Em entrevista à agência Lusa a cerca de dois meses da Convenção Nacional do BE, o antigo líder bloquista refere-se “ao emparelhamento entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa” que funcionou “em benefício de ambos” até à maioria absoluta, uma vez que esta abriu “uma fase nova” na relação entre os dois órgãos de soberania. Francisco Louçã mostra-se muito crítico deste primeiro ano de maioria absoluta do Governo do PS e diz não estar certo de que esta legislatura chegue ao fim.
A conjugação de dois efeitos é o que está na base desta análise de Louçã, o primeiro dos quais “as contradições internas de um Governo de maioria absoluta que está mais dividido do que quando tinha maioria relativa” e também a “pressão social que tem crescido e que se tem concentrado sobre os problemas que mais dizem respeito às pessoas”.
“Depois de um ano como este, um Governo como este não governa até 2026”, antecipa.
Para o antigo líder do BE, “se o Governo não chegar ao fim é pela sua própria obra e mérito, ou seja, por se dividir, por desistir, por se desagregar”.
“António Costa pode declarar que o Governo não está cansado, teria que o fazer por dever de ofício, mas basta olhar para a maior parte dos ministros e para a maior parte das suas declarações e perceber que são biombos na sala, que são respostas de circunstância ocasionais, sem estratégia, sem política, que quando têm vontade – e alguns ministros têm vontade – não têm recursos porque há uma microgestão por parte do Ministério das Finanças”, critica.
Segundo Louçã, “houve pessoas que foram enganadas” nas últimas eleições legislativas porque “lhes prometeram uma estabilidade da maioria absoluta, que seria uma alternativa à direita”.
“A maioria absoluta foi simultaneamente totalmente instável, como não podia deixar de ser, porque o poder absoluto corrói por arrogância, como se demonstrou sucessivamente na escolha de uma parte do Governo”, lamenta, apontando ainda como consequência desta maioria absoluta a capacidade de “reverter políticas sociais que eram dadas como necessárias e ainda em falta”.
Além da degradação dos salários, a expressão “mais dolorosa desse orgulho do abuso” é, segundo o bloquista, a questão dos aumentos das pensões que não responde à inflação. Ilustrando situações deste género, Louçã considerou que “procurar ganhar simpatia através da ilusão ou da falsificação se tornou uma indústria política”.
“Creio que, desse ponto de vista, o deslumbramento de um poder de maioria absoluta e o atrevimento da demagogia política só se têm vindo a agravar”, afirma.
Para o antigo líder bloquista, a “alegria que António Costa teve ao ter a maioria absoluta foi a certeza de que poderia fazer tudo o que queria”, ou seja, “não negociar ou não ter que se submeter ao escrutínio de uma opinião pública e de uma convergência com partidos que pensam de uma forma diferente para soluções em questões que se tornavam decisivas”.
Na opinião de Louçã, “o Estado naufraga no mercado e desiste do bem público”, enquanto “o Governo desiste de ter estratégias que possam responder às pessoas dentro da ideia de que se Portugal for um grande negócio de muitos negócios, na Arca de Noé vão caber alguns animais”.
“E, portanto, os animais que couberem na Arca de Noé, salvam-se e é assim que funciona bem uma economia segundo esta política”, ironiza, considerando que isto é “um desastre” porque não pode haver democracia sem “direito a uma vida boa”.
O rol das críticas do fundador do BE aterra também na decisão de privatizar a TAP pelo Governo que chegou a comparar a companhia aérea às “caravelas do século XVI para a expansão económica e imperial”, considerando tratar-se de “uma estratégia e de uma vontade” que nunca poderia acontecer se o Governo não tivesse maioria absoluta, “a não ser que fizesse, evidentemente, um acordo com a direita”.
“Como é que pode haver uma democracia em que as pessoas não tenham a certeza de que aquilo que pagam em impostos corresponde aos cuidados que obtêm para os outros e para si próprios, em que se pode ter uma vida tranquila, em que se pode ter a segurança do emprego, da saúde, das condições de vida. É talvez aí que estão os maiores debates culturais do século XXI, é aí que está o maior confronto entre a esquerda e as direitas do século XXI”, antecipa.
