A 18 de fevereiro, o Papa Francisco deslocou-se até Ariccia, a cerca de 30 quilómetros de Roma, para um retiro espiritual até esta sexta-feira, dia 23, orientado pelo padre e teólogo português José Tolentino Mendonça, ordenado em 1990, e consultor do Conselho Pontifício para a Cultura da Santa Sé.

Às 15h de Lisboa, o Papa Francisco abandonou o Vaticano, de autocarro e na companhia de alguns elementos da Cúria, o governo do Vaticano. Em vista estava o retiro espiritual de uma semana, que se realiza todos os anos durante a Quaresma, período que antecede a Páscoa. Durante este período foram suspensas todas as habituais audiências do líder da igreja católica.

As sessões de meditação — dez, no total —, em torno do tema "O elogio da sede", decorreram sob a orientação do padre José Tolentino Mendonça, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa, na Casa do Divino Mestre dos religiosos paulistas, em Ariccia. Ao SAPO24, D. Manuel Clemente, Cardeal Patriarca de Lisboa, explica que “os pontos de reflexão são naturalmente da responsabilidade do pregador”.

Num texto publicado no site da Pastoral da Cultura, Tolentino Mendonça refere este convite do Papa Francisco. “Quando o Santo Padre quis falar comigo para que colaborasse nos Exercícios da Quaresma, disse-lhe que eu sou apenas um pobre padre, e é a verdade. Ele encorajou-me a partilhar da minha pobreza. Veio então à minha mente propor um ciclo de meditações muito simples sobre a sede, intitulado 'Elogio da sede'. A sede é um tema bíblico, elaborado muitas vezes pela tradição cristã, e ao mesmo tempo é um mapa real, muito concreto, que nos ajuda a ficarmos sintonizados com a vida de todos os dias. Interessa-me sobretudo uma espiritualidade do quotidiano”.

O programa do retiro consistiu na celebração da missa às 7h30 locais, seguida de uma primeira meditação às 9h30. Da parte da tarde, às 16h, uma segunda meditação — exceto no primeiro e último dias —, a oração das vésperas e a adoração eucarística. O conteúdo base nas meditações foi disponibilizado no site Vatican News.

18 de fevereiro

A primeira meditação do retiro teve como tema “Os aprendizes do espanto”, inspirada no Evangelho de S. João. Com a história de Jesus que pede de beber à samaritana, Tolentino Mendonça fala da surpresa da mulher para com o pedido, trazendo a mesma admiração para o dia-a-dia quando Jesus se dirige a cada pessoa. “Dá-me o que tens, abre teu coração, dá-me o que és” são os pedidos de Jesus, explicou o teólogo.

créditos: Vatican News

O momento contou ainda com citações, por parte de Tolentino Mendonça, dos escritores Eduardo Galiano, Lev Tolstoi e Fernando Pessoa. No fim, a lição pareceu simples: temos de “aprender a desaprender”.

“Desaprendamos para aprender aquela graça que tornará possível a vida dentro de nós. Desaprendamos para aprender até que ponto Deus é a nossa raiz, o nosso tempo, a nossa atenção, a nossa contemplação, a nossa companhia, a nossa palavra, o nosso segredo, a nossa escuta, a nossa água e a nossa sede”, referiu.

19 de fevereiro

A segunda meditação intitulou-se “A ciência da sede”. Mais uma vez, a inspiração é bíblica, agora vinda do livro do Apocalipse. Mas as influências literárias do responsável pelo retiro fizeram-se sentir novamente. Na sala ouviram-se Milan Kundera, Emily Dickinson e Saint-Exupéry, entre outros.

créditos: Vatican News

Na passagem do Apocalipse, as palavras usadas são “quem tem sede”, “quem quiser” — “expressões que se referem a nós”, afirmou Tolentino Mendonça. “Estamos tão próximos da fonte e vamos para tão longe, perdidos em desertos, em busca da torrente que nos mate a sede e ignorando assim o dom que Deus tem para nos dar.”

