Ditou a sorte que esta noite fosse João Ferreira a iniciar o debate presidencial que colocou o candidato comunista contra Marcelo Rebelo de Sousa, na corrida para cinco anos em Belém.
Marcelo "não é neutro" nas funções de Presidente e "demonstrou por diversas vezes essa não neutralidade no exercício de poderes em conflitos que percorrem a sociedade portuguesa. (...) Em momentos-chave, em que era importante dar um sinal de valorização do trabalho e dos trabalhadores (...) isso não aconteceu". Em resumo, "convergiu com aquilo que foram as posições ao longo do tempo dos partidos mais à direita".
Esta foi a ideia central que João Ferreira procurou trazer ao debate: Marcelo é um presidente da direita. Esta foi a ideia que o atual presidente procurou desmontar todo o debate, afirmando-se como um fator de estabilidade, e até virou o argumento contra o candidato comunista: "É preciso um Presidente que não seja de fação".
O Estado de Emergência, o Sistema Nacional de Saúde vs o Serviço Nacional de Saúde, o Novo Código do Trabalho, o caso do procurador José Guerra e a lei da eutanásia foram os temas trazidos a debate neste frente-a-frente.
E se há muito que une os candidatos — desde concordarem sobre a importância do Serviço Nacional de Saúde, da necessidade de melhores salários e melhores condições para os trabalhadores ou de apoio para as micro, pequenas e médias empresas — separa-os o fosso entre o "ótimo" e o "possível".
- "Marcelo Rebelo de Sousa não é neutro no exercício das funções de Presidente" - João Ferreira
- "As minhas intervenções foram estabilizadoras, superando crises, evitando crises e contribuindo para superar crises" - Marcelo Rebelo de Sousa
- "A bomba atómica é uma bomba atómica, não é uma pistola de pressão de ar e só se utiliza quando há razão para utilizar" - Marcelo Rebelo de Sousa.
- "Um Presidente é independente, sinto-me independente, sou independente" - Marcelo Rebelo de Sousa
- "Refere-se muitas vezes ao sistema nacional de saúde, e isto é estranho à Constituição. É uma expressão que compreendo, lá está a não não neutralidade no exercício das funções de Presidente, em que tende a pôr em pé de igualdade o Serviço Nacional de Saúde e o negócio que alguns grupos económicos fazem" — João Ferreira.
- "É preciso um Presidente que não seja de fação, que não seja dirigente de um partido, porta-voz de um partido, mas que seja um Presidente de compromisso, de estabilidade, isso é o fundamental" - Marcelo Rebelo de Sousa
- "Eu não sou a favor da existência de um referendo [sobre a eutanásia], mas como Presidente da República respeitaria a vontade do parlamento" - João Ferreira
O Presidente de todos os portugueses
"Um Presidente é independente, sinto-me independente, sou independente. Por maioria de razão sou Presidente de todos os portugueses". Foi assim que Marcelo respondeu a Pedro Mourinho, moderador deste debate, quando questionado sobre uma eventual tentação de empurrar a direita para o poder.
A provocação surgiu depois de João Ferreira colar Marcelo à direita, acusando-o de "não ser neutro" no exercício de funções e de, "em momentos-chave", ter falhado a Constituição, nomeadamente na valorização do trabalho e na defesa dos trabalhadores.
"O passado mostra que eu fui um fator de estabilidade", replicou Marcelo. "Eu venho da direita, coabitei com um governo de esquerda, não fiz questão de impor a direita no poder, e essa é a função do Presidente", replicou.
Apesar de ver "esta legislatura como uma que tem de ir até ao fim", assumiu que "a direita tem direito a organizar-se e é essencial que seja forte no futuro, para concorrer às eleições de 2023, porque um sistema manco, coxo, é um sistema politico onde entram os radicalismos".
Portanto, o recandidato apresenta-se nesta corrida "com a predisposição para ser o mesmo", e só utilizará "a bomba atómica" quando tiver razões que o justifiquem. "A bomba atómica [a dissolução do parlamento] é uma bomba atómica, não é uma pistola de pressão de ar".