Marcelo Rebelo de Sousa "está de mãos atadas perante uma direita fragmentada"
Apesar da “enorme margem de manobra” que o Presidente da República ganhou em relação ao Governo, o fundador do BE Francisco Louçã considera que Marcelo Rebelo de Sousa está agora “de mãos atadas perante uma direita fragmentada”.
“Marcelo Rebelo de Sousa ganhou uma enorme margem de manobra em relação ao Governo. Está de mãos atadas perante uma direita que está fragmentada e está estruturalmente fragmentada e que vai aceitando com cada vez mais facilidade os temas políticos de uma agenda de agressividade social”, alerta.
Porque a “maioria absoluta tornou a instabilidade absoluta como regra de governação”, na análise de Francisco Louçã, “a imprevisibilidade, a incapacidade, o custo acrescido dos grandes problemas estruturais que agora se tornam explosivos” deram “uma outra margem de manobra de intervenção ao Presidente que ele explorou e que afirmou”.
“É claro que o Presidente sabe que à direita não há nenhuma alternativa política. Sabe-o, disse-o e dizendo-o torna ainda mais agravado o buraco da falta de alternativa política à direita”, adverte.
Se Marcelo Rebelo de Sousa “espera que Montenegro seja substituído por Passos Coelho ou se é substituído por algum outro, isso o tempo o dirá”, mas, segundo o antigo líder bloquista, o Presidente da República tem “uma convicção”.
“É de que, na configuração atual, com a perda da maioria absoluta, confirmada razoavelmente por todos os indicadores da opinião pública, uma alternativa de direita teria o custo imenso de uma aliança com a extrema-direita, seja por via da Iniciativa liberal, seja por via do Chega, seja por via dos dois simultaneamente, por mais que eles se mostrem de costas voltadas, coisa que na noite de umas eleições pode desaparecer num feliz reencontro”, antecipa.
Para Louçã, “esse preço é muito elevado” uma vez que representa a “reestruturação da vida política portuguesa e, sobretudo da sua direita, do qual não tem retorno”.
“A questão que se pode colocar é se o Presidente pode fazer alguma coisa a esse respeito e, aparentemente, não pode”, admite.
Para o fundador do BE, é “certíssimo que Montenegro quer uma aliança” com o Chega, apesar de não a poder anunciar agora para a manter “na sua reserva porque a crê inevitável”.
“Isso tem um custo político para ele porque um governo com André Ventura é um governo problemático, até porque o Chega é um partido egomaníaco e, portanto, ter vários ministérios com o mesmo ministro seria uma coisa relativamente curiosa, embora não de todo impossível, considerando a vontade monumental daquele dirigente político”, ironiza.
O Chega “é povo, é uma parte do povo, das pessoas desesperadas”
No entanto, também o PS “beneficia desta situação”, na opinião de Louçã, porque planta “um fantasma, ainda por cima tão visível, tão exuberante e tão gritante como André Ventura” para fazer um apelo: “votem em nós, mesmo que nos detestem, porque aqueles são ainda piores do que qualquer coisa que vocês já viram”.
“Creio que é uma estratégia até com alguma mesquinhez e com alguma falta de perspetiva política porque não se apercebe do que representa o Chega. O Chega representa uma parte da sociedade portuguesa, representa um ressentimento e a instrumentalização de medos na sociedade portuguesa”, lamenta.
Para o bloquista, o Chega “não representa só a exuberância da mentira, não representa só a catalogação dos ódios numa rede social em que prolifera e continuará a prosperar”, mas é mais do que isso: “é povo, é uma parte do povo, das pessoas desesperadas”.
Catarina Martins: "Tenho para com ela uma dívida enorme, como acho que muita gente tem"
Sobre O BE, à beira de mudar de liderança, o fundador bloquista assinala um “amadurecimento muito grande” e a capacidade de “unificar o partido” de Catarina Martins, apoiando Mariana Mortágua para a liderança, “uma personalidade raríssima na política portuguesa”.
