“Trabalhamos, divertimo-nos e fizemos história. Congratulo-me com o primeiro sindicato da Amazon na América”, escreveu o novo líder sindical Christian Smalls na rede social Twitter, no dia um de abril. Não, não era mentira.
As histórias de lutas e denúncias entre a Amazon, o segundo maior empregador do setor privado nos Estados Unidas da América, com mais de 800 mil funcionários, e os seus trabalhadores são longas, com a empresa a ser várias vezes criticada pelo seu comportamento em termos de responsabilidade social e ambiental por associações e vários empregados.
O mal-estar foi ampliado pela pandemia. O conglomerado fundado por Jeff Bezos, o segundo homem mais rico do mundo, quase que duplicou o seu lucro em 2020, para 21 mil milhões de dólares (18 mil milhões de euros), graças à explosão da procura em contexto de confinamento, mas os trabalhadores queixam-se de cadências infernais e riscos para a saúde.
A certa altura, a Amazon chegou até a ser confrontada com relatos de trabalhadores obrigados a urinar no local de trabalho, em garras de plástico, por falta de tempo para se deslocarem à casa de banho. Primeiro, a empresa negou-o, mas mais tarde acabou por reconhecer a situação.
Ainda esta semana, o The New York Times denunciou o despedimento de duas designers informáticas e ativistas climáticas pelo conglomerado da Amazon, considerado “uma medida de represália” pela agência federal encarregada do Direito do Trabalho.
No entanto, e apesar de tudo o que já aconteceu, esta é uma história diferente. Um homem negro, de 33 anos, num país onde apenas cerca de 10% dos trabalhadores são sindicalizados, com o apoio do melhor amigo, levou a cabo uma luta de 11 meses que terminou este mês de abril com a criação do primeiro sindicato da Amazon. Contra os milhões e toda a campanha da empresa, David conseguiu derrotar Golias.
Chris, o homem "pouco inteligente ou articulado" tem uma missão
Quando, em março de 2020, os primeiros casos de Covid-19 foram confirmados no armazém JFK8, localizada no distrito de Staten Island, em Nova Iorque, Chris Smalls, mais conhecido por Chris na imprensa internacional, e o melhor amigo, Derrick Palmer, expressaram junto dos gerentes as preocupações de segurança dos funcionários que ali trabalhavam, que consideravam que a empresa não fazia chegar aos trabalhadores, em tempo útil, informação sobre os novos casos de infeção detetados, isto num período em que não só os números aumentavam de dia para dia, como a informação que existia sobre a doença era muito limitada.
Em resposta, a Amazon recusou-se a parar as operações, assegurando aos dois funcionários que tinha tomado “medidas extremas” para garantir a segurança dos trabalhadores. O armazém JFK8, considerado um "serviço essencial", continuou a funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana e os camiões da empresa continuaram a circular numa cidade em confinamento.
O cenário levou a que Chris transformasse o descontentamento dos trabalhadores do armazém numa greve pelos direitos de todos os que trabalhavam naquele contexto.
Enquanto a greve era planeada, o New York Times conta que a Amazon organizou-se para ripostar. Criou uma equipa de reação com dez departamentos, onde se incluía o Global Intelligence Program, um grupo de segurança composto por vários militares veteranos. A empresa nomeou ainda um “comandante de incidente” e criou dois documentos, um “Manual de Resposta a Protesto” e o “Manual de Atividade Trabalhista”, para evitar paragens na produção.
De acordo com o jornal norte-americano, foram mais os executivos alertados para o protesto do que os trabalhadores que participaram nele.
Ainda na sequência destas ações da empresa, num e-mail enviado por lapso a mais de mil pessoas, David Zapolsky, chefe do conselho da Amazon, descreveu Chris como "pouco inteligente ou articulado", aconselhando a que se fizesse dele "o rosto" dos esforços para organizar os trabalhadores.