Na réplica a João Ferreira, Marcelo afirmou que o país precisa de um "presidente que não seja de fação, que não seja dirigente de um partido, porta-voz de um partido, mas que seja um presidente de compromisso, de estabilidade, isso é o fundamental. Não é uns contra outros".
Sobre o trabalho e os trabalhadores
Para justificar a falta de neutralidade de Marcelo, João Ferreira recordou que Marcelo promulgou o Novo Código do Trabalho, que prevê um alargamento do período experimental, de três para seis meses, e que "previa a desregulação dos horários de trabalho através dos bancos de horas".
"Podia ter pedido a fiscalização do Tribunal Constitucional e optou por não o fazer. Manifestou através desta opção uma não neutralidade".
A par, lembrou que Marcelo há cerca de um ano considerou o salário mínimo de 635 euros "razoável". "Quem faz as contas ao fim do mês não achará este valor razoável, não é um valor justo", atirou.
Em matéria laboral, Marcelo disse que votou "segundo a sua consciência". "Promulguei um diploma que a direita não gostou, o meu antecessor criticou-me por isso, [o da] lei das 35 horas, porque achei que devia ser", exemplificou.
"Todos gostaríamos" de poder ter melhores salários e garantir mais condições aos trabalhadores, mas "em matéria laboral, como noutras, o Presidente tem de ter presente a situação de crise pandémica, a situação de crise económica, a situação das pequenas, micro e médias empresas e perceber a dificuldade nesse contexto de ir para o ótimo social", respondeu Marcelo.
Depois, a uma alfinetada: "Se há partido que percebe isto é o PCP, porque viabilizou cinco orçamentos, três dos quais do presidente do Eurogrupo, dizendo que não concordava com tudo o que lá estava socialmente, mas sinalizando que tinha conquistas sociais".
"O possível muitas vezes é diferente do ótimo", concluiu.
O Sistema Nacional de Saúde vs o Serviço Nacional de Saúde
Foi João Ferreira a protagonizar "A alfinetada" da noite ao dizer o seguinte: "Refere-se muitas vezes ao sistema nacional de saúde, e isto é estranho à Constituição. É uma expressão que compreendo, lá está a não não neutralidade no exercício das funções de Presidente, em que tende a pôr em pé de igualdade o Serviço Nacional de Saúde e o negócio que alguns grupos económicos fazem".
"E acho que esta pandemia demonstrou que nós temos de encaminhar os recursos públicos não para sustentar grupos económicos que fazem negócio nesta área, e cujo objetivo é o lucro, o que ficou visível quando desertaram no combate à pandemia. E isto é uma questão que nos afasta muito", concluiu.
Marcelo "arrumou" o tema com uma frase: "Eu promulguei a Lei de Bases da Saúde (...) e nunca tive dúvidas da centralidade do serviço nacional de saúde. Uma realidade é uma coluna vertebral, outra realidade são serviços complementares".
Antes, na primeira vez que o candidato comunista tentou trazer para o debate o tema do Serviço Nacional de Saúde, Marcelo sinalizou que este é "central" e recordou a promulgação do diploma que prevê prémios que "infelizmente", disse, ficaram "ciscunscritos àqueles que trabalham com doentes covid-19. Foi um passo importante, mas outros passos são fundamentais, como um estatuto para o pessoal da saúde, um reforço de investimento [no Serviço Nacional de Saúde] e a aplicação do que está previsto no Orçamento para 2021".
Um estado de emergência necessário, mas em certa medida contraproducente
Não concordam em toda a linha, mas aproximam posições. Quando a renovação do estado de emergência chegou ao debate, João Ferreira assumiu que "não podemos menosprezar a gravidade desta pandemia (...) e isto coloca-nos perante a necessidade de adotar medidas de emergência". Marcelo, por sua vez, salientou que este é fundamental para dar cobertura constitucional e jurídica a algumas das medidas adotadas pelo Governo.
