Chamam-lhe vereador das Zonas Altas, a Chamorra, onde nasceu, e sente orgulho nisso e na transformação que aí se deu. "Tinha aquelas vizinhanças à antiga, em que deixávamos a porta aberta e os vizinhos podiam entrar e sair, havia confiança, as pessoas conheciam-se todas. Era seguro e continua a ser", conta. Por isso voltou para lá, para o bairro da Nazaré, "um caso de sucesso a nível de inclusão social, urbanístico, tudo".

Chegou à presidência da câmara do Funchal por um acaso: em 2013 é convidado por Paulo Cafôfo para integrar a lista liderada pelo PS. Era o número dez. Acontece que naquele ano, e ao contrário do habitual, o Partido Socialista (e os partidos da coligação) derrotaram o PSD, um resultado histórico. Normalmente entram apenas os primeiros cinco ou seis da lista, mas seis meses depois do início do mandato vários vereadores demitem-se e chegou a vez do senhor que se segue. "Estava a escrever a minha tese de MBA, que ficou pelo caminho entretanto, e fui convidado a assumir a pasta das Finanças na Câmara Municipal do Funchal. Não podia recusar, porque seria quase o confirmar que não existiam alternativas ao PSD na sociedade civil para governar", diz Miguel Silva Gouveia.

Já no segundo mandato, em 2019, Paulo Cafôfo deixa vago o seu lugar de presidente da câmara para se candidatar ao Governo Regional e Miguel Silva Gouveia, então já vice-presidente, assume o posto.

A pasta das Finanças e a vice-vice-presidência da câmara do Funchal não são a única coisa que une Miguel Silva Gouveia e o seu rival, Pedro Calado, do PSD. Ambos passaram pelos Salesianos do Funchal em miúdos e ambos fizeram o ensino superior em Lisboa. "Fui estudar Engenharia para o Técnico, em Lisboa, e regressei à Madeira para trabalhar naquilo que foi sempre o ofício da minha família, toda ligada à área da electricidade: o meu bisavô trabalhou com os ingleses quando trouxeram a electricidade para a Madeira, o meu avô foi chefe da Hidroeléctrica no Porto Moniz, eu fui para a Empresa de Eletricidade da Madeira".

Esta é a primeira vez que Miguel Silva Gouveia vai a votos (numa coligação apoiada pelo BE, PAN, MPT e PDR (agora sem os votos do JPP e do Nós Cidadãos). Em 2017 cerca de 5 mil votos separaram as duas candidaturas.

Como é que o Funchal sente os efeitos da insularidade? 

Sentimos, obviamente, o custo da insularidade, mas não tanto como nos Açores. A Madeira, sendo só duas ilhas, comporta 240 mil habitantes - o mesmo número que no Açores está espalhado por nove ilhas. Houve, de alguma forma, uma tentativa de proteger a continuidade territorial para que os madeirenses conseguissem ir ao continente a preços mais ou menos acessíveis. Neste momento, um madeirense paga 60 euros por um bilhete de avião. Só que o modelo de subsídio criado veio distorcer o mercado, porque estabeleceu um teto até cerca de 400 euros, o que empurrou todas as tarifas para esse teto, o mercado ajustou-se por cima. O modelo tem de ser revisto rapidamente.

Perguntas à queima-roupa a Miguel Gouveia

O que fazem ou faziam os seus pais?

O meu pai é operador de quadro coordenador na Empresa de Eletricidade da Madeira e a minha mãe era chefe de pessoal no Governo Regional.

Quem são os seus amigos?

Os meus amigos são aqueles que construi na faculdade e que, felizmente, se mantêm ao meu lado até hoje.

Quem foi o pior primeiro-ministro de todos os tempos?

Durão Barroso.

Qual o seu maior medo?

Perder a confiança.

Qual o seu maior defeito?

Aquele que toda a gente costuma dizer: sou obstinado e quando meto uma coisa na cabeça tenho de ir até ao fim.

Quem é a pessoa que mais admira?