Christian Smalls, supervisor no centro de distribuição do armazém JFK8, acabou por ser demitido ainda em março de 2020 pela direção da empresa, devido ao facto de ter participado no protesto que organizou. De acordo com a Amazon, Smalls não seguiu os protocolos de segurança ao parecer nas instalações, apesar de ter sido solicitado que se colocasse em quarentena após ser exposto ao novo coronavírus SARS-CoV-2.
Sem trabalho, sobrou apenas a missão: criar um sindicato, o primeiro da Amazon.
O Amazon Labor Union
O despedimento de Chris não o deixou sozinho na luta pelos trabalhadores daquele armazém. Lá dentro, Derrick Palmer ajudou-o a criar um grupo reivindicativo com outros colegas, sem qualquer afiliação a uma organização de trabalhadores nacional.
Na paragem de autocarro junto ao armazém em Staten Island, montaram mesas, tendas, fizeram fogueiras e churrascos na tentativa de criar ali um ponto de encontro para os trabalhadores, onde pudessem explicar a sua luta que também se prolongou pelas redes sociais, nomeadamente no TikTok. No total, gastaram mais de 120 mil dólares para criar o sindicato, uma quantia arrecadada através da plataforma de crowdfunding GoFundMe. Já de acordo com documentos federais citados pelo New York Times, a Amazon gastou mais de quatro milhões de dólares só em consultores anti-sindicais.
“Começámos sem nada, com duas mesas, duas cadeiras e uma tenda”, recorda, em entrevista ao jornal norte-americano, sublinhando que foi a constante presença da dupla em frente ao armazém que ajudou os trabalhadores a "ficarem confortáveis" e a "confiar" neles.
Inevitavelmente, chegou-se a um período em que a criação do sindicato tinha de ser decidida por votação. A empresa, que se opôs à sindicalização dos seus trabalhadores desde o início, entrou na campanha e chegou, inclusive, a colocar nas instalações do armazém cartazes a pedir aos trabalhadores para votarem “não”. A Amazon lançou ainda um ‘site’ para tentar colocar os funcionários contra a ideia, frisando que o sindicato é “um grupo de fora” que representa até “aqueles que não votam”.
Em abril de 2021 os trabalhadores votaram e a empresa venceu a primeira batalha contra Chris e Derrick, com muitos dos funcionários a não levarem a sério as propostas.
Sobre o Amazon Labor Union (Sindicato dos Trabalhadores da Amazon), a empresa dizia que Smalls “não tem experiência”, que “nunca negociou um acordo sindical” e que “nunca administrou os milhões de dólares que receberá dos salários” dos funcionários da empresa.
Apesar da derrota, os dois amigos não atiraram a toalha ao chão e apresentaram uma queixa contra a Amazon no Conselho Nacional de Relações de Trabalho, alegando que a empresa violou os direitos dos trabalhadores de se sindicalizarem.
A persistência levou a que no final de 2021 o grupo conseguisse um acordo nacional com a Amazon que passou a permitir que os trabalhadores pudessem permanecer nas instalações da empresa para tratar de assuntos sindicais, mesmo fora do horário de trabalho. No entanto, a vitória foi sol de pouca dura, com a polícia a ser chamada às instalações do armazém em Staten Island, em fevereiro de 2022, numa denúncia da empresa contra Chris, acusado de invadir o local quando entrava no armazém.
Christian e outros dois trabalhadores foram detidos, uma ação que terá sido fundamental para alterar o rumo dos acontecimentos e alterar a perceção de muitos trabalhadores, agora preparados para formalizar a criação do sindicato.
Na semana passada, decorreu uma nova votação. No total, 2.654 funcionários manifestaram-se a favor do sindicato, face aos 2.131 que se mostraram contra. A vitória foi celebrada de punhos no ar, gritos, abraços e espumante, à porta do Conselho Nacional de Relações de Trabalho.
"A Amazon queria tornar-me no rosto de todos os sindicatos contra eles", lembrou Chris. "Pronto, conseguiram", ironizou no Twitter.
