Representando o busto de "Ecce Homo" coroado de espinhos, rosto chagado e ensanguentado, peito aberto pela lança e um ceptro na mão, a imagem do Santo Cristo, em madeira, foi oferecida no século XVI pelo Papa Paulo III às Irmãs Clarissas de São Miguel.
Trazido para o Convento da Esperança, ali ficou esquecido na Ermida de Nossa Senhora da Paz, até que, por mãos da Madre Teresa d'Anunciada, começou a ganhar o protagonismo que chegou aos dias de hoje.
Segundo os dados históricos disponíveis, a primeira procissão em honra do Santo Cristo dos Milagres teve lugar em Ponta Delgada, a 11 de abril de 1700. Diz a descrição apresentada no site do Santuário que "foi sempre desejo da Madre Teresa, que o Senhor fosse louvado e adorado, não só no convento, mas também fora dele".
Por isso, "algum tempo antes da realização desta procissão", a Madre teve "o pressentimento que o Senhor Santo Cristo iria necessitar de um andor, recorrendo aos dotes artísticos da Madre Jerónima do Sacramento, religiosa do Convento de Santo André, da cidade de Ponta Delgada, solicitando-lhe que se encarregasse da execução de um andor com dossel".
Contudo, um provérbio viria a aplicar-se à data em questão: abril, águas mil. No domingo da procissão, "o céu apresentava-se coberto de grossas e espessas nuvens, agreste e chuvoso por demais" — e "era impensável expor a imagem às intempéries".
Mas a Madre Teresa d'Anunciada "pensava de maneira diferente" e tinha esperança num milagre, "afirmando que, ao sair a procissão, o céu se tornaria sereno e claro e que em todo o percurso não cairia uma só gota de água". Reza a história que, quando chegou a hora da saída, "formou-se o cortejo e as nuvens começaram a dissipar-se de modo que o tempo ficou claro e calmo". Depois do percurso, recolhido o Santo Cristo e colocado no altar da capela, "começou a chover abundantemente".
A partir daqui, iniciou-se a tradição e a imagem só deixa o convento uma vez por ano, no quinto domingo após a Páscoa — neste momento, as festas do Santo Cristo são consideradas a segunda maior manifestação religiosa do país depois das peregrinações a Fátima.
As celebrações trazem, anualmente, milhares de peregrinos de todo o mundo até à ilha de São Miguel, oriundos das nove ilhas dos Açores, do continente, assim como dos Estados Unidos da América e do Canadá.
Suspensas há dois anos devido à pandemia, as festas do Santo Cristo voltam a realizar-se este ano em Ponta Delgada, até 26 de maio — mas não sem antes se terem acertado alguns pormenores das festividades.
Um longo caminho até à preparação das festas de 2022
Anunciadas a 11 de março, nem tudo estava nessa altura previsto como afinal se está a verificar. Inicialmente, falou-se num "novo formato": o reitor do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, Cónego Adriano Borges, explicou não iam existir barracas de comes e bebes, nem o tradicional bazar da Irmandade ou concertos de música no Campo de São Francisco.
Além disso, não estava prevista a habitual iluminação no local, estando apenas destinada à fachada da igreja.
A ideia, salientou na altura, seria "criar uma nova dinâmica de oração" naquela praça. Resumindo: não haveria "nada de profano no Campo de São Francisco".
Contudo, a Câmara Municipal de Ponta Delgada revelou, a 29 de abril, que afinal não seria bem assim: as festas do Santo Cristo voltam a ter iluminação no Campo de São Francisco, três restaurantes na avenida Dinis Moreira da Mota e animação musical, assegurada pelo Coral de São José, pelo Conservatório Regional de Ponta Delgada e por bandas filarmónicas.
Em comunicado, o executivo camarário destacou o "espírito de diálogo profícuo e proveitoso" com o reitor do Santuário e com o provedor da Irmandade das Festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
"Conseguimos chegar a entendimento para que as festas fossem ao encontro daquilo que os fiéis entendem que esta festividade religiosa deve ser", afirmou o presidente da autarquia, o social-democrata Pedro Nascimento Cabral.
Afinados os pormenores, chegou a altura de financiar as festas. Nesse sentido, a Câmara de Ponta Delgada anunciou ter assinado, no início de maio, um protocolo com a Irmandade do Santo Cristo que prevê a atribuição de 45 mil euros para a organização do "tradicional programa das festividades" este ano.
Ao SAPO24, o reitor do Santuário explicou apenas que, quando foram anunciadas as festas, "a situação da pandemia era uma, a situação atual é outra". Assim, "houve vontade de fazer mais alguma coisa [por parte da Câmara Municipal], mas no Campo de São Francisco não haverá a parte profana de comes e bebes, que estará mais longe", recusando-se a explicar o processo de discussão das festas.
