No seu novo livro, "A Herança Nazi", aponta uma “onda de normalização” que persiste há anos no modo como se lida com a barbárie nazi, na qual se nega a singularidade dos crimes do regime. Com o desaparecimento das testemunhas oculares, o que aconteceu vai sendo cada vez mais apagado da memória coletiva.

Sim, muitos alemães querem hoje pôr um ponto final na questão. Não querem, oitenta anos após o fim da guerra, continuar a falar sobre o assunto, nem ser lembrados daquilo que os seus pais e avós vivenciaram, permitiram e apoiaram: uma ditadura nacional-socialista, o delírio de grandeza de Hitler e as suas guerras.

Uma repressão e relativização da barbárie nazi manifesta-se em inúmeras sondagens atuais. O lema: também nós fomos vítimas!

De facto. No meu livro, descrevo com inúmeros exemplos as tentativas fracassadas ou simplesmente inexistentes de perseguir judicialmente os crimes da justiça nazi por parte do sistema judicial da República Federal. Assim, a maioria dos ex-juristas nazis – inclusive os responsáveis por sentenças de morte – pôde continuar as suas carreiras após o fim da guerra. O mesmo aconteceu com as elites dirigentes da economia, da ciência e da administração. Grande parte dos alemães compreendia essa situação – com a justificação frequente de que também eles foram vítimas da guerra, da expulsão e da miséria. Uma realidade difícil de suportar. Um povo em fuga do seu passado. Após a guerra, ninguém queria carregar o fardo da injustiça herdada – e quase ninguém teve de o carregar. O primeiro chanceler da República Federal, Konrad Adenauer, apoiou os alemães nesta atitude defensiva. Agora, todos eram sobretudo vítimas. Vítimas do tempo, do partido, de Hitler, e por aí fora.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Mudou algo nessa postura?

A partir dos anos 70, sobretudo sob o governo social-democrata, começou finalmente um confronto consequente com o período nazi – na política, nas universidades, nas escolas, nos meios de comunicação e no debate público. Enfrentou-se o próprio passado.
Mas ainda hoje, muitos alemães mantêm a distorcida fórmula de que os alemães também foram «vítimas de Hitler», que o Terceiro Reich foi sobretudo obra de um bando de criminosos – e que o povo comum não pode ser responsabilizado de forma generalizada...

Uma variante curiosa, mas frequentemente encontrada, que serve de autojustificação não só a partidos e políticos de direita, mas também a muitos membros da geração atual. O conhecimento sobre as guerras de Hitler, sobre a perseguição e o assassinato de todos os opositores, sobre a singularidade do Holocausto – é assustadoramente escasso. Especialmente entre os jovens.

Existe uma responsabilidade para esta geração jovem?

A questão que permanece é: estará a geração atual, politicamente e moralmente inocente, definitivamente dispensada do confronto com a ditadura nazi e o seu legado? Ou: não começa a responsabilidade das gerações seguintes com a pergunta sobre se querem ou não lembrar-se?

O meu livro entende-se como um apelo contra qualquer forma de banalização ou relativização do passado nazi. O passado nazi não prescreve. Há uma obrigação: a da memória.