Com 80 anos de carreira, Eunice Muñoz, porém, é o teatro.
“Sou uma pessoa como outra qualquer”, e gostava de ser lembrada assim, como uma “mulher simples”, embora não pudesse "deixar de ser atriz", disse à agência Lusa, no passado mês de setembro.
Na altura, preparava o regresso aos palcos para mais um ciclo de representações da sua derradeira peça, “A margem do tempo”, do alemão Franz Xaver Kroetz, que interpretou com a neta Lídia Muñoz, em diferentes palcos do país.
Dez anos antes, quando assinalou os 70 anos sobre a sua estreia, ocorrida no palco do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, as suas declarações tinham já a essência dessa vontade, de ser lembrada como a pessoa comum que, no entanto, procurou “fazer sempre melhor”, pois “não podia ser outra coisa, só podia ser atriz”.
Eunice Muñoz só se afastou dos palcos dos 23 aos 27 anos, depois do nascimento da primeira filha, quando já somava uma década de trabalho e dezenas de personagens por si interpretadas, no final da carreira, em 2012, e entre 1972 e 1976, altura em que a televisão e a gravação de poetas portugueses ocuparam os seus dias.
De uma vida inteira no teatro, o seu "grande amor", a única queixa de Eunice Muñoz prendia-se com a ditadura do Estado Novo e as peças que gostava de ter feito e que lhe "foram roubadas" pela censura.
“Eu e toda a minha geração apanhámos efetivamente esse corte medonho, como quem tira um bocado duma perna", disse Eunice Muñoz à agência Lusa em novembro de 2011, referindo-se à ditadura, que marcou 33 anos do seu percurso profissional.
"Esse repertório proibido, fez muita falta", prosseguiu então Eunice Muñoz, exemplificando com “Mãe Coragem”, de Bertolt Brecht, que só interpretou em 1986, no Teatro Aberto, dirigida por João Lourenço, mas também com a "Cantora Careca" de Ionesco, que não consta do seu percurso.
"E hoje olho para estes jovens com uma grande satisfação, porque, desde a Revolução, não sabem o que isso é, e ainda bem”, assegurou.
Nascida a 30 de julho de 1928, na Amareleja, Moura, no distrito de Beja, numa rua que tem o seu nome, Eunice Muñoz descende de uma família de três gerações de atores, dos espanhóis Muñoz, no teatro, e dos sicilianos Cardinalli, no circo.
Aos cinco anos, já realizava números musicais, na companhia teatral ambulante da família, a Troupe Carmo. Tímida, chegava a inventar dores de barriga para evitar as caras que olhavam para ela em palco, como recordou em diferentes entrevistas, recordando a sua "infância nómada".
Fixou-se em Lisboa em 1934. Poucos anos depois, "sem saber como", repararam nela e estreou-se em “Vendaval”, de Virgínia Vitorino, no Teatro Nacional D. Maria II, na então companhia Rey Colaço-Robles Monteiro. Foi em 28 de novembro de 1941.
Fazia de Isabel e a seu lado estavam atores consagrados como Palmira Bastos, Amélia Rey Colaço, Maria Lalande, Lucília Simões, Raul de Carvalho, Alves da Cunha, João Villaret.
Tinha 13 anos e viria a entrar pouco depois para a histórica companhia, ainda adolescente, onde teve como mestra Amélia Rey Colaço. “Senhora D. Amélia Rey Colaço”, como dizia.
“Eu era uma miúda e ela foi sempre uma pessoa maravilhosa para mim. Tinha por mim uma imensa ternura e eu, por ela, um respeito enorme e veneração”.
Aos 14 anos, pôde entrar para o Conservatório, de onde saiu aos 17, com o curso de Teatro e uma média final de 18 valores.
Mas atuou, atuou sempre, como em 1943, na “Riquezas da sua avó”, ao lado de Palmira Bastos.