António Guterres.

Qual a sua maior qualidade?

Humildade.

Qual a maior extravagância que já fez?

Er... Ir ao Porto ver o Marítimo.

Qual a pior profissão do mundo?

A política.

Se fosse um animal, que animal seria?

[Ri] Um leão, o leão do Almirante Reis, sem dúvida.

Quem não merece uma segunda oportunidade?

Os traidores.

Em que ocasiões mente?

[Pensa] Nalgumas, nalgumas... Mais para proteger os outros do que a mim próprio.

Quem foi o melhor presidente de sempre da Câmara Municipal do Funchal?

Fernão de Ornelas [1935-1946].

Se fosse uma personagem de ficção, que personagem seria?

Boa questão... Não sei. 

Que traço de perfil obrigatório tem de ter alguém para trabalhar consigo?

Competência e responsabilidade.

Qual o seu filme de eleição?

"Pulp Fiction" [Quentin Tarantino]

O que o faz perder a cabeça?

Desleixo e desinteresse.

O que o deixa feliz?

Música.

Um adjetivo para Alberto João Jardim?

[Pensa] Dinossauro. Não é um adjectivo, mas... Jurássico.

Como gostaria de ser lembrado?

Como uma pessoa que transformou o Funchal.

Com quem nunca faria uma aliança?

Com intolerantes, sejam de extrema-direita ou de extrema-esquerda.

Descreva a última vez que se irritou.

[Pensa]. Não me lembro. Não sou pessoa de me irritar.

Tem uma comida de conforto ou de consolo? Qual?

Gosto de um prego no bolo do caco. Madeirense.

Se for eleito presidente da Câmara Municipal do Funchal, qual a sua primeira medida?

Continuar a trabalhar. Não há nada que tenha uma prioridade sobre as outras, temos tanto trabalho pela frente... Continuar.

A que político nunca compraria um carro em segunda mão?

Ao [Paulo] Portas.

Se pudesse ser congelado e acordar daqui a 100 anos, o que quereria saber?

Se as calotes polares já tinham derretido todas.

A quem compete rever esse modelo?

O modelo foi criado pelos governos Regional e da República, em 2015. Existia um modelo anterior, em que por cada viagem era dada uma subvenção de 30 euros por passageiro, mas o mercado era livre. Para ter uma noção, os encargos com este subsídio eram de 4 milhões de euros, em 2012/13. Quando se passou para o modelo atual, ainda feito pelo anterior Governo Regional, os custos deste subsídio foram crescendo, porque as viagens foram condicionadas, e em 2019 já ultrapassavam os 40 milhões, dez vezes mais.

De onde sai esse dinheiro?

O dinheiro sai do orçamento do Estado. E isto, claramente, são sintomas de distorção de mercado, as companhias aéreas ajustam-se para poder maximizar o subsídio, para terem mais encaixe financeiro. Para os madeirense acaba por ser benéfico, porque pagam sempre apenas 60 euros, mas é preciso perceber que a continuidade territorial faz-se nos dois sentidos. Um continental que queira vir à Madeira tem logo essa barreira dos 400 euros para pagar, quando no passado tinha vagens a preços mais adequados.

Um madeirense paga 60 euros por um bilhete de avião. Só que o modelo de subsídio criado veio distorcer o mercado [...] Um continental que queira vir à Madeira tem logo essa barreira dos 400 euros para pagar

Mesmo em companhias low cost?

Sim. Temos a Easy Jet a voar para a Madeira, mas acompanha os preços da TAP, vão-se equivalendo.

A Autoridade da Concorrência não tem aqui um papel?

Já foi analisado, disseram que não havia qualquer tipo de cartelização. Mas ainda se conseguem preços decentes, o que é preciso é marcar com muita antecedência. Eu estou a tentar ir ver o Marítimo a jogar no Bessa, em dezembro, e os bilhetes estão a 40 euros, um valor simpático. Os bilhetes de avião, não do jogo.

Quanto ao modelo de comparticipação do Estado, tem uma solução melhor?