Um dia depois da sua criação, o Amazon Labor Union recebeu uma palavra do presidente dos Estados Unidos da América que disse estar "satisfeito" com a criação do primeiro sindicato de trabalhadores da empresa de tecnologia e distribuição norte-americana.
O chefe de Estado democrata, que não perde a oportunidade de elogiar a ação dos sindicatos nos Estados Unidos, tendo inclusive apresentado um plano que incentiva à criação destas associações, está “feliz que os funcionários se certifiquem de serem ouvidos nas decisões importantes” que lhes dizem respeito, declarou.
Noutro polo, a Amazon respondeu com um comunicado em que afirmou que vai tentar impugnar a criação do sindicato, considerando que a autoridade para as relações de trabalho teve uma influência “desadequada” no caso.
"Estamos desapontados com o resultado da eleição em Staten Island porque acreditamos que ter um relacionamento direto com a empresa é o melhor para os nossos funcionários. Estamos a avaliar as nossas opções, incluindo a apresentação de objeções com base na influência inadequada e indevida do NLRB que nós e outros (incluindo a Federação Nacional de Retalho e a Câmara de Comércio dos EUA) testemunhamos nesta eleição", pode ler-se.
Sindicato da Amazon não é um caso isolado
A proporção de trabalhadores norte-americanos sindicalizados caiu de quase 20% em 1983 para cerca de 10% em 2021, segundo a Secretaria de Estatísticas de Trabalho dos Estados Unidos.
Paralelamente à fábrica de Staten Island, os trabalhadores de uma instalação em Bessemer (Alabama) também têm vindo a tentar criar um sindicato há vários meses. Em 2021 votaram por esmagadora maioria contra uma proposta de sindicalização apoiada pelo Sindicato dos Retalhistas, Atacadistas e Lojas de Departamento.
Mas a agência federal para as relações laborais (NLRB) pediu que se realizasse uma nova votação, alegando que a Amazon interferiu na eleição por meio de pressões aos trabalhadores. Na nova votação, 993 trabalhadores manifestaram-se contra e 875 a favor, mas ainda faltam contar 416 votos, cuja legalidade foi questionada, em alguns casos pela empresa e noutros pelos representantes dos trabalhadores.
As 416 cédulas "impugnadas" foram consideradas uma quantidade "determinante" pela NLRB. Isso significa que o número de células ainda a serem determinadas é grande o suficiente para decidir o resultado final.
Os responsáveis pelo sindicato disseram na semana passada, em conferência de imprensa, que a sua campanha do ano passado - que foi apoiada até pelo presidente Joe Biden - ajudou a impulsionar medidas semelhantes no resto do país.
Na rede de cafeterias Starbucks, surgiu um movimento para mudar a dinâmica trabalhista em dois estabelecimentos do norte do estado de Nova Iorque. Desde então, campanhas sindicais estão a desenvolver-se em mais de 150 estabelecimentos da multinacional, lideradas principalmente por trabalhadores jovens e universitários.
Em carta enviada a todos os trabalhadores da Starbucks em dezembro passado, o presidente da empresa, Kevin Johnson, realçou os benefícios que a empresa lhes proporciona, como baixas e licenças parentais pagas e acesso gratuito à Universidade Estadual do Arizona.
No último mês, a empresa também anunciou aumentos salariais, dizendo que todos os trabalhadores vão ganhar pelo menos 15 dólares por hora no próximo verão.
Mas os apoiantes do sindicalismo entendem que a Starbucks pode fazer mais.
“Se a Starbucks consegue encontrar dinheiro para pagar ao seu presidente cerca de 15 milhões de dólares, penso que talvez consiga pagar aos seus trabalhadores um salário decente com benefícios decentes”, disse o senador Bernie Sanders, um independente eleito pelo Estado do Vermont.
Segundo a AFP, campanhas sindicais também foram bem-sucedidas recentemente em museus, ONGs, empresas de comunicação e universidades. Além desses setores, os sindicatos batalharam para ganhar espaço, especialmente em estados do sul e do oeste, onde a percentagem de funcionários sindicalizados é particularmente baixa.
*com agências
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