“As coisas na minha vida foram sempre acontecendo", disse à Lusa, em 2011. "Nunca mexi muito, nunca fiz grandes esforços para representar peças de que gostaria”.
"Sou muito pouco ambiciosa (...) Isso não me orgulha nada. Se fosse mais ambiciosa, provavelmente não teria ficado em Portugal, teria partido quando acabei o Conservatório. Nessa altura podia ter escolhido o estrangeiro para fazer uma carreira, mas não… Sou muita agarrada”.
Apesar de confessar que, no começo, nem sempre representou as peças de que gostaria – porque era muito nova e “não tinha poder para dizer que sim ou que não” -, admitiu que a vida profissional sempre “lhe correu bem”.
Entre 1941 e 1944, interpretou 21 peças no D. Maria com a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro. Fez a primeira opereta, “O João Ratão”, em 1943, no Teatro Avenida, ao lado de Estêvão Amarante, ator a que daria corpo, quase 50 anos mais tarde, em “Passa por mim no Rossio”, de Filipe la Féria (1991). Foi ainda dirigida por Maria Matos, em “A portuguesa”, de Carlos Vale, em 1945.
A grande popularidade chegou nesse ano quando, no Teatro Variedades, fez parte do elenco de “Chuva de Filhos”, de Margaret Mayo, ao lado de Vasco Santana e de Mirita Casimiro.
A estreia no cinema aconteceu em 1946, em “Camões”, de Leitão de Barros, que lhe valeu o prémio de melhor atriz. Na altura, entrou também em "Um Homem do Ribatejo", de Henrique de Campos, que também a dirigiria em “Ribatejo” (1950) e “Cantiga da rua” (1955).
“Os vizinhos do rés-do-chão” (1947), de Alejandro Perla, "A morgadinha dos canaviais" (1949), de Caetano Bonucci e Amadeu Ferrari, “O trigo e o joio” (1965), de Manuel Guimarães, “Manhã submersa” (1980), de Lauro António, “Lisboa cultural“ (1983), de Manoel de Oliveira, “Repórter X” (1986), “Matar saudades” (1987), de Fernando Lopes, e “Tempos difíceis” (1988), de João Botelho, constam da carreira no cinema. O último filme em que entrou, “Olga Drummond”, de Diogo Infante, data de 2019.
Na sua carreira, porém, é o teatro que prevalece.
No final dos anos de 1940, entrou em peças como “Outono em flor”, de Júlio Dantas (1948), e “Espada de Fogo”, de Carlos Selvagem (1949).
Em 1950 e 1951, protagonizou as comédias “Ninotchka”, de Melchior Lengyel, ao lado de Igrejas Caeiro, e “A loja da esquina”, de Edward Percy, dois textos celebrizados no cinema por Ernst Lubitsch.
Eunice Muñoz fez então parte da Companhia de Teatro Gynásio, em Lisboa, dirigida por António Pedro, e passou ainda pelo Teatro da Trindade, antes de se retirar de cena, entre os 23 e os 27 anos.
Queria dedicar-se à família. Trabalhou numa loja de cortiça, no Príncipe Real, onde o público ia vê-la, por não a encontrarem em palco. Agastada com a situação, fez um curso de secretariado. Trabalhou então como secretária de direção numa loja de materiais elétricos no Barreiro.
Regressou aos palcos em 1955, para ser “Joana d'Arc”, de Jean Anouilh, no Teatro Avenida, em Lisboa, a convite de Vasco Morgado.
Em 1957, interpretou “A desaparecida”, de Pirandello, e, pouco depois, com Maria Lalande, Isabel de Castro, Ruy de Carvalho e Curado Ribeiro, entrou para o Teatro Nacional Popular, sob a direção de Francisco Ribeiro (Ribeirinho).
“Noite de Reis”, de Shakespeare, “Um serão nas laranjeiras”, de Júlio Dantas, “Pássaros de Asas Cortadas”, de Luiz Francisco Rebello, foram algumas das peças em que entrou, nos anos seguintes.