Há dois ou três anos houve uma tentativa de regionalizar essa compensação para mitigação da continuidade territorial, chamemos-lhe assim. Estabeleceu-se um valor à volta dos 50 milhões de euros e o objetivo era entregar esse valor à gestão da região. O Governo Regional definiria então a melhor forma de o aplicar, que tanto poderia ser nas viagens aéreas, como no serviço público de um ferry de ligação a Lisboa ou ao Algarve, como já aconteceu. Mas não houve vontade política da região em assumir essa responsabilidade. Acho uma pena, porque poderíamos ter low costs de vários destinos europeus para a região e ainda um ferry o ano inteiro, ainda que fosse uma operação deficitária, cumprindo a função de serviço público.

Houve uma tentativa de regionalizar essa compensação [...] à volta dos 50 milhões de euros e o objectivo era entregar esse valor à gestão da região. Mas não houve vontade política para assumir essa responsabilidade

A TAP devia ter essa função de serviço público, também, um dos argumentos apresentado a favor da sua continuidade. O que pensa quando ouve esta discussão?

Bom, os madeirense têm uma relação talvez muito emocional com a TAP, porque a TAP foi a nossa porta de saída, pelo menos para a minha geração. A linha não estava liberalizada, era de serviço público, era a nossa porta para o mundo. Ficamos sempre com alguma tristeza por ver a TAP passar por esta situação. Não sei se foi má gestão, se erros de planeamento estratégico, mas a realidade é que para as regiões autónomas a TAP sempre foi importantíssima no cumprimento desse serviço público. Mesmo que deficitário. Mas, infelizmente, isso foge ao nosso controlo.

os madeirense têm uma relação talvez muito emocional com a TAP, porque a TAP foi a nossa porta de saída, pelo menos para a minha geração

Antes de avançar com as suas propostas para o Funchal e o seu trabalho no último mandato, gostaria de saber quais as suas ambições políticas.

Sou engenheiro eletrotécnico, quadro da Empresa de Electricidade da Madeira, e tenho uma pós-graduação em Gestão. Fui convidado pelo Paulo Cafôfo, em 2013, para integrar a sua lista. Na altura disse-lhe que não tinha intenção de integrar qualquer projeto político a tempo inteiro, mas que contribuiria com o que pudesse para um projeto diferente e de alternativa ao PSD, que vinha governando o Funchal há 40 anos. E vim em 10.º na lista. Normalmente são eleitos seis vereadores com maioria absoluta. Mas, quis o destino, alguns vereadores apresentaram a demissão e saíram seis meses depois do início do mandato. A equipa do Paulo ficou dependente dos vereadores que estavam no lugares seguintes. Eu estava a escrever a minha tese de MBA, que ficou pelo caminho entretanto, e fui convidado a assumir a pasta das Finanças. Não podia recusar, porque isso seria quase confirmar que não existiam alternativas ao PSD na sociedade civil. Senti essa responsabilidade, de mostrar que existe uma alternativa, que há pessoas competentes. Depois, em 2017, o Paulo convidou-me para vice-presidente. Aceitei e, entretanto, ele sai para se candidatar ao Governo Regional. Assumi, então, a presidência da câmara do Funchal. 

Ou seja, é a primeira vez que vai, de facto, a votos.

Sim. Neste momento o meu compromisso é com o Funchal, única e exclusivamente. Não sou filiado, não tenho qualquer ambição partidária, não tenho qualquer pretensão de ir para secretário ou para deputado do Governo Regional. O Funchal é um projeto que me agrada, pelo qual me apaixonei e, conhecendo os detalhes, conhecendo o Funchal por dentro, verifica-se que há muito para fazer para tornar o Funchal uma capital europeia. O Funchal esteve muitos anos quase subalternizado a um poder regional e só se desenvolvia na justa proporção daquilo que o Governo Regional queria. Agora o Funchal emancipou-se.

