Já na sala de audiências, Gisèle Pelicot disse que queria dirigir-se ao marido, chamando-lhe Dominique, mas afirmou não querer olhar para ele. "Tantas vezes disse a mim mesma que era uma sorte tê-lo ao meu lado".

Pelicot explicou depois que o marido tinha estado ao seu lado quando ela pensava que estava doente com problemas neurológicos — e que mais tarde se descobriu serem consequência das drogas administradas para efetuar as violações.

"Ele levou-me ao neurologista, aos exames quando eu estava preocupada. Também ia comigo ao ginecologista. Para mim, era uma pessoa em quem eu confiava inteiramente", frisou.

"Como é que o homem perfeito pode ter chegado a isto? Como é que me pôde trair até este ponto? Como é que trouxeste estes estranhos para o meu quarto?", questionou.

Gisèle Pelicot comentou ainda que "o perfil de um violador não é o de alguém que se encontra num parque de estacionamento à noite. Um violador pode também estar na família, entre os nossos amigos".

"Quando vi um dos arguidos a depor na semana passada, [percebi que] ele entrou no meu quarto e na minha casa sem consentimento. Este homem veio violar uma mulher de 57 anos, inconsciente —  eu também sou mãe e avó... Podia ter sido avó dele. Sou uma mulher totalmente destruída e não sei como é que me vou levantar desta situação", evidenciou.

Como é que Gisèle Pelicot era sedada?

Quando o presidente do tribunal perguntou a Gisèle Pelicot se tem memória "de momentos em que Dominique Pelicot a convidou para beber coisas ou pratos específicos", de forma a fazer com que ingerisse os medicamentos que a deixavam inconsciente, a francesa referiu que "ele fazia muitas refeições" e que "via isso como uma atenção da parte dele".

"Sei que uma noite ele veio buscar-me à estação de Avignon depois de 10 dias com os meus netos. Ele já tinha preparado a refeição — puré de batata. Dois pratos já estavam no forno. Eu pus azeite nas minhas batatas e ele pôs manteiga, por isso era fácil ver qual era o prato dele", começou por contar.

"Bebíamos um copo de vinho branco juntos. Nunca achei nada de estranho nas minhas batatas. Acabámos de comer. Muitas vezes, quando estava a dar um jogo de futebol na televisão, eu deixava-o ver sozinho. Ele levou o meu gelado para a cama, onde eu estava, do meu sabor preferido, framboesa. E eu pensava: 'Que sorte a minha, ele é um amor'. Nunca senti o meu coração palpitar, não senti nada, devo ter-me afundado muito depressa. Acordava com o pijama vestido. De manhã devia estar mais cansada do que o normal, mas como ando muito a pé, pensei que fosse isso", recordou.

Associações de apoio especializado à vítima de violência sexual:

Quebrar o Silêncio (apoio para homens e rapazes vítimas de abusos sexuais)
910 846 589
apoio@quebrarosilencio.pt

Associação de Mulheres Contra a Violência - AMCV
213 802 165
ca@amcv.org.pt

Emancipação, Igualdade e Recuperação - EIR UMAR
914 736 078
eir.centro@gmail.com

Contudo, existiam ainda outros sintomas de manhã. "Várias vezes acordei e senti que tinham rebentado as águas — como acontece quando se dá à luz", disse, pelo que consultou "três ginecologistas".

Pijama, roupa diferente, pijama

O presidente do tribunal questionou Gisèle Pelicot sobre o que vestia nos vídeos das agressões de Dominique Pelicot e que foram partilhados em fóruns e chats online. Segundo depoimentos revelados a semana passada, o marido tirava-lhe o pijama, vestia-lhe outras peças de roupa e depois volta a vesti-la com o pijama.

"Eu tinha duas gavetas de roupa interior, conhecia-a bem. Usava branco ou cor de laranja, tinha meias brancas, tinha collants pretos. A roupa interior que aparece nos vídeos não é a minha. O que eu vi nos vídeos não me pertence, ele deve tê-la guardado algures, mas eu não sabia", nota Gisèle Pelicot.

Gisèle Pelicot foi ainda questionada sobre um vídeo com o seu marido, mostrado ao tribunal, no qual se ouve claramente a sua voz a dizer "Pára, pára, dói", com um tom de voz que deverá corresponder à fase inicial da sedação. À pergunta "Acha que foi consentido", a francesa não hesitou: "Foi uma violação, claro que foi uma violação". Posteriormente, após uma pergunta do seu advogado, voltou a frisar: "Claro que hoje não me sinto responsável por nada. Hoje, acima de tudo, sou uma vítima".

Questionada sobre o facto de o marido se ter referido a ela como "la bourgeoise" a alguns dos homens que recrutou para a violar, Pelicot notou esse pormenor como "interessante". "Sempre gostei de sair bem vestida, sempre fui assim na minha vida, no trabalho, até hoje. Quando vou ao mercado, vou sempre bem vestida. Portanto, se a minha maneira de vestir e de ser era burguesa... Sempre me interessei por literatura e música", atirou.

Violações como vingança?

Um dos homens acusados de violação referiu em tribunal que Dominique Pelicot tinha falado em agir por vingança contra Gisèle Pelicot por esta ter tido uma relação extraconjugal.

Questionada sobre este assunto, a francesa não hesitou. "Pensei muitas vezes que talvez ele nunca tivesse recuperado do facto de eu ter conhecido alguém na minha vida. Sentia-me muitas vezes responsável. Pensei: não seria talvez uma vingança, porque ele tinha sofrido tanto com aquele caso? Mas, anos mais tarde, já tínhamos falado sobre isso. Ele também teve casos. O primeiro homem que conheci era o meu marido, o segundo era o meu amante. Também falámos sobre isso".

Gisèle contou também como falaram sobre este caso. "Eu estava na casa de banho. Ele tinha dúvidas. Viu que eu não era a mesma pessoa". Confrontada pelo marido — "Preciso de saber" —, admitiu-o. "Para ele, foi muito difícil. Ele não conseguia imaginar que eu pudesse fazer aquilo".

Nessa altura, a filha do casal, Caroline, viu a discussão. "Uma noite vi o meu pai pegar na minha mãe pelo pescoço, levantá-la do chão e dizer que a ia matar".

"Ela era uma menina de oito anos, não está a mentir, viu uma cena na casa de banho quando o pai dela veio ter comigo. Apertou-me pelo colarinho, é verdade", garantiu Gisèle Pelicot.

Coragem ou determinação

Em tribunal, várias pessoas — esposas, namoradas, amigos  — referiram que o arguido não parecia capaz de violar, mas Gisèle Pelicot tirou daí conclusões. "Temos de progredir na cultura da violação na sociedade. As pessoas devem aprender a definição de violação".

Quando lhe perguntaram como é que se manteve firme face ao que tinha ouvido em tribunal, Gisèle Pelicot respondeu que tal "não é coragem, é vontade e determinação de mudar a sociedade".

A audiência no Tribunal Penal de Avignon foi encerrada por volta do meio-dia desta quarta-feira e Gisèle Pelicot deverá voltar a intervir nas últimas fases do processo, que decorrerá até 20 de dezembro.