“Grândola, Vila Morena” nasce em 1964 em forma de poema dedicado à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense (SMFOG). Reproduzido numa carta, é lido ao grupo de teatro da SMFOG nesse mesmo ano. Vira canção, poema-canção e ganha vida num disco, “Cantigas de Maio”, gravado em 1971, com as vozes e os passos de José Afonso, José Mário Branco, Francisco Fanhais e Mário Correia. A 29 de março de 1974 foi apoteoticamente cantada no encerramento do Primeiro Encontro da Canção Portuguesa, no Coliseu dos Recreios de Lisboa e, por fim, às 00h25 de 25 de abril de 1974 "Grândola, Vila Morena", despercebida à censura do Estado Novo, entra, em forma de senha, pelos ouvidos dos militares, transmitida pela Rádio Renascença, emissora católica.
A canção viveu várias vidas, várias interpretações, ganhou força de intervenção e, na aproximação aos 50 anos da Revolução dos Cravos decidiu dar mais um passo na imortalidade do som e da mensagem nele contido.
Os registos sonoros originais da senha do 25 de abril transmitida pela Renascença, no Programa “Limite”, que inclui a canção “Grândola, Vila Morena”, vinte e cinco minutos depois da meia-noite de 25 de abril de 1974 e a interpretação da música no Primeiro Encontro da Canção Portuguesa, no Coliseu de Lisboa, em 29 de março de 74, foram propostos a Património Fonográfico Nacional.
“As fitas vão ser classificadas pela importância histórica que têm”
“É a primeira proposta de classificação fonográfica em Portugal”, disse ao SAPO24 Ana Paula Amendoeira, diretora Regional de Cultura do Alentejo, à margem da apresentação do programa das comemorações dos 50 anos do 25 de abril do município de Grândola que decorreu na Casa do Alentejo, em Lisboa.
A proposta foi entregue na tarde de quarta-feira na Direção Geral do Património Cultural (DGPC), no Palácio da Ajuda, Lisboa. “Senha da liberdade”, foi o título escolhido para o dossier entregue, adiantou a responsável.
“Preparamos o processo de proposta de classificação destes bens móveis em protocolo com o município de Grândola e é uma iniciativa dos 50 anos do 25 de abril, em Grândola”, explicou Ana Paula Amendoeira. Espera-se agora uma resposta positiva antes da efeméride do dia da Revolução dos Cravos.
Tudo começou no alvorecer de 2023. “Começámos a trabalhar no princípio deste ano e pedimos a colaboração do Arquivo Nacional do Som”. Tudo feito “dentro do quadro legal de classificação de património móvel previsto nos decretos regulamentares da Lei do Património Cultural”, esclareceu.
“Propor a classificação de bens móveis e físicos é uma materialidade. As fitas vão ser classificadas pela importância histórica que têm. É importante a sua proteção. A digitalização, que já está salvaguardada, reduz o desgaste, podendo o som ser ouvido vezes sem conta sem manusearmos as fitas”, explicou ainda.
“Foi necessário identificar as fitas magnéticas. Duas. Foram oferecidas pelo técnico de som, Manuel Tomás, que as gravou na altura. Em 2001 doou à Fundação Mário Soares e em 2014, juntamente com o José Videira, o outro técnico de som que gravou o Primeiro Encontro, entregou o registo à RTP”, prossegue.
Entre as três bobinas, duas relativas ao Primeiro Encontro da Canção Portuguesa (BASF Super LH LPR 35) e a outra, registo magnético que seria usado no programa da Rádio Renascença (BASF Super LH 35), uma faixa retirada do Coliseu dos Recreios fixou-se na memória de Ana Paula Amendoeira.
“Há o registo todo e aos 70 minutos, quando se canta o Grândola, é o momento apoteótico”, adjetivou. “Grândola foi a canção que encerrou em apoteose emotiva esse concerto. Estavam PIDES na sala, mas a canção não estava indexada pela censura, não estava proibida e foi possível cantar”, relembrou.
“Terminou com todas as pessoas a cantarem. Houve uma grande apropriação do público, quer do ponto vista emocional, quer como reflexo do momento que já se estava a viver no país. Essa apropriação da (música) Grândola no encontro acaba por, em certa medida, ter um papel na razão da escolha da mesma para senha”, anotou.
Para Ana Paula Amendoeira “faz sentido” ser o Alentejo a propor esta classificação de interesse nacional. “O Alentejo tem uma ligação grande com o 25 de abril de 74. Foi a senha que Salgueiro Maia estava à espera de ouvir e marchar sobre Lisboa”, evidenciou.
Depois de ser classificado pelo Estado português, o município grandolense e a Direção de Cultura do Alentejo querem apresentar uma proposta para o reconhecimento dos registos na categoria “Memória do mundo”, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). “Um está ligado ao outro. É através de uma canção e através da rádio que acaba por ter um papel como documento importante para a memória do mundo”, adiantou.
