Fica na Cidadela de Cascais, a fortaleza localizada no centro da vila, mesmo em frente ao palácio que já foi residência de Verão dos reis de Portugal e é agora uma pousada. Do lado de fora, o restaurante/bar Taberna da Praça quase lhe serve de disfarce e até o sinal em jeito de ementa engana os mais distraídos. Mas é aí, no primeiro andar, que mora uma livraria de charme.
Os degraus são acanhados e é já quase no cimo do lanço de escadas que é possível adivinhar, pela decoração dos dois nichos laterais, que o que aí vem é muito mais do que um espaço de livros em prateleiras. A atenção fica presa nas capas espalhadas pelas salas, mas, mais do que isso, em cada objecto e detalhe da decoração. Das peças antigas às mensagens intemporais, um ambiente alegre e cheio de caráter.
Como todos os livros, a Dejá Lu também tem uma história: "Há 18 anos tive uma filha com Trissomia 21", conta Francisca Prieto. O diagnóstico foi pré-natal, a suspeita surgiu na ecografia das 12 semanas - que determina o tempo de gravidez e diagnostica precocemente a existência malformações no feto -, a confirmação chegou com os resultados da amniocentese (colheita de líquido amniótico).
"Temos esta ideia de que em Portugal não há nada, mas fui descobrir a APPT21 e o Centro de Desenvolvimento Infantil Diferenças, que trabalha com miúdos com diferentes tipos de patologias. Fiquei espantada com tanto apoio", recorda. A primeira consulta que teve estava grávida, o vínculo manteve-se até hoje.
Mãe de dois filhos, Francisca decidiu mudar de vida e aproveitar o tempo para se preparar para a chegada do terceiro bebé. "Já que não ia ter uma gravidez tranquila, ao menos que a aproveitasse da melhor maneira. Vi o que a associação fazia com os poucos recursos que tinha e decidi oferecer os meus préstimos".
É que Francisca Prieto é publicitária e durante anos trabalhou em grandes multinacionais. No caso da APPT21, "óptimos médicos, péssimos angariadores de fundos. Ofereci-me para trabalhar a imagem da instituição e da angariação de fundos. Para mim era um raciocínio muito óbvio, tinha os contactos das empresas, sabia como ajudar sem grandes custos, cruzar os interesses de ambos".
As ideias foram surgindo em catadupa, das mais óbvias - "houve um ano em que fizemos uma feroz concorrência à UNICEF com os cartões de Natal", brinca - às mais rebuscadas. Até que a crise de 2008 bateu à porta. "As empresas começaram a cortar nos orçamentos e a pensar muito bem a quem davam dinheiro. Houve abalos, aquela coisa das doações de cinco mil euros deixou de acontecer".
Nos sótãos também nascem grandes empresas, não é só nas garagens
Por coincidência, lembra Francisca, tinha chegado a Portugal a moda das vendas de garagem e, mais tarde, o OLX (em Portugal desde 2012). "Um dia, estava em casa a fazer arrumação de livros, sou uma leitora ávida, e pensei: tenho estes livros todos e em tão bom estado, o que lhes faço?" Grandes males, grandes remédios. Foi então que decidiu fazer um blogue para os leiloar.
"Sou um bocadinho info-excluída", confessa, "mas era uma coisa muito simples: juntava lotes de livros, por exemplo, Gabriel García Márquez e Isabel Allende, fazia uns posts temáticos com graça, fixava um valor mínimo e vendia online". Ganhava quem oferecesse mais, sempre com alguma adrenalina no minuto de fecho do leilão.
Nesta altura, Francisca já tinha a ajuda de Maria Veiga, uma amiga que veio a tornar-se sua sócia e que "sempre alinhou nestas maluqueiras". Para manter o ritmo era necessário ter mais livros, pelo que decidiram lançar um apelo a amigos. A resposta não se fez esperar e agora não eram só os amigos a colaborar, havia também editoras.
