"Mantenha o distanciamento social". Esta é uma das regras de ouro de uma pandemia que nos privou da proximidade e do toque há quase um ano. Talvez seja cedo para pensar no próximo "date" ou em voltar ao jogo da conquista, de seduzir e ser seduzido, mas um dia — esperemos — voltará a acontecer.
Esta ideia deixa-o nervoso? "Fear of Dating Again" é uma uma expressão nova, nascida do confinamento imposto para travar a propagação da covid-19, e caracteriza este medo de voltar a sair com alguém.
Recuemos um pouco: foi no dia 2 de março que o primeiro caso de covid-19 foi diagnosticado em território luso. A recomendada distância social foi colmatada pela comunicação à distância, com plataformas como o zoom ou o meet a substituir as imperiais ao fim da tarde, os jantares com amigos e os cocktails noite dentro.
Com o desconfinamento — parcial ou total — ainda longe de vista, facto é que a expressão "ir a medo" nunca se aplicou tão bem, pelo menos do que ao "dating" diz respeito. O que antes se dava por garantido, um passe-bem, um beijo ou um abraço, são suficientes para contrair o vírus ou para o transmitir a alguém.
A falta de contacto físico afeta-nos, mais ainda quando se fala potenciais relações amorosas. E se há quem, por timidez ou conforto, até possa tirar partido da mediação que a tecnologia faz quando é momento de conhecer alguém novo, certo é que falta o toque e até o cheiro.
Quando voltarmos a sair, ao conjunto de preocupações que já tínhamos numa situação destas, "vamos acrescentar esta variável da segurança". Afinal, "estamos há meses a ouvir que uma das formas de nos protegermos é estarmos afastados fisicamente", nota Maria Inês Galvão, psicóloga clínica, em conversa com o SAPO24.
"Se estivermos preocupados com a possibilidade de ficarmos doentes", estaremos potencialmente menos disponíveis para “nos entregar ou para nos aproximar” de uma outra pessoa. O que é perfeitamente justificável, diz.
Além disso, os encontros amorosos que possamos vir a combinar, pelo menos até a imunidade de grupo ser alcançada, estarão envolvidos na incerteza permanente de não sabermos quando vamos voltar a confinar ou a desconfinar, e com que regras. "Não sei se essa insegurança não fará com que estejamos menos disponíveis para as relações", questiona a psicóloga.
Isso significa que todos estes meses de confinamento vão afetar permanentemente a capacidade de voltar a sair sem medos? Depende, diz Maria Inês Galvão. Cada um reage como reage.
"Há pessoas para quem esta situação está a ser muito penosa e dura", mas há também quem esteja a conseguir "tirar algum proveito" disto.
A título de exemplo, há pessoas que normalmente já têm dificuldade nas relações pessoais e que acabam por gostar de ver os seus relacionamentos "mediados pelas novas tecnologias"; mas também há quem sinta enorme dificuldade em investir numa relação que poderá ser separada por confinamentos sem data marcada.
Não querendo entrar em "futurologia", Maria Inês Galvão assume que algumas pessoas podem sair deste período com “vontade de estar novamente em contacto” com os outros e de "procurar mais proximidade", enquanto outras poderão demorar mais tempo até esse interesse despertar.
“O caminho certo será aquele que é mais adaptado a cada um de nós (à nossa experiência e características)", defende a psicóloga.
Enquanto se impõe o dever de confinamento e a recomendação é para manter o distanciamento social, Maria Inês Galvão vê neste período uma oportunidade para investir num processo de introspeção e de autoconhecimento — um exercício que pode ajudar a afinar os critérios de uma futura busca por uma relação amorosa, já que as pessoas podem descobrir com calma quem são e o que querem. Algo que, reforça, poderá ser exercitado durante toda a vida e não apenas em pandemia.
As relações amorosas são uma "parte importante da nossa vida e da nossa identidade", mas não nos podemos esquecer que "nós também estamos nessa relação". Assim, poderá ser importante "percebermos melhor quais é que são as nossas características e o que é que queremos para as relações", sendo que "as relações amorosas são tão mais ricas quanto mais nós soubermos o que é que [lhes] podemos dar".
"Sabermos o que queremos e o que não queremos protege-nos de entrarmos, por exemplo, em ciclos de relações tóxicas", explica a psicóloga, seja em pandemia ou fora dela.
Com os "dates" e potenciais novos relacionamentos limitados ao digital, Maria Inês Galvão deixa alguns avisos, sendo que o primeiro é "estar ciente de que não sabemos quem são as pessoas que estão do outro lado".
"O principal cuidado a ter é gerirmos o que estamos a dar, mediante a confiança que temos na outra pessoa e o risco que existe dessa pessoa poder não usar da forma mais correta ou mais respeitadora as coisas que nós lhe damos", alerta a psicóloga.
Imagens ou vídeos íntimos, informações sobre o local onde vivemos ou trabalhamos são coisas sensíveis quando ainda se está no processo de conhecer alguém, "e nesse processo também temos de nos proteger", reforça.
Neste contexto, Maria Inês Galvão destaca a importância de movimentos como o "Não Partilhes", cujo objetivo é sensibilizar as pessoas para não partilharem conteúdos sem autorização da fonte original. Quando se partilham as imagens íntimas de alguém sem autorização, "do outro eventualmente pode estar alguém que está a sofrer", nota.
Questionada sobre as reais hipóteses de uma relação puramente digital, Maria Inês Galvão defende que o que mais interessa, online ou offline, é a disponibilidade que a pessoa tem para investir numa relação com o outro.
Se as pessoas forem regularmente falando e mantendo o interesse, será possível "criar uma química com alguém" online. Contudo, apenas com uma presença física, "com os sentidos todos", é possível conhecer verdadeiramente a totalidade da outra pessoa.
Quando a relação é totalmente mediada por ecrãs, "há indicadores que nos faltam" para percebermos se "estamos confortáveis e interessados ou não". A linguagem não verbal fica "mais comprometida", nota. “É como se faltasse também o cheiro daquela pessoa", diz em tom de brincadeira. "É como se faltasse uma peça do puzzle", conclui.
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