O termo “banalização” foi utilizado por Ana Catarina Mendes, líder da bancada parlamentar do PS. A socialista insurgiu-se depois de o Parlamento ter empregado 42 minutos da sessão plenária da passada quinta-feira, 12 de dezembro, a deliberar sobre um total de 42 votos de pesar, condenação ou saudação em temas tão díspares como elefantes no Camboja ou projéteis da Coreia do Norte. Também Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, reagiu. "Isto não pode nem deve continuar assim para bem da Assembleia da República", disse na mesma data.
"Temos muitos votos sobre as mais variadas matérias. Apelei já há semanas ao consenso político no sentido da dignificação do parlamento. Solicitei contenção e qualificação", declarou Ferro Rodrigues no início das votações, acrescentando depois que iria solicitar ao grupo de trabalho que está a rever o regimento da Assembleia da República que tomasse medidas nesta matéria.
O número de votos propostos pelos partidos representados na Assembleia da República entrou assim na ordem do dia. Mas afinal de quantos votos se trata? E em que matérias? E quais as particularidades das iniciativas apresentadas nesta ainda curta legislatura que tornaram o tema digno de nota? Para responder a estas questões percorremos a lista de todas as iniciativas submetidas a votação na Assembleia da República até 12 de dezembro, que podem ser consultados aqui, e a partir daí fomos ver ao detalhe o tipo de voto, quem propõe, como vota cada um dos grupos e o resultado final da votação. O resultado desse trabalho de análise pode ser consultado aqui.
E agora passemos às conclusões que este nos permite retirar.
Nos primeiros três meses desta legislatura já se votaram 115 destas iniciativas partidárias. Quase tantas como as apresentadas no primeiro ano da última legislatura — 119 no total.
Aliás, a passada legislatura foi mesmo a recordista no número de votos apresentados, num total de 886. O número é três vezes superior ao da legislatura encabeçada pelo governo de Passos Coelho, entre 2011 e 2015, em que foram a votos 308 propostas.
E se continuarmos a recuar no tempo, continuamos a recuar também no número de votos: 120 votos na XI Legislatura (entre 2009 e 2011), 228 votos na X Legislatura (entre 2005 e 2009), 228 votos na IX Legislatura (entre 2002 e 2005), 172 votos na VIII Legislatura (entre 1999 e 2002), 159 votos na VII Legislatura (entre 1995 e 1999), 150 votos na VI Legislatura (entre 1991 e 1995), 48 votos na IV Legislatura(entre 1985 e 1987) e 12 votos na III Legislatura (entre 1983 e 1985). Apenas a V Legislatura (entre 1987 e 1991) escapa a esta tendência, tendo sido votados nesses quatro anos 226 propostas. Nas duas primeiras não há registos do número de votações.
O que se vota?
De acordo com a tipologia disponível no site da Assembleia da República, os votos em causa podem ser de 13 temáticas: condenação, condenação e pesar, condenação e preocupação, congratulação, louvor, pesar, pesar e solidariedade, protesto, protesto e saudação, repúdio, saudação, saudação ou homenagem e solidariedade. Podem ser propostos pelos deputados, pelos grupos parlamentares ou pela Mesa da Assembleia da República, sendo depois sujeitos à votação e aprovados por unanimidade, aprovados parcialmente ou rejeitados.
No top3 das votações nesta ainda curta legislatura estão os votos de saudação (23), seguidos pelos de pesar (20) e os de condenação (16). Saudou-se o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, o Dia Internacional do Voluntariado ou a Seleção Nacional de Futebol de Praia pela conquista do Campeonato do Mundo de Futebol de Praia. Foi feito pesar pelo falecimento em serviço do Cabo Jorge Gomes, da GNR, ou de figuras das artes e do desporto nacional, como José Mário Branco, Eduardo Nascimento e Domingos Piedade. E condenou-se "o aumento da taxa de desflorestação da Amazónia e a ausência de políticas de proteção e preservação da natureza" ou o "genocídio contra a minoria Yazidi levado a cabo no Iraque pelo autoproclamado Estado Islâmico". Só a título de exemplo.
É precioso salientar que, dos 115 votos apresentados na Assembleia da República, em dois deles foi solicitada uma votação por pontos — o que quer dizer que, na prática, votou-se 117 vezes.
No voto número 58, apresentado pelos CDS-PP — "De repúdio e condenação contra o racismo no desporto e de solidariedade para com o atleta da Seleção Nacional Bernardo Silva" —, o PAN requereu a votação em dois pontos. O primeiro foi aprovado por unanimidade e o segundo rejeitado com votos contra do PS, BE e Livre e abstenção do PAN. Em linguagem corrente, isto significa que todos os partidos com assento parlamentar votaram favoravelmente o "repúdio e condenação contra o racismo no desporto", mas, a segunda parte, referente à "solidariedade para com o atleta da Seleção Nacional Bernardo Silva" teve os votos contra do PS, BE e Livre e abstenção do PAN.
Já no voto número 85, igualmente apresentado pelos centristas — "De condenação e solidariedade pelas condições enfrentadas pelas crianças da Venezuela" —, o PS e o Livre também solicitaram a votação em dois pontos, que foram aprovados sem unanimidade.
Por falar em consenso, mais de metade dos votos (76) foram aprovados, sendo 41 deles por unanimidade. Os votos de pesar e saudação são os que colocam os partidos mais vezes em concordância.