"Trabalhávamos no sótão de minha casa e costumávamos brincar: em Silicon Valley as grandes empresas começam em garagens, nós cá começamos por cima, no sótão", ri. Em três ou quatro anos o blogue arrecadou cerca de mil euros por mês. Num instante não tinham mãos a medir e não conseguiam dar vazão aos livros que chegavam. Além disso, "havia livros muito bons, mas outros em bastante mau estado, era preciso selecionar para manter o nível que queríamos ter".
É então que abre o Pestana Cidadela de Cascais, com o conceito art district, com diversos espaços de exposição, galerias e estúdios onde artistas podem trabalhar em paz, incluíndo residências para escritores. "Senti que fazia todo o sentido ter uma livraria solidária naquele espaço e fui falar com Joana Soeiro, diretora na altura. Fizemos uma apresentação em PowerPoint e, logo no dia a seguir, telefonou a dizer que havia fumo branco, ainda não sabia como, mas tinha de acontecer, porque o projecto era espetacular".
A Dejá Lu abriu a 28 de Fevereiro de 2015, completou nove anos este ano. Até hoje já doou perto de 250 mil euros à APPT21, associação para a qual reverte todo o dinheiro da venda dos livros em segunda, terceira, quarta ou quinta mão, vendidos a um preço que varia entre os três e os sete euros (em média, porque há mais baratos e mais caros).
São livros doados por quem conhece o projeto. Em português, mas também em muitas outras línguas, como inglês, francês, alemão, espanhol ou italiano. "Só não aceitamos enciclopédias, livros escolares e livros muito técnicos. De resto, da poesia ao tarot, tudo é bem-vindo", reforça Francisca. Os clientes são nacionais e estrangeiros, turistas eventuais e consumidores habituais, uns à procura de pechinchas, outros à procura de relíquias e raridades. Porque ali aparece de tudo - às vezes raridades depois vendidas a alfarrabistas.
Uma curiosidade, que mostra o cuidado e a sensibilidade de quem recebe os livros, muito para lá do toque decorativo, é a parede forrada com tudo o que aparece esquecido dentro dos livros doados, de cartões a postais, bilhetes, fotografias, esquissos e até flores secas ou origami.
Mas a Dejá Lu não é só uma loja, é uma forma de vida. E funciona única e exclusivamente através de voluntariado. "Temos todo o tipo de voluntários e gostamos de os encaixar nas tarefas que preferem fazer. Há os que fazem a triagem dos livros, os que limpam o pó dos livros, os que introduzem os livros que chegam no sistema informático, os que fazem o atendimento ao público. Por exemplo, a mãe da Maria Veiga, que é irlandesa, tem mais de 80 anos e é muito divertida, só trata dos livros estrangeiros. A Ju, uma senhora que ia reformar-se, mas tinha medo de ficar inactiva, faz atendimento ao público". Trabalho não falta e livros, cerca de oito mil em permanência, também não. Um turno são cerca de três horas e meia por mês.
De resto, o espaço nunca está igual. Há sempre mais um livro, um rádio velhinho, um telefone de fios do tempo da outra senhora ou uma máquina de escrever antiga que alguém se lembrou de trazer. E oferecer. E, porque são um bocadinho "napoleónicas", Francisca e Maria já entraram pelo Pestana Cidadela dentro, que agora tem uma honesty shop - a pessoa pega no que quer e deixa o dinheiro.
A pousada tem neste momento três quartos literários, todos intervencionados pela Dejá Lu. "A Fundação D. Luís tem um programa para escritores e oferece residências literárias e do quarto de autores já sairam obras completas". Francisca Prieto conta isto enquanto segura num livro de Michael Cunningham, "As Horas". Conheceu-o quando este esteve ali hospedado dois meses, em 2019, a convite da fundação, a trabalhar no título "Dia".
A Dejá Lu tem ainda um espaço para encontros, mais ou menos reservados. Alberto do Mónaco já ali esteve. Vasco Lourenço também. Muitas vezes os autores estão incógnitos, mas também há conversas com o público. À medida que o tempo avança, outras ideias vão sendo magicadas. A livraria está aberta de terça a domingo, das 12h00 às 19h00. Para levar ou trazer livros.
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