“Os ratos de biblioteca encontraram quando toda a gente dizia que tinham desaparecido”
António Figueira Mendes, presidente da Câmara Municipal de Grândola, destacou duas pessoas determinantes para a boa execução da ideia. “A Diretora de Cultura (Ana Paula Amendoeira) e o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (Pedro Abrunhosa)”, assinalou ao SAPO24, no dia da apresentação da carregada agenda cultural do concelho alentejano, que se estende ao longo de 2024. E contou como tudo se processou: “fomos construindo o trabalho de grande pesquisa à procura de documentos e os ratos de biblioteca encontraram quando toda a gente dizia que tinham desaparecido”, sorriu.
Pensada, inicialmente, para somente ser incluída nas comemorações dos 50 anos de abril locais, “percebemos que isto era de um nível superior ao do concelho”, reconheceu. “Queremos transformar os três registos em património nacional porque corríamos o risco de se perderem”, atirou.
“Grândola é um nome. É um símbolo de esperança. Celebrar a data é um imperativo. A data mais importante da história coletiva contemporânea”, finalizou António Figueira Mendes que deixou ainda uma salvaguarda. “A proposta pode ser revista”.
“A senha tem dois aspetos. O técnico militar e o afetivo”
Carlos de Almada Contreiras, capitão de Mar e Guerra e militar de abril, reformado, na qualidade de representante da Associação 25 de abril, deixou os detalhes da proposta e focou-se no processo de transformação do poema-canção em senha da revolução.
Responsável pela escolha de “Grândola, Vila Morena”, escolha longe de ser decidida num plenário das Forças Armadas, Carlos Contreiras assumiu o ónus “debaixo do elevador de Santa Justa”, em concertação com “o jornalista Álvaro Guerra”.
A eterna música não foi a primeira escolha, como é sobejamente sabido. “Venham Mais Cinco” foi a primeira a apresentar-se no cardápio musical. Visada pelo Lápis Azul da censura do Estado Novo, ficaria na gaveta.
A Rádio Renascença também não foi o primeiro amor dos militares. E antes da senha da vila alentejana, houve uma pré-senha, “E depois do adeus”, de Paulo de Carvalho, escutada pela Emissores Associados de Lisboa.
“A ideia era uma rádio que chegasse ao país todo. Inicialmente tentou-se pela Emissora Nacional, mas depois lembramo-nos do programa “Limite”, que transmitia para todo o país, na Rádio Renascença, a emitir a partir da meia-noite”.
Envolto numa dose de secretismo, “o locutor, o Leite Vasconcelos, não sabia bem o que estava a fazer. Disse a primeira estrofe do disco”, recordou. O sinal viria a ser “escutado em todo o país, mas na Parede não ouvi o primeiro sinal (Depois do Adeus) ... mas isso é uma discussão para militares”, confessou.
Carlos de Almada Contreiras, o homem que pôs a música de Zeca Afonso no mapa-mundo político, entrou na explicação mais técnica. “A senha tem dois aspetos. O técnico-militar e o afetivo”, constatou. No primeiro, é claro. “Além do planeamento da operação, era necessário avisar todas as unidades que aquilo que estava programado era mesmo para efetuar”, confessou. “Ao receber o sinal, as pessoas envolvidas sabiam que tinham entrado em ponto de não retorno”, esclareceu ao SAPO24.
“Se tivesse sido feito um briefing de toda a avaliação técnica da operação eu deveria ser punido... A música escolhida para sinal deveria ter sido mais inócua, mas na hora de decidir sou alentejano e deu-me para aí”, gracejou este Capitão-de-Mar-e-Guerra nascido em Aljustrel, em 1941.
“Quem nasceu na liberdade dificilmente perceberá o que é viver sem ela”
“Gravar a carta era para mim mais uma. Quando passou a senha, deixou de ser só mais uma e passou a ser uma grande responsabilidade”, disse Francisco Fanhais, de pé e microfone na mão, para a plateia presente na Casa do Alentejo.
Cantor de intervenção e antigo sacerdote, fez parte do coro da eterna música de Zeca Afonso, gravada em 1971, em Paris, incluída no álbum "Cantigas de Maio".
“Hoje sou coerente com essa responsabilidade. Há que difundir na malta nova porque quem nasceu na liberdade dificilmente perceberá o que é viver sem ela”, frisou.
Uma responsabilidade que passa por contribuir "para que o Zeca não morra no coração da malta nova”, repetiu antes de, juntamente com Ana Paula Amendoeira, diretora regional de Cultura do Alentejo, António Figueira Mendes, edil de Grândola, Carlos de Almada Contreiras, Comandante da Marinha e Agir, filho de Paulo de Carvalho, cantarem, de braço dado, à imagem de um grupo coral alentejano, o poema-canção, senha e desejado registo fonográfico, “Grândola, Vila Morena”. Um momento para ver e ouvir aqui.
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