Todavia, João Ferreira criticou a renovação sucessiva deste estatuto, o que contribui para a sua "banalização" e a ineficiência de algumas medidas, como as restrições horárias, que contribuem para concentrar a população nos equipamentos públicos em determinadas horas do dia. A par, criticou "o muito que está por fazer", nomeadamente "adequando as proteções no local de trabalho, nos lares, nos serviços públicos e nos transportes públicos".
O recandidato a Belém assumiu que "ninguém gosta de decretar estados de emergência", mas ressalvou que estes têm tido o consenso generalizado dos partidos. Salientando que houve medidas importantes que este estatuto permitiu aplicar, assumiu que nem tudo está feito — e até avançou com uma proposta de alargamento das moratórias.
"É preciso olhar para a métrica do trabalho, o layoff foi um mal necessário para manter emprego, agora discute-se a necessidade da sua substituição por forma a garantir o emprego. Os pequenos e médios empresários precisam de uma ajuda direta do estado e não apenas de moratórias. Penso que se devia pensar o período de pagamento, porque o alongar por seis meses ou um ano é curto para muitos pequenos, micro e médios empresários, para ter folgo".
"E, em termos sanitários, tudo o que se puder fazer para garantir o reforço do Serviço Nacional de Saúde e uma coordenação entre a Saúde a Segurança Social, nomeadamente em lares, tudo o que puder ser feito, deve ser feito", concluiu.
O caso do procurador José Guerra
Marcelo falou em "desleixo" neste caso no debate com Marisa Matias e hoje mostrou-se conformado (mas aparentemente desconfortável) com o facto de António Costa ter reforçado a sua confiança na Ministra da Justiça.
João Ferreira fala em "trapalhada" e disse que cabe a um Presidente ter um papel na procura dos esclarecimentos necessários. Marcelo garantiu que o fez: "obviamente já procurei [esclarecimentos]. E a resposta que foi dada pelo senhor Primeiro-ministro é que mantém a confiança na senhora Ministra da Justiça".
Eutanásia
Marcelo diz que espera receber ainda antes das eleições a lei da eutanásia e decidirá em devido tempo. A confirmar-se, Marcelo Rebelo de Sousa, católico, Presidente e de novo candidato a Belém, poderá ser obrigado a tomar uma decisão sobre a matéria durante a campanha das eleições presidenciais, como decidir se envia o diploma para o Tribunal Constitucional (TC). Neste debate procurou apenas garantir que "a promulgar, vetar ou a pedir fiscalização preventiva" de uma lei "nunca" se sente "pressionado".
Já João Ferreira deixou claro que pessoalmente não é a favor da existência de um referendo sobre a eutanásia, "mas como Presidente da República respeitaria a vontade do Parlamento".
João Ferreira tentou colar Marcelo à direita, mas o recandidato a Belém foi consistente na defesa do seu papel "estabilizador" — ideia que aliás tem reiterado noutros debates. Depois, foi hábil a virar o argumento contra João Ferreira, colando-o ao PCP, depois de este muito repetir a frase "valorizar o trabalho e os trabalhadores".
Mesmo quando tentou fazer do Serviço Nacional de Saúde e da Lei de Bases da Saúde um tema central deste debate, João Ferreira não foi capaz de explorar o que o separa de Marcelo nesta matéria, dando espaço ao atual Presidente para reafirmar a "centralidade" do SNS.
Foi talvez o debate mais equilibrado que Marcelo teve até agora — o atual presidente já enfrentou Marisa Matias e Tiago Mayan — mas o desempenho do candidato comunista não chegou para deixar o recandidato a Belém (que lidera as sondagens) fora de pé.
As eleições presidenciais têm lugar no próximo dia 24 de janeiro. Marcelo Rebelo de Sousa, Ana Gomes, Marisa Matias, Tiago Mayan, João Ferreira, André Ventura e Vitorino Silva estão na corrida a Belém.
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