Já na terceira meditação — “Dei-me conta de ser sedento” —, o objetivo do padre português foi chamar a atenção para o facto de haver “nas nossas culturas e nas nossas igrejas, um défice de desejo”. Mas há solução: "tratar as vidas como campos que precisam de ser irrigados e fecundados, para poderem germinar".

Para ajudar, novamente os escritores, nomeadamente Clarice Lispector e Simone Weil. “Utilizamos, nos nossos dias, a literatura ao fazer teologia. Os escritores são mestres espirituais importantes”.

20 de fevereiro

“Esta sede de nada que nos faz adoecer”. Este foi o mote da primeira meditação de terça-feira. “O contrário da sede é a preguiça”, referiu o teólogo português. “Quando perdemos a curiosidade e nos fechamos ao inédito ficamos apáticos e começamos a ver a vida com indiferença”.

créditos: Vatican News

Para exemplificar, referiu um dos problemas mais frequentes na atualidade: a síndrome de Burnout. Este esgotamento emocional é definido por “síndrome do bom samaritano desiludido”, afetando muitas pessoas cuja principal ocupação é ajudar o próximo, como é o caso dos sacerdotes. Segundo uma sondagem entre o clero da Diocese de Pádua apresentada por Tolentino, os padres com maior probabilidade de virem a sofrer esta síndrome têm entre os 25 e os 29 anos, passando depois para a faixa etária dos 70 anos.

Na última meditação do dia, José Tolentino Mendonça centrou-se na “sede de Jesus”, com base no episódio do Evangelho de S. João em que Cristo, na cruz, afirma ter sede. “A sede física documentava de forma convincente que Jesus era de carne e osso, como qualquer pessoa”, mas também tinha “sede da salvação dos Homens”, referiu.

Por outro lado, a ideia da sede foi desconstruída através do episódio da samaritana, que já havia sido referido: Jesus pede água, mas é Ele quem lhe dá de beber e promete “água viva”. As palavras são então interpretadas “como sede física, mas desde o início que tinham um sentido espiritual”, disse Tolentino.

21 de fevereiro

Naquela que foi a sexta meditação do retiro do Papa Francisco, Tolentino Mendonça aproveitou os exemplos das mulheres que aparecem nos Evangelhos para referir “As lágrimas que falam de uma sede”.

créditos: Vatican News

Nos Evangelhos, a forma de expressão feminina passa mais por gestos do que por palavras. Mas, mesmo assim, “com esta linguagem, evangelizam com o modo dos simples, dos últimos”. Em S. Lucas há um fio condutor entre as mulheres: as lágrimas. E o próprio Cristo também chora.

Mais uma vez Tolentino usou uma referência literária. As lágrimas “contam histórias” sem palavras, como referiu Roland Barthes. “As lágrimas suplicam a presença de um amigo capaz de acolher a nossa intimidade sem palavras e abraçar a nossa vida, sem julgar”, acrescentou o sacerdote.

À tarde, na sétima meditação, o tema foi “beber da própria sede”, uma necessidade de construção. Usando os conceitos de nomadismo e sedentarismo, Tolentino Mendonça lembrou que a fé cristã é uma experiência nómada, enquanto a “doença do século XXI” é o sedentarismo — que também pode ser espiritual. “Tornamo-nos guias de peregrinos, mas não peregrinamos mais”.

22 de fevereiro

A meditação da manhã de quinta-feira começou com referências à parábola do filho pródigo, um história de misericórdia, perdão e amor. Há um filho mais novo com “um desejo de liberdade e passos falsos”. E, por isso, acaba no vazio e na solidão. Por outro lado, o filho mais velho, que tem “dificuldade em viver a fraternidade, recusa a alegrar-se do bem do outro e é incapaz de viver a lógica da misericórdia”.

créditos: Vatican News

Para José Tolentino Mendonça a mensagem a transmitir era óbvia: todos somos assim. “Na verdade, dentro de nós não existem apenas coisas bonitas, harmoniosas e resolvidas. Dentro de nós existem sentimentos sufocados, tantas coisas que devem ficar claras, doenças, inúmeros fios por ligar. Existem sofrimentos, reconciliações necessárias, memórias e fissuras que devem ser curadas por Deus”, disse. E, para isto, a resposta: a misericórdia é um dos “atos soberanos de Deus” — tal como se revelou aos irmãos da parábola.