O Funchal esteve muitos anos quase subalternizado a um poder regional e só se desenvolvia na justa proporção daquilo que o Governo Regional queria

E como tem corrido essa emancipação?

Tem as dores de crescimento. Quando cá chegámos foi necessário aportar muita massa crítica, porque não existia, demos prioridade à contratação de técnicos superiores. Neste momento temos muitas pessoas com capacidade de pensamento estratégico para a cidade em diferentes áreas, como a do saneamento e das águas, a do ambiente, a da cultura, a da acção social. Tem sido um trabalho que não é visível, mas quando chegámos os quadros que definiam essas estratégias estavam todos no Governo Regional e as políticas eram impostas. 

Impostas em que sentido?

O que aconteceu foi que nada disto foi muito bem visto por quem cá mandava antes, e temos tido praticamente zero apoios do Governo Regional. Antigamente era habitual o Governo Regional ajudar financeiramente a Câmara do Funchal, que recebia sensivelmente 7 milhões de euros por ano em contratos-programa. Desde 2014 não recebemos um cêntimo. Face a essa ausência de apoios do Governo Regional, somos hoje a autarquia com maior independência financeira da região. Exatamente porque só contamos com as nossas receitas próprias tivemos de ser criativos, bater a muitas portas para manter os níveis de investimento, manter a câmara a funcionar. 

Temos tido praticamente zero apoios do Governo Regional

A que portas foram bater?

Fomos bater, por exemplo, à porta do POSEUR [Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos] para investimentos na área ambiental, ou do Madeira 14-20 [Programa de apoio do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional e do Fundo Social Europeu], para investimentos na área da mobilidade, requalificação de equipamentos culturais, ou do Turismo de Portugal, para financiamento de várias infraestruturas que foram danificadas pelos incêndios, mas que têm potencial turístico. Portanto, temos diversificado as nossas fontes de financiamento. 

Miguel Silva Gouveia
créditos: © 2019 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

Quando chegou à câmara do Funchal e recebeu a pasta das Finanças, o que herdou?

Olhe, pagámos uma dívida superior a 100 milhões de euros, que existia quando cá chegámos, e que agora está nos 34 milhões. Recuperámos a credibilidade junto das instituições de crédito e hoje podemos confortavelmente ir à banca pedir financiamento. O PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] era mais uma dessas fontes de financiamento que se afigurava interessante para o município poder continuar a cumprir com o seu plano de investimentos na área da habitação social, da transição digital, tudo o que lá está previsto.

pagámos uma dívida superior a 100 milhões de euros, que existia quando cá chegámos, e que agora está nos 34 milhões

Mas?

Infelizmente, o documento inicial afastava todos os municípios da região do acesso a esses fundos. Tive oportunidade de falar com o ministro do Planeamento, Nelson Sousa, com o primeiro-ministro, António Costa, que disseram que era uma responsabilidade exclusiva do Governo Regional, uma vez que nas regiões havia uma dotação do PRR no valor de mais de 700 milhões de euros, entregue à região para definir como aplicará essa verba. Não foi por isso que deixámos de fazer valer o nosso ponto de vista, na consulta pública e junto das entidades responsáveis pela definição do plano. Ainda assim, o plano foi aprovado sem a possibilidade de as câmaras municipais da Madeira terem acesso a um único cêntimo do PRR [directamente], tudo o que é para habitação social é a empresa pública do Governo Regional, a IHM [Investimentos Habitacionais da Madeira] que irá fazer. O mesmo na área da educação...

Mas a câmara do Funchal pode apresentar os seus projectos no âmbito do PRR ao Governo Regional.

E vamos fazê-lo, mas o modelo que foi criado é um modelo que exclui as câmaras, porque quem gere o dinheiro é o Governo Regional. A nossa relação com o Governo Regional não é má, é inexistente. Até tenho bons amigo no Governo Regional e dou-me bastante bem com alguns governantes. A realidade é que quando toca a estes apoios - que não são apoios, a câmara deve ter acesso a esta fonte de financiamento por mérito próprio, porque tem projetos - as coisas não funcionam.

