Podia ser apenas mais um típico final de tarde no Cais do Sodré. Os bares começavam a encher, gente jovem circulava nas ruas. Com o dia a esmorecer, as luzes da cidade começavam a acender-se, prontas para a animação da noite. Mas na rua de S. Paulo um elemento destacava-se: quem é que já viu uma cruz com quase quatro metros de altura à porta de um bar?
O Patriarcado de Lisboa decidiu juntar os jovens no Tiles Bar e levou uma réplica da cruz da Jornada Mundial da Juventude para assinalar a entrada, e que provavelmente vai andar a circular pela diocese. O objetivo? Apresentar o programa para o pós-JMJ, mas não só.
"Este momento surgiu de um pedido concreto do senhor Patriarca, D. Rui Valério, que gostava que o lançamento do ano pastoral fosse num sítio em que os jovens estão. Em conversa com ele tentámos perceber que espaço podia ser e chegámos à conclusão do bar", começa por explicar João Clemente, responsável pela Pastoral Juvenil do Patriarcado de Lisboa, ao SAPO24.
E foram muitos os que responderam à chamada. "Tivemos de fechar as inscrições, mas temos 130 pessoas confirmadas. Só que isto não é um evento fechado, pelo que acabam por vir muitos jovens não inscritos. O desafio foi lançado para jovens e para pessoas que os acompanham, sejam animadores de grupos de jovens, sejam padres", aponta.
À porta do Tiles Bar, por volta das 19h00, vivia-se já um momento de descontração. Alguns jovens mantinham-se à porta, na esperança de perceber exatamente o que ia acontecer dali a instantes, outros optavam por entrar no pequeno bar e aproveitar o tempo para conversar. Como João Clemente referiu, o objetivo era viver "um momento de alegria, de convívio, muito informal, de perceber como vai ser o horizonte deste ano".
E se o convite partiu de D. Rui Valério, é claro que o Patriarca não podia faltar à festa. E esteve, como seria esperado, sempre rodeado da juventude da Igreja de Lisboa. Numa meia-lua, uma jovem falava das suas experiências e percepções. De repente, lança uma frase que desperta atenções: "há quem diga que os jovens são incultos". A resposta do Patriarca é imediata, em tom admirado e de quem regista a informação para não mais esquecer: "Quem é que diz uma coisa dessas?". No fim do encontro, aos jornalistas, havia de dizer que "a eles pertence uma acutilância, uma sabedoria, que verdadeiramente é o que atualmente constitui uma esperança para toda a humanidade".
Mais umas palavras trocadas e e ouve-se D. Rui Valério a falar de ciclo-peregrinações no Alentejo. Uma experiência de bicicleta: "giro, mas exigente do ponto de vista físico". À volta, os jovens reúnem-se como se o conhecessem desde sempre e deixam-se levar pelo entusiasmo, a contar peripécias dos seus grupos e paróquias.
O Patriarca de Lisboa chegou ao Cais do Sodré com este objetivo de escuta. Por isso, explica ao SAPO24 que primeiro pretende ouvir, depois então logo falará — "faz parte da estratégia pastoral escutar", nota. Mesmo assim, não deixa de dizer que está "muito entusiasmado".
"Estamos numa JMJ Lisboa 2023 em ponto pequeno. A disponibilidade que houve para acolher os jovens neste espaço é o retrato daquilo que foi a disponibilidade de Lisboa para acolher os jovens que vieram de todos os cantos do mundo. Isto aqui é um laboratório da JMJ", reflete.
A JMJ acabou. E agora?
Terminada a Jornada Mundial da Juventude, a diocese de Lisboa sentiu a necessidade de dar um propósito aos jovens. E para isso é preciso ouvi-los e perceber as suas necessidades.
"A grande dificuldade é que na Jornada havia um desafio completo, os jovens estavam envolvidos na construção de uma coisa concreta. Neste momento, a ideia é fazermos experiências da JMJ no dia a dia, no quotidiano de cada jovem. Por isso, aquilo que queremos é algo que vá ao encontro dos jovens, dos sonhos que eles têm, dos medos, do que gostavam de viver na Igreja. Este ano vai ser muito marcado por momentos de escuta", justifica João Clemente.
Por esse motivo, todos os jovens presentes tinham um envelope na mão. "Mais do que termos uma teoria do que os jovens querem ou precisam, o que vamos fazer é pedir que escrevam uma carta ao senhor Patriarca a dizer o que esperam da Igreja. E é a partir do que eles vão dizer que nós vamos trabalhar. É uma carta que já tem o selo, já tem para quem vai ser enviada, e aquilo que os jovens vão fazer é escrever o seu nome e escrever ao D. Rui a resposta à pergunta 'Para onde quer Cristo que caminhe a sua Igreja de Lisboa?'".
De sorriso no rosto, um dos padres no bar, identificado pela camisa com o colarinho específico dos sacerdotes, o cabeção, aparece a cumprimentar jovens. Traz na mão um copo de cerveja que assinala o momento descontraído e leve.
"Antes de mais este é um momento de festa, para que os jovens da nossa diocese parem aqui para conviver. Ao mesmo tempo, dentro dessa festa, é um momento em que o nosso Patriarca quer estar com os jovens, quer mesmo vir ao encontro deles. Não num ambiente diferente do deles, mas exatamente num lugar onde costumam estar, no tipo de ambiente que costumam frequentar. De cerveja na mão também", diz a rir o padre Bernardo Trocado, responsável pela Pastoral das Vocações, ao SAPO24.
