
O que é isto de ser português. E qual a melhor definição que podemos encontrar quando falamos da Alma portuguesa.
As perguntas e as dúvidas serviram de mote para juntar Miguel Esteves Cardoso, escritor, Luísa Sobral, cantora e Rui Maria Pêgo, ator e apresentador.
As três figuras da cultura portuguesa subiram a um palco improvisado na entrada principal do Sagres Campo Pequeno para verbalizar sobre esta forma única de ser um povo, numa conversa em ziguezague feita à boleia da nova campanha da marca portuguesa de cervejas, num mês marcado, por coincidência, pelos Santos Populares e celebração do 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
A conversa desenvolveu-se ao som de um prólogo. Todo e qualquer português nasce com alguns clichês na ponta da língua geneticamente insatisfeita.
Há um Fado enraizado e gumes de tristeza cultivados à nascença.
Temos Saudade, palavra sem tradução.
A nossa língua de trapos fala com o mundo inteiro mesmo que não o percebamos, somos um bom garfo e a consideração de quem vem de fora é sempre melhor e maior.
A inveja viaja nas nossas veias.
Vivemos do desenrascanço. Em permanência.
A pontualidade tem sempre um bons 15 minutos de tolerância, fazemos tudo à última e até ao último minuto e somos obreiros do mãos à obra na Expo98 e Euro2004.
Plasmamos a importação de toda e qualquer tecnologia e levamos por esse globo fora, orgulhosamente, as nossas invenções em forma de pastel de nata e vinho do Porto.
“Gostamos muito de estar sempre a questionar a nossa identidade”
O ser tuga é algo especial e diferente, e, isso mesmo, foi assinalado pelas três conhecidas figuras nacionais numa conversa moderada por Ana Markl e que contou na assistência com outros nomes da cultura lusa, como Carlão, Maria Morango, Joana Schenker, Tiago Teotónio Pereira, Inês Aires Pereira e Matay.
“Por acaso já trabalho nisto, desde que fiz a minha tese de doutoramento sobre o que é isto de ser português”, desbloqueou, para início de conversa, Miguel Esteves Cardoso, escritor e jornalista autor, entre outros, do livro “Explicações de Português”.
“Ser português?, lança a questão. “A pergunta faz sentido, não achamos estranho fazer essa pergunta. Os espanhóis e os ingleses jamais perguntariam o que é isto de ser ... Mas, nós, não só não temos vergonha, como gostamos de falar disso mesmo”, confessou MEC ao SAPO24 à margem da mesa redonda onde se sentou ao lado de Luísa Sobral e Rui Maria Pêgo.
“Os portugueses somos os dois, e mais os outros todos, uns que gostam de uma coisa, outros que gostam de outra. Mas nós gostamos muito de estar sempre a questionar a nossa identidade”, disparou o cronista que se apresentou de uma forma descontraída, de calções, um polo e sandálias de estilo Birkenstock.
“O que nos dá precisamente a identidade, é estarmos sempre a falar dela. Quando se fala de uma coisa, quando uma coisa faz sentido, é porque existe”, constata.
“A Alma portuguesa é uma coisa qualquer que não se partilha, mas que faz com que nos aceitemos uns aos outros”, realça Miguel Esteves Cardoso. “Sobretudo, se estou no estrangeiro, quando está ali um português, está bonito, e nós... vamos lá (ter com ele), nós é que somos beneficiários”, sublinhou.
Ajeitar os óculos que parecem escorregar do nariz é tique de Esteves Cardoso que encontra na justificação geográfica, e quiçá religiosa, a distinção do povo lusitano dos demais. Para além das raízes católico-cristã, é “muito mais a raiz latina” e, em particular, “o (oceano) atlântico” que molda a identidade nacional, identidade que Miguel Esteves Cardoso resume numa palavra: “doçura”, adicionou.
“Capazes de inventar soluções do chão, a partir do chão”
Rui Maria Pêgo, ator, apresentador e homem da rádio, socorre-se igualmente das interferências da geografia na construção do molde de onde saiu a nossa alma.
“Ser português é ter a capacidade, ou melhor, ter alma portuguesa presente significa que somos capazes de dar a volta às circunstâncias. Sobretudo, nascer num país com tantas contradições e emparedado pelo mar e por Espanha”, analisou.
“Somos sempre forçados...são contradições, porque podiam ser outras. Acho que o território nos fez de uma certa forma, mas somos capazes de dar sempre a volta”, analisou.