A nossa relação com o Governo Regional não é má, é inexistente

Que projetos tem a câmara do Funchal?

Propusemos ao governo que fosse incluído no próximo quadro comunitário de apoio, ainda antes da pandemia - e o pedido foi replicado via PRR - 300 milhões de euros. Que contemplam uma série de áreas, desde a proteção civil, à habitação social, passando pela transição digital ou a modernização administrativa. Não tivemos resposta a nenhum desses quase 100 projetos. Estou para ver como vão materializar-se agora. Se abrirem avisos, vou candidatar os projetos que tenho. Depois vou esperar a resposta. Consoante a resposta, vou fazer valer os direitos do Funchal junto das entidades competentes, nomeadamente a entidade de gestão nacional de fundos comunitários e a própria União Europeia.

Com as outras câmaras acontece a mesma coisa ou o tratamento é diferente?

No acesso aos fundos comunitários o tratamento é mais ou menos semelhante. Nos apoios de cooperação financeira, câmaras que têm a cor política PSD normalmente têm acesso a esses fundos. Uma das reivindicações que faço é que o Governo Regional está há oito anos de costas voltadas para os funchalenses, a ponto de o ex-vice-presidente, agora candidato pelo PSD à Câmara Municipal do Funchal [Pedro Calado], que era quem tinha a responsabilidade de firmar esses acordos de cooperação financeira, dizer que não ia fazer nenhum contrato programa com o Funchal porque "não ia deixar que o Funchal cumprimentasse com chapéu alheio". Portanto, houve claramente uma tentativa e cercear financeiramente a câmara do Funchal para que não mostrássemos trabalho.

O Governo Regional está há oito anos de costas voltadas para os funchalenses

A tentativa foi bem-sucedida?

Felizmente, mostrámos trabalho ainda este fim-de-semana, com uma iniciativa de campanha talvez inédita - que eu conheça nunca ninguém fez no Funchal: demos a volta à cidade, fizemos 36 quilómetros a pé, passando pelas dez juntas de freguesia, para mapear 115 investimentos que realizámos ao longo deste mandato e que totalizaram um investimentos de mais e 53 milhões de euros. Uma forma de mostrar no terreno o trabalho que foi feito apesar de tantas tentativas de nos tirar capacidade de financiamento, que foram todas frustradas pelo trabalho do executivo e dos técnicos da câmara.

Nesse périplo pelas dez freguesias o que viu?

Não é só agora que vou para o terreno, ao longo do ano inteiro passo tanto tempo fora como dentro do gabinete. Que tem o pelouro financeiro está fadado a assinar faturas e a assinar cheques e afins. Mas procuro estar pelo menos metade do tempo na rua. As pessoas conhecem-me, sabem que vou aos sítios, que gosto de me inteirar das obras, dos pormenores durante a obra (porque muita vezes as pessoas sugerem alteração fáceis de concretizar). Acaba por ser natural que me abordem, sempre fui uma pessoa disponível para ouvir, sempre falei a verdade, nunca me pus a prometer aquilo que não podia cumprir. Às vezes ficam chateados quando digo que reconheço a necessidade de uma habitação, por exemplo, mas digo que a câmara não tem casas disponíveis para entregar. Se calhar era mais fácil dizer que sim, mas não posso porque sei que é mentira. Se há coisa que me dá satisfação é poder andar na rua sem ter gente a apontar-me o dedo ou dizer que menti. Acima de tudo as pessoas não percebem porque é que do outro lado está um candidato que era vice-presidente do governo, a imagem que passa é que querem controlar tudo. Há aqui uma tentativa de voltar a ser pensamento único na região, mas as pessoas reconhecem que a diversidade é um benefício dos territórios e das comunidades.

Há aqui uma tentativa de voltar a ser pensamento único na região, mas as pessoas reconhecem que a diversidade é um benefício dos territórios e das comunidades

A Madeira tem uma das taxas de desemprego mais elevadas do país, mais de 10%. O Funchal está abaixo, mas é o centro da atividade económica, representa 70% da economia da região.

