Seis anos depois da publicação da encíclica do Papa Francisco “sobre o cuidado da casa comum”, metade das dioceses portuguesas não incluem ainda os temas da Laudato Si’ no currículo de formação dos futuros padres na sua diocese nem nas catequeses, planos pastorais ou outros momentos formativos. E nenhuma das dioceses tem definidas metas ecológicas propostas pela encíclica do Papa Francisco.
Estas são duas das principais conclusões de um inquérito promovido pelo 7MARGENS e pela Família Cristã sobre o modo como a encíclica ecológica do Papa está a ser aplicada pela Igreja em Portugal. Entre as 17 dioceses que responderam, apenas três promoveram encontros sobre a encíclica com associações ambientalistas e três quartos dos 32 respondentes nunca fizeram nenhuma acção ecuménica no âmbito da Laudato Si’ (Louvado Sejas, em português).
O inquérito, que um responsável do Vaticano considera “pioneiro”, foi preparado a partir de uma selecção das ideias concretas ou sugestões inspiradoras que o Papa escreve na encíclica. Foi depois enviado às 21 dioceses do país (as vinte territoriais, mais a diocese militar), sete congregações religiosas masculinas e femininas e nove instituições e movimentos. Ou seja, 37 instituições no total, das quais só não responderam as dioceses de Angra, Aveiro, Lisboa e Setúbal e a Rádio Renascença.
“Muito me espanta e preocupa que nenhuma diocese tenha metas traçadas”, considera Margarida Alvim, responsável da Casa Velha – centro de ecologia e espiritualidade sediada em Ourém, comentando os resultados obtidos. Apesar de, nas restantes instituições, haver 10 em 15 respostas que indicam que essas metas ecológicas existem, Margarida Alvim avisa que se corre “o risco de olhar para a Laudato Si’ como sendo apenas sobre questões ligadas ao ambiente”, não compreendendo “como integrar as questões da encíclica no programa da diocese”.
“Falta uma vocação ecológica”
Uma das áreas mais positivas dos resultados do inquérito é a questão do desperdício: a maioria das instituições indica que faz alguma separação de lixo, diminuiu o consumo de plásticos de utilização única ou descartáveis (69%), e reduziu o desperdício de água (71%). Mas, paradoxalmente, quase metade não utiliza papel reciclado. Daqui, ressaltam os exemplos de quem trocou as garrafas de plástico por vidro ou deixou de ter copos descartáveis para a água, ou ainda evita a utilização de sacos de plástico nas compras. Em relação à água, medidas como a colocação de torneiras com temporizador e redutor de caudal, levadas a cabo por muitas entidades, ajudam a evitar o desperdício.
Outras respostas indicam o caminho já feito e outro tanto por fazer: metade das dioceses não têm estruturas habitacionais para acolher refugiados, e não acolhem; e metade dos inquiridos não promove a compra de bens alimentares aos agricultores locais.
O inquérito foi enviado no início de maio às instituições referidas, a propósito da conclusão do Ano Laudato Si’, que terminou na passada segunda-feira, e dos seis anos de publicação da encíclica do Papa. Ao mesmo tempo, a sua divulgação coincide com o lançamento, pelo Papa e pelo Vaticano, da Plataforma de Acção Laudato Si’, um plano de sete anos para promover os temas do documento: justiça social, cuidado com a Criação e espiritualidade.
A encíclica tem sido objeto de muitas conferências e debates, também em Portugal. Mas a ideia do inquérito foi avaliar se os apelos, motes e propostas do documento do Papa já passaram à prática nas dioceses, movimentos, congregações e instituições católicas em Portugal, através de uma amostra significativa.
“Lamento ter de reconhecer que nos falta uma vocação ecológica e uma sensibilização profunda”, comenta Isabel Varanda, professora da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, em Braga, que tem desenvolvido trabalho de investigação sobre cristianismo e ecologia. “Falta-nos esta dimensão profunda, e será através da educação, com programas sistémicos e com metas, mas também com a criação de contextos, que despertaremos para o porquê do cuidado com a Criação. Enquanto não percebermos o fundamento, não teremos essa conversão ecológica.”
Dados “preocupantes”, mas que recentram a discussão
Uma outra conclusão importante é referida por Isabel Varanda: as respostas são muito “honestas” e serão “de uma utilidade imensa”, diz. “Revelam que as pessoas se mostram preocupadas; dizer que há muita coisa que não se faz mostra um trabalho honesto e revela a preocupação subjacente.”
