Nove unidades de sangue foi a quantidade necessária para manter Rita viva. Tinha vários miomas no útero, perdeu sangue e acabou com uma anemia severa, que nem a medicação foi capaz de debelar. A notícia chegou quando foi ao hospital e teve de ficar internada.
"O médico disse-me que precisava de sangue, fiquei assustadíssima. Depois, explicou-me que precisava de uma intervenção cirúrgica, mas que para fazer a operação teria primeiro de tratar a anemia", conta.
E foi aí que tudo mudou, quando familiares, amigos e colegas de trabalho se voluntariaram para dar sangue. "Um verdadeiro ato de amor. Só quem passa por isso, pela necessidade de receber sangue para salvar a vida, percebe a importância de dar sangue".
Vários dias de internamento e diversas transfusões de sangue depois, chegou finalmente o dia da cirurgia, que "correu muito bem". Rita está hoje completamente recuperada e do susto restam apenas as cicatrizes, que "marcam no corpo o amor à vida".
Há 376.653 dadores de sangue inscritos em Portugal, mas em 2023 foram 205.355 os dadores efetivos, quase 33 mil deram sangue pela primeira vez, segundo o Relatório de Atividade Transfusional e Sistema Português de Hemovigilância mais recente. Olhando para os últimos dez anos, o número de dadores e de dádivas continua a ser inferior a 2014.
"Temos menos dadores do que gostaríamos. Lisboa é o maior consumidor, mas está longe de ser o maior contribuinte. O norte e centro tem mais dadores do que o sul - Douro e Minho, Porto, Aveiro até Leiria são os grandes fornecedores do país -, a província tem mais dadores do que as grandes cidades, onde não há tanto espírito gregário. E há duas alturas do ano muito difíceis, Natal e Ano Novo", afirma o diretor do Serviço de Sangue do Hospital de Santa Maria, Álvaro Beleza.
18 anos: votar, tirar a carta e condução e... dar sangue
A diminuição do número de dádivas tem várias causas, a começar pelo envelhecimento da população de dadores, com um aumento proporcional nos grupos etários entre os 45 e os 65 anos e mais de 65 anos. Por outro lado, tem vindo a aumentar a suspensão temporária de dadores associada a viagens para locais com risco geográfico. Ainda, registou-se um aumento do risco residual para Vírus da Hepatite B e C (VHB e VHC) bem como para Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH).
Vistas as coisas pelo lado positivo, "há uma evolução extraordinária nesta matéria e hoje há mais alternativas à transfusão de sangue", diz Álvaro Beleza. Ainda assim, "há situações em que não existe alternativa". Santa Maria faz cerca 17 mil transfusões, mas há hospitais que fazem muito mais do que isso.
"É preciso criar o hábito de dar sangue", diz o médico, e lembra que no "Reino Unido, por exemplo, dar sangue a partir dos 18 anos é tão importante para os jovens como tirar a carta de condução ou votar". Hábitos que ficaram da Segunda Guerra Mundial.
Em Portugal, existe uma rede de colheita de sangue e o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (https://ipst.pt/index.php/pt/) tem uma rede de brigadas de recolha que se estende por empresas e paróquias. Mas é preciso mais. Uma dádiva pode salvar até três vidas.
João Pedro tem essa consciência. Aos 12 anos teve uma apendicite aguda, a principal causa de cirurgia abdominal urgente em idade pediátrica. A inflamação do revestimento interno do apêndice, situado na primeira porção do intestino grosso, no lado direito do abdómen, é relativamente comum, mas os sintomas podem ser confundidos com diversos quadros clínicos e atrasar o diagnóstico. Se não for tratada, as complicações podem ser graves, da perfuração do apêndice à septicémia (infeção generalizada).
Foi o que aconteceu a João Pedro, que, por isso, teve de receber uma transfusão de sangue. "Além das dores, acho que só tive consciência de que podia ter morrido mais tarde. Da altura, recordo a agitação, a aflição de todos à minha volta, primeiro, e o alívio, depois. Mas nunca mais me esqueci", relata. Ironia do destino, não pode dar sangue, o que veio a descobrir mais de duas décadas depois.
Marcar a diferença entre a vida e a morte
"Hoje seria impossível uma situação como a do caso dos hemofílicos", garante Álvaro Beleza. O caso dos hemofílicos, que levou à demissão da ministra da Saúde de então, Leonor Beleza, aconteceu nos anos 80, quando doses de um derivado de plasma (Factor VIII) contaminado com VIH foram administradas em doentes hemofílicos, que acabaram por ficar infetados.
"Hoje são feitas análises a todas as doenças infecciosas conhecidas, a triagem é muito grande", assegura o médico. Além disso, "os serviços de sangue são dos mais auditados, com sistemas obrigatórios de controlo de qualidade e inspeção periódica".
Este é, aliás, um dos motivos por que o diretor do Serviço de Sangue do Santa Maria acredita que todas as dádivas devem ser benévolas. "Pagar a dadores pode atrair quem não queremos, fazer aumentar o número de doenças transmissíveis e comportamentos de risco. Hoje, o problema que se põe é o das doenças emergentes, como os vírus tropicais, caso do vírus do Nilo Ocidental".
Dar e receber sangue é hoje uma prática segura. Para quem recebe pode ser a diferença entre a vida e a morte, para quem dá o tal "ato de amor". Inês é dadora há mais de trinta anos: "Não sei quem vai receber o meu sangue, mas saber que posso estar a ajudar alguém num momento difícil, de enorme vulnerabilidade, é suficiente para me fazer desinstalar. Penso sempre: e se fosse comigo ou com um dos meus?".
Ninguém sabe quando será a próxima catástrofe e os acidentes surgem sem aviso, às vezes naquelas que pensamos ser as alturas mais felizes da vida, como dar luz. O parto do segundo filho de Jéssica transformou-se num pesadelo da noite para o dia. Acabou tudo bem, mas a história seria outras se um grupo de dadores não se tivesse mobilizado. Paulo não foi vacinado em bebé e aos 19 anos contraiu meningite meningocócica, uma infeção bacteriana aguda, rapidamente fatal. Esteve em coma induzido diversas semanas depois de ser operado, precisou de várias transfusões, sobreviveu.
Nenhum dos dois, Jéssica ou Paulo, conhece os seus dadores, mas ambos se sentem "eternamente gratos". Ela tornou-se dadora e espera que a sua história inspire outros. Ele, por motivos de saúde, não pode dar sangue, mas tenta convencer todos à sua volta a fazê-lo. "É trocar nada por tudo", diz.
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