O Funchal tem questões sociais muito graves, particularmente ligadas ao turismo. Para uma terra que tem 20 mil trabalhadores na área do turismo, dois anos de pandemia, com o turismo a chegar a conta-gotas, tiveram reflexos, e muitas pessoas passaram por dificuldades e ainda estão a passar, embora estejamos a recuperar. Para ter uma ideia, no Funchal somos 106 mil habitantes, de acordo com os últimos Censos, e tínhamos uma população flutuante de turistas média anual de 15 mil pessoas. Representa cerca de 15% da população. E, de um momento para o outro, ficámos sem ela.

Para uma terra que tem 20 mil trabalhadores na área do turismo, dois anos de pandemia, com o turismo a chegar a conta-gotas, tiveram reflexos

A Madeira, enquanto Zona Franca, é competitiva ou, comparando com os regimes offshore oferecidos em vários territórios as vantagens são poucas?

O centro internacional de negócios da Madeira é importante para nós pela criação de emprego, embora não seja um grande volume de emprego. Mas, acima de tudo, é importante pela receita que nos permite obter para o orçamento da região, é um instrumento financeiro para permitir ao governo regional superar algumas dificuldades da periferia. Na prática, na Madeira temos três grandes actividades económicas: turismo, centro internacional de negócios e obras públicas. As obras públicas têm sido quase sempre numa lógica de aproveitamento de fundos comunitários. Infelizmente, acabámos por perceber que algumas das obras que foram feitas não tiveram o valor acrescentado que deviam ter tido do ponto de vista da comunidade. Fez-se a obra, mas não se pensou que é necessário ter um montante anual para a conservar. Temos algumas estruturas que se foram degradando. É importante repensar isto e acho que o papel das autarquias, aqui, como massa crítica, para poder validar alguns projectos do Governo Regional, é importante. É importante que as autarquias tenham um pensamento próprio e crítico. Temos alguns projetos na Madeira que estão a dar brado precisamente pela existência de um poder local mais forte e mais reivindicativo.

Por exemplo?

Refiro-me a estradas em floresta laurissilva, que é património da Unesco, ou à instalação de jaulas de aquacultura em frentes marítimas fortemente procuradas por turistas ou à ampliação do porto do Funchal, por exemplo, que carece de um estudo para perceber quais os efeitos de termos três ribeiras a desaguar num porto. Tudo isto acaba por revelar a importância que um poder local forte, competente e interventivo deve ter, e assim garantiríamos que os fundos comunitários são bem aproveitados - porque não vão existir para sempre. Temos de aproveitar para criar dinâmicas internas de valor-acrescentado, caso contrário manteremos sempre a lógica de que o dinheiro que vem da União Europeia é para fazer estradas, edifícios, para alimentar obras públicas. 

E onde gostaria mais de aplicar o dinheiro que vem da União Europeia?

O dinheiro que vem da União Europeia tem de servir para fomentar o conhecimento a nível da investigação, para ter valor acrescentado tecnológico. Tem de servir para diversificar a economia. Infelizmente não tem acontecido, tem afunilado numa lógica da obra pública e do betão.

Miguel Silva Gouveia e António Costa
créditos: © 2021 LUSA - Agência de Notícias de Portugal, S.A.

É-lhe mais fácil falar, no sentido de chegar a entendimentos, com o Governo Regional ou com o Governo da República? 

