores começam por assinalar alguns dos escritores russos que serão, ou foram, apoiantes do regime de Putin e que o CER juntava aos “Grandes Nomes da Literatura Russa” como recomendação de leitura. Entre outros apontamentos, é sublinhada a cooperação entre o Centro e a Fundação Russkiy Mir, uma organização “criada por ordem de Vladimir Putin em 2007”, com financiamento proveniente do “orçamento russo” e que foi incluída na lista de sanções à Rússia pela UE.

“A Fundação "Russkiy Mir" foi criada e financiada pelo Governo da Federação da Rússia. Tem sido utilizada pela Federação da Rússia para promover os seus interesses nos países pós-soviéticos. O seu mandato oficial consiste em promover a língua e a cultura russas em todo o mundo, mas a Fundação tem sido utilizada como um importante instrumento de influência pelo Kremlin, que está a promover fortemente uma agenda russocêntrica nos Estados pós-URSS, rejeitando a legitimidade da Ucrânia enquanto nação soberana e defendendo a sua unificação com a Rússia”, lê-se no documento de sanções de julho de 2022, publicado no Jornal Oficial da União Europeia.

Sem direito a contraditório, professor fala pela primeira vez sobre o sucedido

O Centro de Estudos Russos (CER), o primeiro e único centro do mundo russo em Portugal, foi aberto na Universidade de Coimbra em 2012. Numa entrevista publicada no sítio online da Associação AbrilAbril, o professor Vladimir Pliassov confirma a criação do Centro e que obteve ajuda da referida Fundação, “só precisava do financiamento", disse, negando que alguma vez tenha sido pressionado para defender politicamente os governos russos nas suas aulas em Portugal.

“Em 2007, havia problemas económicos na faculdade e propuseram-me reduzir o contrato a 60% ou ir embora. Decidi continuar a trabalhar lá, recebendo menos, porque havia muitos alunos a quererem aprender russo. Depois, em 2009, fui a Moscovo e quis falar com alguém que pudesse ajudar. Ouvi falar na Fundação Russkiy Mir. Expliquei-lhes todo o meu trabalho em Coimbra e como eles estavam a abrir centros em todo o mundo pensei que poderiam abrir também em Coimbra, até porque já havia todas as condições. Só precisava de financiamento."

No artigo de opinião, os ativistas não foram capazes de precisar até quando a Fundação Russkiy Mir apoiou o CER. Na entrevista, o professor afirma que o apoio terminou em 2021.

“Este apoio de financiamento existiu entre 2012 e 2021. No ano letivo, 2022 já não tivemos nada. Dois meses antes do início do conflito, já não havia qualquer ligação. Aliás, a fundação enviou mais dinheiro do que era necessário e a universidade queria devolver essa verba. Não sei se devolveram ou não. Nunca perguntei e não me interessa”, respondeu.

É, também, denunciada a presença de símbolos da Fundação espalhados pelos corredores da FLUC que após apelos da comunidade ucraniana em Coimbra, foram circunscritos apenas para o interior do Centro.

“Os materiais em russo no interior do edifício do CER indicam claramente que o centro ainda faz parte da rede global Russkiy Mir. Além disso, dentro das paredes da FLUC, podem encontrar-se imagens da bandeira russa, fotografias do Kremlin e outros símbolos do Estado russo, e referências à Igreja russa, que tem vindo a abençoar o assassinato de ucranianos desde 2014”.

Ao que o professor responde, “no jornal Público fizeram a pergunta sobre como é que diziam [os ativistas] que eu fazia propaganda se nunca tinham assistido às minhas aulas. Responderam que não era preciso, que bastava passar perto do centro. Uma das acusações era haver, na parede, fotografias do Kremlin, que é património da UNESCO. É curioso porque até 2015 havia imagens de Moscovo na parede feitas pelo então diretor da Faculdade de Letras, Carlos André, numa viagem [que fez] à capital russa.”

O SAPO24, tentou contactar com o professor russo através do email que ainda está disponível no site da FLUC, mas não recebeu resposta. Tal poderá prender-se ao facto de ter ficado sem acesso ao e-mail. “Cortaram-me o acesso à plataforma digital interna, também ao correio eletrónico. E eu não compreendo porque há muitos professores aposentados que continuam a usar o endereço eletrónico da faculdade”, disse em resposta à única entrevista que deu até ao momento, quando questionado como teve conhecimento da exoneração.

“Recebi uma mensagem dos serviços centrais onde me informaram do efeito imediato. Eu não percebi. Imprimi e fui ao gabinete do diretor da faculdade. Perguntei-lhe o que era aquilo e ele respondeu-me que também não sabia. Depois, esteve com o reitor e veio ter comigo. «Vladimir, entregue-me as chaves. Não pode entrar mais no centro», disse-me. Podia entrar na faculdade mas não no centro dos estudos russos.”

Reitor da Universidade de Coimbra “não teve outra alternativa senão despedir”

À Renascença, o reitor da Universidade de Coimbra disse que “depois de conhecer os factos que levaram às queixas dos ativistas ucranianos, não teve outra alternativa senão despedir o responsável pelo Centro de Estudos Russos, Vladimir Pliassov, acusado de desenvolver naquela universidade propaganda pró-Putin e a favor da invasão da Ucrânia”.

“A gravidade da situação obriga-me a fazê-lo [despedimento]. A contratação, ou melhor, a existência de um contrato com a Universidade de Coimbra não foi feita com o meu conhecimento. Assim que tomei conta do que se estava a passar, dei indicações para a rescisão do contrato e, portanto, o contrato a esta hora deve já estar rescindido”, afirmou Amílcar Falcão, à emissora católica, no dia 10 maio.

Ainda sobre a carta enviada à reitoria, os professores da FLUC que subscreveram o documento, “consideram que a situação cria um precedente inaceitável, suscetível de comprometer a relação de respeito e confiança entre a Universidade de Coimbra e os/as seus/suas funcionários/as, para além de pôr em causa princípios nucleares de direito e de cidadania”.

O abaixo-assinado, a que a agência Lusa teve acesso, foi entregue na reitoria da Universidade de Coimbra, com uma cópia endereçada também ao diretor da Faculdade de Letras que, ao telefone com o SAPO24, escusou-se prestar declarações sobre o assunto.

Até à data, não é conhecida a abertura de qualquer inquérito de averiguação sobre os factos reportados contra o docente afastado. Entretanto, a referida petição continua a receber assinaturas. O SAPO24 tentou falar com os/as autores/as da petição, mas não obteve resposta até à data de publicação.