Francisco Ribeiro (Ribeirinho), pioneiro na divulgação do drama contemporâneo, que fez a estreia portuguesa de Samuel Beckett, e Carlos Avilez, que impulsionou o Teatro Experimental de Cascais, destacam-se no trabalho da atriz, na década de 1960.
Com Avilez foi “Fedra”, de Jean Racine (1967). Em Cascais, trabalhou também com o encenador argentino Victor Garcia, com quem fez "As Criadas” (1972), de Jean Genet.
Nos anos de 1960, fez também comédia na Companhia de Teatro Alegre, no Parque Mayer, com António Silva e Henrique Santana.
Monumental e Variedades foram outros teatros da capital onde atuou, nomeadamente ao lado de Virgílio Teixeira e Mimi Muñoz, sua mãe. Em 1963, partilhou com Laura Alves o prémio de melhor atriz, pelo seu papel em "O milagre de Ana Sullivan", de William Gibson (1963).
Em 1965, na Companhia Portuguesa de Comediantes, fundada por Raul Solnado no recém-inaugurado Teatro Villaret, entrou em "Verão e fumo", de Tennessee Williams (1965), e "As Raposas", de Lillian Hellman (1966), peças que lhe valeram prémios de Imprensa de Melhor Atriz, e de Popularidade, da então revista Rádio e Televisão.
Em 1970, estreou-se na encenação, na Companhia Somos Dois, que criara, com “A Voz Humana”, de Jean Cocteau, uma das peças que levou em digressão por Angola e Moçambique, num repertório que se estendeu a "Dois num baloiço", de William Gibson, e "Os dactilógrafos", de Murray Schisgal, com José de Castro.
Cerca de um ano mais tarde, no regresso a Lisboa, a poucas horas da estreia de “A mãe”, de Stanislaw Wiktiewicz, sob a direção de Luiz Francisco Rebello, no Teatro S. Luiz, a censura proibiu o espetáculo.
De 1972 a 1976, voltou a afastar-se dos palcos. Fez pequenos trabalhos de televisão e gravou em disco autores como Florbela Espanca e Soror Mariana.
No regresso ao teatro, fez "Equus", de Peter Shaffer (1976), com a empresa Vasco Morgado, e, no Teatro D. Maria, “Felizmente há luar”, de Luís de Sttau Monteiro (1978), “A casa de Bernarda Alba”, de Lorca (1983), “As memórias de Sarah Bernhardt” (1984), “O gebo e a sombra”, de Raul Brandão, “Romance de lobos”, de Valle-Inclán (1987), “As fúrias", de Agustina Bessa-Luís (1994), “As troianas”, de Sartre (1996).
“O parque” (1985), de Botho Strauss, numa tradução de Alberto Pimenta, com encenação de Stephan Stroux, no Teatro da Cornucópia, “Mãe coragem e os seus filhos” (1986), encenada por João Lourenço, no Teatro Aberto – que viria a ser posto em filme, no ano seguinte, pelo realizador Nuno Teixeira -, “Zerlina”, dirigida por João Perry, em 1988, no Teatro da Trindade, cinco anos mais tarde reposta no D. Maria II, são outras das peças que interpretou.
Na televisão, aceitou o desafio de Nicolau Breyner e participou nas séries cómicas "Nicolau no país das maravilhas" e "Nico d'Obra".
Em 1993, protagonizou “A Banqueira do Povo”, de Walter Avancini, seguindo-se outras telenovelas, entre as quais "Todo o Tempo do Mundo", "Porto dos Milagres", "Olhos de Água", "Sonhos Traídos", "Olhos nos Olhos", "Mar de Paixão".
“A Impostora”, “Coração malandro”, “Mistura fina”, “Dei-te quase tudo”, “Ilha dos amores” e ”Destinos cruzados” contam-se entre as várias telenovelas em que entrou, tendo também participado na versão televisiva de "Equador", de Miguel Sousa Tavares.