Chegar a entendimentos tem sido mais fácil com o Governo da República, temos tido um bom relacionamento em diversas áreas, como aquelas de que falei e onde fomos buscar apoio financeiro. Tivemos abertura total do governo para alterar o programa do PROSEUR nacional para que os municípios da região pudessem recorrer a essa fonte de financiamento para proteger algumas escarpas do Funchal, que estavam numa situação fragilizada, e conseguimos investir oito milhões de euros. Aqui na Madeira, em alguns serviços, como a proteção civil, tenho bom relacionamento. E tenho um bom relacionamento com todos os eurodeputados madeirenses e com todos os eurodeputados, mesmo do PSD - uma do Parlamento Europeu do PSD foi convidada e aceitou integrar o conselho consultivo da nossa candidatura a capital europeia da cultura 2027. Procurámos fazer um conselho abrangente, supra-partidário, que relevasse a Madeira, não interessam os poderes partidários mesquinhos que por vezes nos fazem perder oportunidades por estarmos fechados em capelinhas ideológicas. Consegui ter um leque abrangente de figuras, desde o bispo de Setúbal, que é madeirense, a Alberto João Jardim. Temos procurado colocar o Funchal na rota dos eventos internacionais, dar uma dimensão mais europeia, mais internacional a este nível. O Festival de Jazz - que não aconteceu nos dois últimos anos por causa da pandemia - foi um dos motes para a cidade de Montreux, onde se realiza o maior festival de jazz do mundo, abordou-nos para fazer uma parceria. É preciso aproveitar para trazer o mundo para cá, em vez de ficar a olhar para o nosso umbigo ou ficar debaixo da asa do Governo Regional, que também acho que já se provou que prejudicou demasiado o Funchal.

Uma análise da Pordata coloca o Funchal como o segundo município do país que mais investe nas áreas ambientais

Quais as principais necessidades do Funchal e que projetos gostaria de implementar nos próximos quatro anos?

Uma das principais necessidades é a habitação social. E é um problema que não se resolve de um dia para o outro. Tivemos de aprovar a estratégia local de habitação, fizemo-lo em 2018, e aguardámos até 2020 para fechar um protocolo com o IHRU [Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana] para o financiamento de 202 novos fogos para habitação social, que vamos fazer no próximo mandato. Podíamos fazer mais se tivéssemos acesso aos fundos do PRR que, pelos vistos, não vamos ter. Mas vamos ter pensamento positivo. Procuramos também investir na sustentabilidade ambiental, outro dos eixos estratégicos da nossa candidatura. O compromisso ficou bem evidente quando foi publicada uma análise da Pordata, que coloca o Funchal como o segundo município do país que mais investe nas áreas ambientais: dedicamos 22% do nosso orçamento a investimento na área ambiental. E estamos a falar da recuperação de perdas de água, da conclusão do sistema de saneamento básico, que tem uma directiva para cumprir desde 1991 - em 22 anos consecutivos de executivos PSD na câmara e não fizeram rigorosamente nada. Foi em 2015, connosco, que se começou a fazer a nova ETAR do Funchal, um projecto de 12 milhões de euros que está agora no terreno.

um político deixado sozinho com a sua vontade é muito perigoso, devemos ter ferramentas de apoio à decisão, preferencialmente assentes em métodos científicos

Há pouco falou na transição digital e na modernização administrativa.

Na modernização administrativa queremos mudar o paradigma de gestão das cidades, com a criação de um centro integrado de gestão municipal (CIGM), que procura ter em tempo real todas as informações da cidade - trânsito, qualidade do ar, ruído, etc. - como se tratasse de um sistema neuronal. Costumo dizer que um político deixado sozinho com a sua vontade é muito perigoso, devemos ter ferramentas de apoio à decisão, preferencialmente assentes em métodos científicos. Se eu souber através do CGM que as maiores necessidades de intervenção na rede viária são numa determinada zona, planifico investimentos com racionalidade. Às vezes temos uma perceção enviesada das coisas, até por aquilo que são as últimas notícias do dia. Outro eixo fundamental é a participação e o envolvimento dos cidadãos na governação da cidade. Desenvolvemos plataformas que permitem aproximar os cidadãos da cidade, como o cidadão alerta, que permite reportar de ocorrências, de um prédio devoluto a uma fuga de água ou uma recolha de lixo. Assim conseguimos dar cumprimento às necessidades da maioria. Não vamos fingir que não há problemas, eles existem, mas o que temos é de procurar identificar com seriedade onde estão esses constrangimentos para lhes afectar recursos.