Na Convenção Nacional do BE do final de maio, o partido vai mudar de liderança depois da decisão de Catarina Martins deixar de ser coordenadora e, em entrevista à agência Lusa, o fundador e antigo líder bloquista elogia o “trabalho extraordinário” que “provou que uma mulher podia afirmar-se na política entre as maiores personalidades da vida pública portuguesa”.
“[Catarina Martins] mostrou que sabia correr riscos, tomar decisões, conduzir o partido, unificar o partido, mobilizar a esquerda, ser uma voz de referência para setores populares muito amplos, ter uma capacidade de diálogo extraordinário. Tenho para com ela uma dívida enorme, como acho que muita gente tem”, sublinha.
Assumindo um apoio formal a Mariana Mortágua nesta corrida, Francisco Louçã refere que subscreveu a moção que a deputada lidera e que tem, entre outros, os nomes de Catarina Martins, Marisa Matias ou Pedro Filipe Soares.
“Creio que é uma personalidade raríssima na política portuguesa. É raríssimo ver uma pessoa tão jovem e com uma história tão densa de capacidade profissional, política e humana. E isso não se encontra nem com uma candeia”, elogia quando questionado se Mariana Mortágua é a pessoa certa para liderar agora o partido, apesar de recusar precipitar-se sobre a decisão que será tomada na reunião magna de 27 e 28 de maio, em Lisboa.
O antigo líder do BE assume que foi muito crítico da corrida eleitoral interna de 2014 “e o que aconteceu depois disso foi a prova de que houve um amadurecimento muito grande porque as forças que estavam em disputa nessa cimeira de 2014 constituíram em conjunto uma direção sólida”.
“A cooperação, o trabalho, a dedicação, o peso de pessoas como Pedro Filipe Soares, Marisa Matias, ao lado da Mariana Mortágua e da Catarina Martins e de muitas outras pessoas - não vou fazer nenhuma listagem -, foi a prova de que é assim que se faz uma esquerda”, disse.
Para Louçã, a esquerda não se faz “com pessoas que obedecem a uma doutrina ou que seguem uma determinada espiritualidade”, mas “por pessoas que são diferentes, têm razões diferentes, que olham de formas diferentes para a realidade”.
“O que divide um partido não é haver duas, ou três, ou quatro ou cinco opiniões diferentes, ou listas diferentes, o que divide é quando uma direção não sabe o que quer ou não é capaz de se entender sobre o seu trabalho, e creio que hoje a direção do BE tem uma maturidade e uma preparação”, sustenta.
Na saída de Catarina Martins, o fundador bloquista considera que ela “tem idade para ter muita intervenção pública e cultural na sociedade portuguesa” e deixa um desejo: “que tenha um papel determinante, muito mais do que o meu, no futuro do Bloco de Esquerda”.
"A geringonça é um ativo da história do Bloco de Esquerda, é um orgulho da história do Bloco de Esquerda"
“Catarina Martins, que foi a heroína das eleições de 2015, soube ter a coerência, correr o risco, pagou esse risco. O Bloco de Esquerda pagou esse risco de não aceitar não fazer um acordo suficiente ou fundamental com o orçamento para 2022”, refere.
O “preço da coerência” foi uma derrota nas eleições legislativas, mas para Louçã “a coerência é essencial”, considerando que a comunidade precisa de saber que “têm pessoas que não cedem perante lugares ou que não cedem perante facilidades”.
“Agora, não há nisso nenhum preço da geringonça. A geringonça é um ativo da história do Bloco de Esquerda, é um orgulho da história do Bloco de Esquerda. Foi importantíssimo que assim acontecesse”, defende, apesar do “erro” que foi o PCP ter recusado que os parceiros da geringonça se sentassem todos à mesma mesa de negociação.
Sobre a possibilidade de uma nova solução deste género no futuro, Louçã afirma que não é útil especular sobre cenários, defendendo que “hoje a força da esquerda é a oposição”.
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