Editado pela Imprensa Nacional, o livro “Dicionário dos Antis: A Cultura Portuguesa em Negativo”, volumes 1 e 2, vai ser lançado na quarta-feira à tarde, na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa.
Com direção de José Eduardo Franco, esta obra apresenta um olhar diferente, sobre o avesso da cultura portuguesa, e resulta de um longo trabalho de pesquisa, reflexão e redação, ao longo de mais de uma década, disse o próprio à Lusa.
“Fomos habituados, na escola, a aprender fundamentalmente aquilo a que podemos chamar a cultura positiva, a visão afirmativa da história. Este dicionário, em contrapartida, propõe uma visão diametralmente oposta: uma viagem pelas correntes, as etnias, as religiões as instituições, as figuras a partir do olhar do adversário, de quem discordou, de quem atacou, de quem pensou o contrário”, disse José Eduardo Franco.
Este dicionário pretende, assim, apresentar o resultado da investigação e da análise crítica das correntes e dos discursos centrados na história de Portugal - desde os primórdios da cultura e da civilização até aos dias de hoje -, com base na perceção negativa dos outros, como por exemplo, o judeu, o padre, o inglês, o muçulmano, o comunista, o maçon ou o castelhano.
Na opinião do responsável pela obra, esta abordagem, que analisa “a história da cultura numa espécie de imagem em negativo”, vai permitir compreender em que medida é que esses discursos “criaram estereótipos e demonizaram diferenças.
Citando Duarte Azinheira, diretor editorial da Imprensa Nacional, na nota de apresentação que fez para o livro, “o ‘Dicionário dos Antis’ constitui-se como uma espécie de história da cultura portuguesa, olhada do ângulo dos dinamismos de oposição e de contradição, que permite compreender-nos a partir de uma perspetiva inabitual, abrindo caminhos de perceção da ‘diferença’, de uma forma inovadora, mais abrangente e mais complexa.”
Segundo José Eduardo Franco, com este mapeamento de largo espetro, torna-se mais fácil compreender o poder dos estereótipos e da sua capacidade de gerar culturas e mentalidades “intolerantes, segregadoras, sectárias, exclusivas e excludentes”.
Para explicar a ideia de “cultura do negativo” e a forma como esta se expressa, o diretor da obra, que começou a ser preparada em 2011 e envolveu centenas de investigadores nacionais e internacionais, socorreu-se de algumas imagens.
“É como se entrássemos numa casa, a casa da cultura portuguesa, e deparássemos com um cenário inquietante, com os móveis de pernas para o ar, os armários virados do avesso, as partes menos arrumadas e sujas à vista de todos; ou como se acordássemos de manhã e víssemos no espelho as imagens que têm de nós os outros que menos nos querem e apreciam; ou ainda, como se recebêssemos a nossa biografia negativa, uma narrativa produzida por aqueles que nos detestam”.
Embora possa parecer uma “obra estranha”, revela uma “dimensão importante e altamente fecunda e mesmo muito reprodutiva da nossa cultura”, porque “o negativo também faz história e cultura” e isso não pode ser desconsiderado, porque “é um elemento constitutivo do processo de construção de identidades, quando não parte integrante das mesmas”, sublinhou.
“A produção de discursos ‘anti’ foi responsável por povoar a nossa cultura e os imaginários do ‘Outros’ de uma série imensa de estereótipos”, acrescentou.
Ou seja, é um tipo de discurso que instaura um conhecimento do outro por meio de “visões simplificadas e simplificadoras, pobres e empobrecedoras, deturpadas e deturpadoras, exageradas e exageradoras que obstruem a compreensão do outro na sua complexidade, riqueza e diversidade”.
José Eduardo Franco destaca ainda que no atual contexto, em que as chamadas ‘fake news’ e versões deturpadas estão na ordem do dia, este dicionário dá conta de como ao longo da história este recurso propagandístico também foi recorrente e poderá ajudar a desenvolver o espírito crítico para desmontar muitos documentos com visões ideologicamente condicionadas.
A ideia de fazer este dicionário surgiu em 2004 no âmbito da conclusão do doutoramento de José Eduardo Franco, realizado na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, em que estudou e analisou criticamente alguns discursos anti, nomeadamente o antijesuitismo na relação com o antissemitismo, o anticastelhanismo, o anti-islamismo, o antimaçonismo, o antiprotestantismo e o anticomunismo.
Este dicionário começou a ser feito em 2011 – a partir de um outro editado com António Marujo sobre “Intolerância em Portugal” – e envolveu quase três centenas de investigadores, especialistas e consultores nacionais e internacionais das mais diversas universidades e de deferentes áreas científicas, entre as quais Filosofia, Teologia, Economia, Literatura, Medicina, Física e Química, Direito, a Sociologia, Biologia, Psicologia e Ciência Política.
Atualmente, encontra-se em estado avançado de preparação uma versão brasileira desta obra sob o título “Dicionário dos Antis: A Cultura Brasileira em Negativo”, revelou o responsável, adiantando que outras universidades e investigadores de outros países “estão a gizar obras semelhantes para ampliar este campo de investigação das Culturas em Negativo”.
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