Olhando para o passado, o reitor garante que a mudança tem sido gradual. "Já houve uma altura em que se realizava uma boa parte das coisas dentro do Campo. Aos poucos fomos tentando afastar um bocadinho [para mostrar] aquilo que é o Santuário. No nosso entender, num Santuário podemos podemos fazer festa, podemos estar juntos, mas não necessariamente estarmos todos em cima do acontecimento, vamos dizer assim. Ficou resolvido o que era preciso revolver e agora vamos para a frente", garantiu o Cónego Adriano Borges.
Quanto à tradicional iluminação, esta vai ter "algumas diferenças dos anos anteriores, mas não diferenças significativas". No fundo, "vai haver [festa] da mesma forma, mas em moldes diferentes".
Questionada pelo SAPO24 quanto à reorganização das festas, a autarquia não respondeu em tempo útil.
Segundo o reitor, o objetivo principal destas mudanças é que exista "um tempo de maior oração", num espaço onde há "maior serenidade, tranquilidade e silêncio para a oração".
Neste sentido, uma das novidades introduzidas é o facto de existirem duas vigílias com o Senhor Santo Cristo. "Em vez de ser feita apenas uma vigília no sábado, em que as pessoas ficavam toda a noite na igreja a rezar, este ano fazemos duas, de sexta para sábado e de sábado para domingo. E isso vai dar oportunidade às pessoas de não se concentrarem todas no mesmo dia e também permite que haja maior proteção entre nós, ao dividir as pessoas por esses dias", aponta.
A azáfama dos preparativos e as expectativas, ao fim de dois anos
Depois de ultrapassadas as dúvidas quanto ao formato, começou a azáfama. Desde o início do mês, eletricistas e carpinteiros, profissionais ou amadores, desdobram-se na preparação das festas e iluminações do Santo Cristo, no Santuário da Esperança e zonas circundantes.
Ao longo de uma década, Pedro Silva sempre "tirou férias" para ajudar na montagem da iluminação, um trabalho "suspenso" devido à covid-19.
"A pandemia não nos deixou fazer nada. Estivemos sem as Festas do Santo Cristo. Era habitual vir ajudar na montagem das luzes. Agora voltei. É uma alegria e isto é também importante a nível financeiro", contou à agência Lusa.
Nas imediações do Santuário da Esperança, num estabelecimento comercial que se dedica à venda de lembranças dos Açores, Filipa Costa, funcionária, recebe artigos novos. Sem mãos a medir para atender um grupo de turistas, assegura que há "mais clientes". Também Rui Miguel, ao balcão da loja, lembra os últimos tempos e diz que "foram muitas as quebras".
Agora, a esperança é que regresse tudo aquilo que parou por dois anos, devido à pandemia. As tradições e as pessoas — que os milagres, esses, há quem diga que nunca hão de acabar por ali.
O reitor do Santuário, que assiste de perto à correria do evento, diz ao SAPO24 que todos esperam as festas "com grande ansiedade e expectativa".
"Não é só o facto de ter ficado tudo parado dois anos, é o facto de também as outras paróquias não terem tido festa em lado nenhum. Portanto, sendo os primeiros, há aqui uma expectativa de como é que vai ser", afirma.
Mas todos têm noção de que são necessárias "algumas alterações pequenas", relacionadas "com o tempo que estamos a viver", já que "a pandemia ainda não acabou assim de um dia para o outro" e "há sempre pessoas receosas".
Mesmo assim, espera-se uma "festa muito bonita", com "uma enchente de pessoas" — e, por isso, foi aumentado "o período de tempo em que as pessoas podem estar mais próximas da imagem do Senhor Santo Cristo", o grande protagonista destes dias.
Com noção de que haja muita gente em Ponta Delgada, "cada um terá de ter responsabilidade suficiente para saber se deve ou não usar máscara ou se é mais conveniente até optar por não vir à festa", lembra o Cónego Adriano Borges. "O que aconselhamos é que aqueles que têm maiores fragilidades neste momento possam vir noutra altura, porque o Senhor Santo Cristo está aqui todo o ano".
Para aqueles que entenderem ir, a certeza é só uma: "vamos fazer uma grande festa, vamos estar todos juntos com o Senhor Santo Cristo e certamente já tínhamos saudades disso".
Para os que lá vão, os motivos para peregrinar são vários, mas "essencialmente é quase tudo relacionado com saúde", diz o reitor do Santuário.
"Não é só neste tempo que estamos a viver de pandemia, mas as pessoas que se dirigem aqui pedem saúde para si e para os seus familiares. Depois ficam gratos quanto alguma coisa de bom lhes acontece na vida — e também é um espaço não só de pedidos, mas também de muito agradecimento", remata.
Comentários