A meditação da tarde, intitulada “escutar a sede das periferias”, teve como objetivo olhar para o mundo. “É essencial ter os olhos bem abertos à realidade do mundo que está à nossa volta”, iniciou Tolentino Mendonça.

Olhar para os outros foi o que fez também o Papa Francisco na Encíclica Laudato Si. “Um problema particularmente sério é o da quantidade de água disponível para os pobres, que provoca mortes a cada dia”, citou. A resolução passa, também, por “adotar uma autêntica conversão de estilos de vida e de coração” diante da “sede das periferias”.

Mas que não se pense que Cristo não olha para estes espaços. Afinal, era ele também um “homem periférico”. “Não nasceu cidadão romano, não pertencia ao primeiro mundo da época, nasceu em Belém e cresceu em Nazaré” — ficou entre as periferias de Israel e do domínio romano, mas dali chegou a todo o mundo.

Para o sacerdote português, a Igreja do século XXI é também ela periférica, trazendo desafios: é preciso encontrar espaços que não sejam “vazios do religioso”, mesmo que não sejam centrais. Referiu, também, outros espaço que podem ser considerados periferias dentro de uma cidade, como hospitais ou prisões, dirigindo-se também para aí a Igreja.

23 de fevereiro

A última meditação do retiro orientado pelo padre José Tolentino Mendonça teve como título “A bem-aventurança da sede”. Nesta intervenção, o teólogo centrou-se na passagem do Evangelho sobre as Bem-aventuranças para mostrar que estas são “um auto-retrato de Jesus”: pobre em espírito, manso e misericordiosos, sedento e homem de paz, necessitado de justiça, acolhedor de todos, alegre no testemunho à humanidade. Com isto, questionou “como anunciamos nós as bem-aventuranças?”.

créditos: Vatican News

No anúncio e na descoberta, a figura de Maria para encerrar o retiro. “Maria é mulher de escuta. Deixa-se visitar, mantém abertas as portas do coração e da vida”. Mas nós tendemos a viver numa cápsula, fechados. Contudo, à semelhança do anjo que a visitou, também cada pessoa pode acolher Deus: com atos de hospitalidade e honestidade.

Mas mais do que um aviso para cada presente no retiro, Tolentino deixou um conselho para a Igreja, que “deve aprender com Maria a compaixão, a ternura e a cura que a sede de cada ser humano requer”.

No final, o Papa Francisco dirigiu algumas palavras a Tolentino Mendonça: "Quero agradecer, em nome de todos, por este acompanhamento ao longo destes dias, que hoje se prolongarão com jejum e orações pelo Sudão do Sul, pelo Congo e também pela Síria, lembrando com esta referência o dia de hoje como jornada mundial de oração e jejum pela paz.

"Obrigada, padre, por ter falado da Igreja, por nos ter feito sentir de facto Igreja, este pequeno rebanho. E também por nos ter avisado para não nos 'encolhermos' com a nossa mundanidade burocrática! Obrigada por nos ter recordado que a Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo, que o Espírito voa e trabalha também fora. E com as citações e as coisas que disse, mostrou-nos como Deus trabalha com os não crentes, com os pagãos, com as pessoas de outras confissões religiosas: é universal, é o Espírito de Deus que é para todos", disse Francisco.

Com isto, o Papa Francisco e os seus colaboradores concluíram esta manhã os Exercícios Espirituais de Quaresma. Está previsto que o Santo Padre regresse ao Vaticano ao início desta tarde.

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