Entre as respostas mais positivas estão as relacionadas com a partilha de bens com famílias carenciadas: a esmagadora maioria das entidades inquiridas revela que têm algum trabalho feito nessa área, um dos pedidos concretos da encíclica. E também tem resposta muito positiva a pergunta sobre contratos de trabalho: 86% dos respondentes diz que todos os funcionários têm contrato de trabalho, sem regimes de precariedade; em 42% não há nenhum trabalhador a ganhar o salário mínimo; e 33% têm cinco ou menos trabalhadores nessas condições, sendo todos os outros pagos acima desse valor.
Os dados são menos positivos quando o tema são compras ou deslocações: apenas 25% compram carne a produtores certificados que não promovem maus tratos aos animais; 25% indica que não é uma prioridade a utilização de transportes públicos, bicicleta ou deslocações a pé, quando é possível alguma destas utilizações, e 36% indica que só o faz pontualmente.
D. José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), afirma que o inquérito “tem de positivo chamar a atenção e recentrar a discussão sobre temas concretos da Laudato Si’ que são importantes para a vida da Igreja”. Os dados “são preocupantes”, admite, mas “até certo ponto”. O que é necessário é insistir em que “o discurso da ecologia saia por outro modo: a primeira preocupação não é o foco no aspecto ecológico de saber se tenho isto ou aquilo, mas dizer ‘temos de viver de um modo diferente’.”
Apesar do seu alerta inicial, Margarida Alvim, que integra também a rede Cuidar da Casa Comum (CCC), mostra-se satisfeita com a realização e os dados do inquérito: “Isto seria impensável há cinco anos. Houve um reconhecimento e uma tomada de consciência grande, mesmo é claro que há muito para fazer ainda”, afirma. “Anima-me o caminho, mas inquieta-me a dormência, a falta de pastores que nos animem. A conversão ecológica tem de ser uma experiência espiritual e um caminho espiritual que leva a um reconhecimento sobre as razões” do cuidar. E acrescenta: “Tem de haver uma aposta também num caminho espiritual de conversão, de ligação à Terra e uns aos outros.”
Animado com os resultados do inquérito ficou também Marcial Felgueiras, diretor executivo de A Rocha, associação ambiental de inspiração cristã, nascida no seio de igrejas protestantes e anglicanas: “Confesso, com uma certa surpresa mas com muita alegria, que vejo que as pessoas estão muito mais despertas do que eu imaginava”, refere.
Marcial Felgueiras dá o exemplo da utilização das energias renováveis. “Estou impressionado que em 37 instituições haja 22 que já têm energia solar térmica e quase metade (16), tem painéis solares fotovoltaicos”, comenta. O que “provavelmente quer dizer que em alguns casos há fotovoltaico e térmico e, espante-se, há um que tem energia eólica!” É sinal que há muita gente “já a pensar com cabeça, tronco e membros e a fazer as coisas”, conclui.
“Direito de cidadania”
“O que a encíclica veio trazer é o direito de cidadania deste tema de sermos cuidadores e não predadores do planeta”, defende o presidente da CEP. “Hoje, temos de ser cuidadores, porque temos uma capacidade tal de cuidar e/ou predar, que fazemos a diferença consoante as atitudes que assumimos.”
Para o que falta, Margarida Alvim considera que é preciso “um programa concreto de conversão”, e sugere a criação de centros de espiritualidade: “Um coração espiritual em cada diocese, um centro, um lugar de forte ligação de espiritualidade e ecologia.” Com um plano de vários anos, acrescenta, poderia ir-se “experimentando esta conversão espiritual através de atividades que passem pelo contacto com a Terra, pelo silêncio, retomando a dimensão do louvor, porque a Laudato Si’ fala-nos de louvor e de cântico, de canto à Terra e aos outros”.
Esta estratégia permitiria ter a noção de que as medidas que tomamos para proteger o ambiente “são expressão não de uma legislação que temos de aplicar, mas do facto de estarmos profundamente convictos da necessidade de contribuir à nossa medida para a transformação, para um novo paradigma”, defende Isabel Varanda.
Insistindo na ideia da espiritualidade integrada, a professora da Faculdade de Teologia acrescenta: “Todas as medidas são preciosas, mas o que é que está na raiz, o que é que faz com que reciclemos? É a esse nível que o cristianismo precisa de se colocar e descobrir um outro patamar, para perceber qual o contributo original da Igreja de Jesus Cristo para a transformação desta terra e deste céu numa nova terra e num novo céu.”
As medidas mais concretas podem ser feitas por qualquer outra pessoa, cristão, ateu ou agnóstico, acrescenta Isabel Varanda. Mas, pergunta: “Como Igreja de Jesus Cristo, onde é que está a singularidade da atitude, de um estilo de vida? Para viver com alguma coerência, não posso renunciar a este patamar de exigência que todos, como cristãos, somos chamados a ter.”
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