Noutra nota, antes de começarmos a entrar em detalhes, apenas o PS não tem disciplina de voto. Em vários momentos, alguns deputados socialistas tiveram posições diferentes (votando contra, a favor ou abstendo-se) da do partido. Por exemplo, no caso voto proposto pelo Chega de "pesar e solidariedade pelas vítimas do sismo ocorrido na Albânia", em que o PS se absteve, dois deputados socialistas votaram contra. Ou no caso do voto de "saudação pelo 44.º aniversário do 25 de novembro", situação em que o PS também se absteve, sete deputados socialistas votaram a favor e um contra.
Porque razão um deputado ou mesmo um grupo parlamentar há de ser contra um voto de pesar e solidariedade com pessoas de um país, como é o caso da Albânia, que foram vítimas de uma tragédia? A razão não está no tema do voto, mas no texto que o acompanha. Isto é, muitas vezes na redação é que está o motivo da discórdia. Ou simplesmente pode ser uma forma de um partido ou deputado se demarcar do partido ou deputado que apresenta a iniciativa.
E se não se julga um livro pela sua capa, é importante referir que o título ou tema dos votos não os resumem. No site da Assembleia da República é possível ter acesso aos textos que acompanham e justificam as propostas de votos. Não estranhe ainda se encontrar um número superior aos aqui mencionados, uma vez que há textos que ainda não foram a votação (5) e outros (8) que foram retirados pelos proponentes antes de serem sujeitos ao escrutínio do hemiciclo.
Quem tem mais iniciativa?
O Chega de André Ventura é o campeão nos textos a votação (22 iniciativas de voto), mas o CDS-PP (21 iniciativas de voto) e o PS (16 iniciativas de voto) ficam nos lugares imediatos do pódio. De destacar que do total de iniciativas de voto submetidos à votação do hemiciclo pelo Chega, 16 deles foram votados no último plenário, a 12 de dezembro.
No oposto da tabela está o PEV (1 iniciativa de voto), o Iniciativa Liberal (2 iniciativas de voto) e o Livre (3 iniciativas de voto). O partido da deputada única Joacine Katar Moreira estreou-se no último plenário com a submissão dos textos a votos.
Mas a iniciativa pode vir também de vários partidos, como aconteceu por três ocasiões. Por exemplo, além da proposta do Chega que vimos acima, também PS e PSD apresentaram um voto de "pesar pelas vítimas do sismo ocorrido na Albânia", neste caso em conjunto. Noutro caso, PS, PSD, BE e CDS-PP propuseram um voto de "condenação do genocídio contra a minoria Yazidi levado a cabo no Iraque pelo autoproclamado Estado Islâmico". Já o PSD e CDS-PP propuseram um voto de "congratulação pela importância social desenvolvida ao longo de um século e meio pelo Instituto Monsenhor Airosa em Braga". Nos três casos, apenas os dois primeiros foram aprovados por unanimidade e o último teve o voto contra do BE.
No caso dos seis votos apresentados pelo Presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, todos foram aprovados por unanimidade.
Contra ou a favor, quem dá mais?
O Livre é o partido que mais se abstém (18 abstenções) e o Bloco o que menos (7 abstenções). Aliás, uma das abstenções da deputada Joacine Katar Moreira originou uma crise interna no partido. Em causa esteve a abstenção na proposta de voto do PCP de "condenação da nova agressão israelita a Gaza e da declaração da Administração Trump sobre os colonatos israelitas".
O partido socialista foi quem mais vezes votou contra (35 votos contra). Segue-se o PCP (34 votos contra) e BE e o PEV (com 30 votos contra). Já o Iniciativa Liberal foi o partido que menos vezes esteve contra os textos propostos a votação (13 votos contra).
Todos os votos propostos pelo PS e pelo PSD foram aprovados, por unanimidade ou parcialmente.
As duas únicas propostas do Iniciativa Liberal foram rejeitadas. Mas o campeão das propostas rejeitadas é o Chega, num total de 19.
Uma curiosidade que os números revelam: o Partido Socialista abstém-se ou vota contra em grande parte dos temas de política internacional. O que pode ser entendido à luz de este ser o partido do Governo, tendo como tal que conciliar declarações parlamentares com a política externa do Executivo.
Outra curiosidade: não tendo maioria parlamentar, o PSD e o CDS-PP foram os partidos com mais votos aprovados por unanimidade (9 cada).
Dá que pensar
Há temas como a instabilidade social e política no Chile (5 propostas), as agressões sofridas pelos Bombeiros do Quartel de Borba (7 propostas) ou a morte de um militar da GNR (3 propostas) em serviço que motivaram vários textos diferentes apresentados por parte de vários partidos. As propostas de votos variam entre elas na abordagem ao tema e no carácter do voto (se de solidariedade ou de condenação).
O PEV absteve-se no voto proposto pelo PAN de "condenação pelo incumprimento de regras de proteção e bem-estar animal no transporte de animais vivos em diversos estados e pela morte de mais de 14 mil ovelhas no âmbito do transporte de animais vivos".
Nem todo os votos têm carácter político, são exemplos os casos do voto de louvor aos ginastas do Acro Clube da Maia (proposto pelo PSD) ou de louvor ao Coro Misto da Beira Interior pelas Medalhas de Ouro conquistadas no Adriatic Pearl Choir Competition & Festival (proposto pelo CDS-PP).
No caso dos votos de pesar pela morte de alguém, a unanimidade é quase a regra, mas também há exceções. Até aqui, três: os votos de pesar pelo falecimento do histórico deputado do CDS José Maria Andrade Pereira, do líder indígena Paulo Paulino Guajajara e do militar da GNR em serviço apresentado pelo Chega que não foram aprovados por unanimidade.
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