Pêgo não foge a frases que parecem feitas e acrescenta nova roupagem.
“Desenrascamo-nos, é uma coisa um bocadinho de clichê, mas é verdade. Acho que somos capazes de inventar soluções do chão, a partir do chão. Vivi isso, quando vivi fora, tive a mesma sensação”, comentou o ator que esteve no Bristol Old Vic Theatre School, em Inglaterra, entre 2021 e 2022.
“Sentimos de uma maneira diferente. Temos uma alma poética, acredito nisso. Acho que temos uma leitura do mundo que, por vezes é mais triste ou mais melancólica, mas que nos ajuda a reforçar alguma sensação. Porque, a esperança é uma doce esperança. Somos indomitáveis, de alguma forma”, catalogou.
Continuou, em jeito de declamação. “A alma portuguesa somos nós. Acho que é a vontade de rasgar aquilo que são as nossas prisões. Sobretudo, depois de um país que viveu tantos anos de fascismo, ainda está no sangue e na pele, aquilo que não conseguiram quebrar totalmente foi o espírito das pessoas. E isso continua a existir. Esse espírito, que atravessa as eras, é constante”, comentou.
Por mais que, às vezes, nos queixemos um bocado, somos capazes de dar a volta das nossas circunstâncias”, rematou Rui Maria Pêgo.
“Somos quase como uma receita”
Poderia e deveria ser a primeira a falar em bom português, mas ficou para o fim. Luísa Sobral conversou também com o SAPO24.
Ouviu-se Jorge Palma como pano de fundo. “O Jorge Palma é alma portuguesa”, disparou a cantora-compositora e escritora.
A descoberta da identidade nacional para Luísa Sobral começou a cada quilómetro calcorreado para lá das fronteiras nacionais.
“No fundo, sou portuguesa. Nasci aqui e, obviamente, uma parte minha soa a português, sem sequer me aperceber disso”, admitiu.
“Só comecei a perceber quando viajava e tocava, cantava canções em inglês e outras em português”, recordou. “Lembro-me das pessoas me dizerem que quando cantava em português sentiam muito mais, sentiam que eu sentia mais aquilo que estava a dizer”, exclamou.
“Há algo que nos liga ao país onde nascemos que nem sequer dá bem para explicar, não é?”, interrogou. “Está em nós e não consigo ouvir essa portugalidade, mas também já não faço o exercício contrário de tentar soar a outro país”, informou.
“No fundo, sou uma amálgama de várias coisas, mas acho que se acaba sempre por ter esse lado português que não consigo explicar e também não forço”, anotou.
O Fado já não é a única definição da alma lusa, avisou Luísa Sobral. Por outro lado, a língua portuguesa, o sotaque português, é algo que serve de dínamo de distinção.
“Acabo por representar Portugal sem levar o Fado, é algo que está a acontecer cada vez mais”, verificou, reconhecendo, ao mesmo tempo, que “há poucos artistas que vão lá para fora cantar em português”, verificou.
Para Luísa Sobral, “se cantarmos em português, com o nosso sotaque, já é uma grande parte da nossa cultura, uma grande herança”, avançou.
Volta a colocar a questão do que é isto de ser português. “Somos quase como uma receita. Às vezes há o sabor, mas ninguém sabe o que está a dar”, anotou.
Admite dificuldade para responder a imediatismos de forma improvisada. “Não sei bem o que seria um refrão para definir a Alma portuguesa, exatamente porque é uma coisa que não se define, é algo que está dentro de nós”, diz a compositora.
“É uma tristeza e uma euforia ao mesmo tempo. Porque acho que não somos um povo triste, mas somos um povo melancólico”, apurou, avançando na explicação.
“Como temos muita história, acabamos sempre por ter esta coisa das saudades do passado, como se antes é que fosse bom”, comparou. “Mas ao mesmo tempo, temos uma grande alegria em viver, como se vê, com os Santos Populares”.
“É neste confronto entre a tristeza, a melancolia e a alegria que se faz a Alma portuguesa”, finalizou Luís Sobral antes de se juntar à conversa com Miguel Esteves Cardoso e Rui Maria Pêgo.
Três testemunhos em palco que viriam a terminar com uma frase vinda da plateia.
“Só neste país”. É uma frase que esgota o verbo de quem o pronuncia. “E só neste país é que se diz só neste país” reforçou Carlão, cantor.
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