Entre os encenadores com quem trabalhou e que reconheceu como mestres, citou Francisco Ribeiro (Ribeirinho), Carlos Avilez, João Perry, João Lourenço, João Mota e Ricardo Pais, com quem fez "Madame", de Maria Velho da Costa.
“Cinemascope”, de Norton Azruk, pelo Teatro Plástico, e “A casa do lago” (2002), dirigida por Filipe la Féria, estão entre os trabalhos de palco de Eunice Muñoz, nos primeiros anos 2000, seguindo-se “Eunice, nome de atriz palco e vida", no âmbito do ciclo Grandes Actores do Teatro São Luiz.
“Miss Daisy”, de Alfred Uhry, encenada por Celso Cleto (2006), "A dúvida", de JP Shanley, por Ana Luísa Guimarães (2007), e o monólogo "O ano do pensamento mágico", de Joan Didion (2009), por Diogo Infante, estão entre os últimos trabalhos em palco.
A estes somam-se “O comboio da madrugada”, de Tennessee Williams, encenada por Carlos Avilez, e "Cerco a Leninegrado", de José Sanchis Sinisterra, por Celso Cleto, ambas em 2011, nos 70 anos de carreira.
Com a comédia “Cerco a Leninegrado”, que a atriz considerou especial por voltar a um género teatral de que dizia gostar e que fez poucas vezes, apresentou-se no início de 2012, no Círculo de Bellas Artes, de Madrid, a sua estreia em palco, na capital espanhola.
Em agosto de 2016, Filipe La Féria anunciou o seu nome para o elenco de "As árvores morrem de pé", mas a atriz não chegou a entrar em cena. A 17 de outubro, a família anunciava que se retirava do elenco, por motivos de saúde.
Em 1991, o historiador Vítor Pavão dos Santos, então diretor do Museu do Teatro, organizou a mostra "Eunice Muñoz: 50 anos da vida de uma actriz" e, 12 anos mais tarde, a homenagem "Eunice, palco e vida", no teatro de S. Luiz, em Lisboa.
A um vasto palmarés de prémios, como o de Carreira da Academia Portuguesa de Cinema, em 2015 (quando o D. Maria II promoveu “74 Eunices - Homenagem a Eunice Muñoz”, a um ano da celebração dos seus 75 anos de atividade), somam-se distinções oficiais de Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada (1981), grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (1991), Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (2011), Grã Cruz da Ordem do Mérito (2018) e a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada (2021). Em 1990, foi-lhe atribuída a Medalha de Mérito Cultural.
Afastada dos palcos desde 2012, regressou em abril do ano passado ao Auditório Eunice Muñoz, em Oeiras, para estrear "A margem do tempo”, com a neta, Lídia Muñoz, produção que levou a diferentes palcos do país, numa digressão que culminou no Teatro D. Maria II, em Lisboa, no passado dia 28 de novembro, o mesmo palco, onde exatamente 80 anos antes fizera a sua estreia.
Na altura, chegava às salas de cinema o documentário “Eunice, ou cartas a uma jovem atriz”, de Tiago Durão.
No seu percurso, no teatro, somam-se mais de 120 peças, em perto de três dezenas de companhias, segundo a base de dados do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que enumera mais de uma dezena de prémios ao longo da sua carreira. No cinema e na televisão, o nome de Eunice Muñoz está associado a mais de 80 produções de ficção, entre filmes, telenovelas e programas de comédia.
Nos 70 anos de palco, em entrevista à agência Lusa, confessou: “A minha luta é melhorar, melhorar, melhorar. A minha luta é essa mesmo. E nunca fico contente, fico sempre de pé atrás, porque, de uma maneira geral, não gosto de me ver”.
No entanto, "na repetição que é o teatro, mesmo quando pensava que ia ter mais uma representação, mais um dia, transformava esse dia numa entrega”, disse à Lusa, em 2021, pouco antes de cumprir os 80 anos de carreira. “E isso esteve sempre comigo, sempre, sempre”.
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