Por isso, é normal que a apresentação do programa aconteça assim. "Não é uma conferência, não é dentro de uma Igreja, não é um salão formal. É um bar, aqui na zona do Cais do Sodré. O D. Rui, como pastor, quer também vir ao encontro deles e marcar essa presença", afirma, reforçando de seguida que "o ambiente está bom", com música e até com pintura de um quadro em tempo real, que no fim trouxe memórias da Jornada.
Mas pelo meio da descontração há também a certeza de se estar a trabalhar um assunto sério. Depois da JMJ, a Igreja "tem de oferecer aos jovens algo para lá dos grandes eventos onde têm grandes experiências de fé, que se calhar até transformam a sua vida e convertem os seus corações", refere o padre Bernardo Trocado.
"A Igreja depois é chamada a dar-lhes um caminho. Não apenas uma multiplicação de eventos, mas um caminho que responda às suas sedes, às suas perguntas mais importantes, às suas inquietações, aos seus problemas reais. A Igreja quer estar aí próxima deles, também para ouvir que tipo de caminho é que eles querem. Claro que também com novos eventos, onde os jovens se possam congregar, mas é grande desejo do Patriarca poder oferecer mesmo um caminho que vá ao encontro das expectativas dos jovens da nossa diocese", remata.
Um programa que chama para a Igreja
Madalena Gamboa é uma das muitas jovens que se juntaram no Tiles Bar. "Vi num grupo da faculdade o anúncio e senti que é ótimo o Patriarcado de Lisboa querer anunciar a todos os jovens este programa de uma forma aberta, de uma forma acolhedora, e porque não? Tinha a noite livre e quis vir", começa por dizer ao SAPO24.
Quanto às propostas apresentadas — que incluem encontros de partilha sobre a JMJ, a Jornada Diocesana da Juventude, em Vila Franca de Xira, ou uma peregrinação diocesana a Fátima para agradecer a Jornada, entre outros —, a jovem frisa que é bom o programa não ser "muito cheio", o que permite "dar também oportunidade às paróquias e movimentos para terem as suas dinâmicas".
Contudo, evidencia que a existência de "eventos maiores também é positivo para juntar os jovens todos". Madalena aponta ainda o que considera ser o atual problema: "o desafio é trazer os jovens realmente para a Igreja. Durante a jornada houve muitos jovens que se aproximaram da Igreja, mas não vieram para a Igreja. Vieram só para a Jornada".
Assim, "mais do que manter é trazer. Trazer ainda mais e dar-lhes uma razão para ficar, mostrar-lhes que a fé não é só aquela fé contemplativa em que estamos a olhar para uma cruz em silêncio. Também é essa fé, mas também é a fé da festa, de conversar com as pessoas num bar sobre aquilo que foi a nossa experiência, sobre as nossas experiências de fé. Também é uma fé de festivais, de música. Não precisa de ser o que muitos jovens pensam, que é assim mais... chato", acrescenta a rir.
Agora, o caminho faz-se da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa para o Jubileu em Roma, na primeira semana de agosto de 2025. Para essa peregrinação, a Juventude do Patriarcado indicou 10 palavras-chave para os jovens — e quem os acompanha — levarem na mochila, entre elas a "surpresa", o "tempo" que permite fazer tudo sem pressa, "a coragem" no caso de ser preciso alterar rotas e metas, a "escuta" e o que dela deriva, mas também questões mais práticas, como um "espaço" que sirva de local de reunião para os grupos — o que vai acontecer na cidade de Lisboa, que terá um espaço para os jovens se juntarem que será anunciado nos próximos meses.
Ainda de olhos na JMJ, os presentes no Tiles Bar tiveram a oportunidade de escutar dois testemunhos de jovens — Adriana Moleiro e Duarte Hortinha — que participaram no grande encontro com o Papa em Lisboa. As memórias fazem-se de momentos de convívio, da descoberta de uma Igreja viva e jovem e também de alegria. E das garantias de que é preciso "uma Igreja fora da caixa" e "viver para os outros".
Como prometido no início, D. Rui Valério escutou o que foi dito e tomou notas num pequeno bloco. Ninguém as viu, mas certamente levaram às palavras finais que dirigiu aos jornalistas, garantindo que esta "é a hora dos jovens".
"Acho que é obrigatório dizer – é um dever dizer – que é hora dos jovens, porque eles revelaram nos últimos meses aqui em Portugal e para o mundo a sua enorme capacidade para superar, para resolver, para encontrar soluções, onde, por vezes as gerações mais antigas já não são capazes de o fazer", salientou o antigo bispo das Forças Armadas.
O bispo adiantou ainda que estar no Cais do Sodré, rodeado por dezenas de jovens, foi estar num local que "se situa no coração das pessoas". "É necessário estar com as pessoas a partilhar os seus desafios, a partilhar as suas vicissitudes", observou, adicionando que a Igreja quer "acompanhar as linguagens dos jovens".
Aos jornalistas, o religioso reconheceu também haver uma carência na relação entre a Igreja e as pessoas. "Há um défice que vai acontecendo ao longo dos tempos, que não é culpa de ninguém, é o processo natural. O que acontece é que, por vezes, as linguagens vão-se modificando e alterando", realçou, dando como exemplo o processo do crescimento humano desde criança até à fase adulta, dizendo que é preciso "acertar no ritmo da mesma linguagem".
De acordo com o novo Patriarca de Lisboa, que tomou posso no início de setembro, os jovens são o "futuro na medida em que começam a ser o presente" — mas é preciso "ouvi-los, escutá-los e convocá-los".
"A Igreja só terá e só atrairá jovens se estes não vierem apenas para assistir. Os jovens requerem protagonismo e com legitimidade e com razão, porque, de facto, eles estão munidos do manancial que lhes dá legitimidade para não se contentarem em vir para escutar, em vir para ver, em vir porque sim (…), eles não querem ficar atrás", rematou.
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