As histórias repetem-se nas redes sociais. Há queixas de todos os tipos: uns não conseguem sair de casa dos pais, outros até saíram mas tiveram de regressar. Há casais separados que vivem juntos porque é impossível sobreviverem afastados na capital. Mais à frente na narrativa, culpam-se os estrangeiros que têm mais dinheiro e, atraídos pelo sol de Lisboa, ocupam as casas que podiam continuar em mão portuguesa.
Para os que conseguem chegar a ser inquilinos, as notícias sobre o aumento do preço das rendas obrigada a fazer contas à vida e as críticas ao governo — que nada faz, dizem — são muitas.
Mas também os proprietários apontam o dedo: as prioridades de quem faz as leis não podem ser enviesadas e as duas partes dos interessados têm de ser ouvidas.
Entre quem tem casa e quem procura casa para arrendar, uma coisa é certa: o dia a dia na capital está cada vez mais difícil.
"O mercado de arrendamento da cidade de Lisboa nunca foi barato"
A oferta e uma questão de (des)confiança
António Machado, secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL), explica ao SAPO24 que os aumentos de rendas são fruto de um mesmo fenómeno: "a oferta cada vez mais insuficiente" de habitações. "Faz parte das políticas do mercado. Quanto menos produto existe — e o facto de ser necessário —, mais acaba por encarecer, já que a procura é intensa".
"O que se passa é pura especulação e uma certa ganância e oportunismo por parte da propriedade"
Contudo, olhando para a capital, António defende que talvez não existam assim tantas diferenças ao longo dos anos. "O mercado de arrendamento da cidade de Lisboa nunca foi barato. Se recuarmos 50, 60, 70 anos e perguntarmos a famílias ou parentes, verificamos que as rendas que se pediam correspondiam, em termos médios, ao salário de uma pessoa. Nunca foi nada barato. Só que havia mais pessoas nas famílias, contribuíam para o saco e a coisa lá ia andando", justifica.
"Há uma grande desconfiança por parte dos senhorios em arrendar as casas"
Agora, as famílias são mais pequenas. "São duas ou três pessoas ou só uma e as coisas complicam-se nesse plano". Mas não é só isso. "O que se passa é pura especulação e uma certa ganância e oportunismo por parte da propriedade, que se aproveita dessa circunstância da falta de oferta", aponta o secretário-geral da AIL.
Já para Luís Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), "o que se está a passar é pura e simplesmente uma grande desconfiança por parte dos senhorios em arrendar as casas e, em consequência disso, uma grande escassez de oferta de casas, o que faz subir as rendas".
"Houve medidas que foram tomadas pelo governo e são totalmente contraproducentes, uma delas foi por exemplo a limitação da atualização das rendas, algo que não tinha precedentes desde 1985, ou seja, já houve períodos de inflação muito superiores e nunca tinha havido um travão destes à atualização das rendas. E isso levou a que a maior parte dos proprietários, ou grande parte deles pelo menos, tenha ficado com muito receio de ser sujeito a um congelamento de rendas", diz também ao SAPO24.
Assim, existindo "uma inflação que se aproxima dos 9%, quando a atualização das rendas estava em 5,42% e ficou limitada a atualização a 2%, isso leva a que a maior parte dos senhorios fique convencido que está a perder dinheiro se arrendar o imóvel".
Feitas as contas, "a oferta retrai-se e as rendas sobem em consequência", com as rendas de contratos já celebrados a terem um travão, "mas as rendas disparam nos novos contratos e gera-se uma grande incerteza de mercado".
"Nós não temos uma legislação como existe noutros lados"
Aumentos de 2%? Nem sempre, mas há muito em causa
Em declarações à Lusa, Romão Lavadinho, presidente da AIL, afirmava, no início do ano, que recebeu queixas de arrendatários que foram confrontados pelos senhorios com aumentos de renda superiores ao limite de 2% imposto pelo governo.
"Tem havido alguns proprietários que continuaram a pedir aquilo que é o valor da inflação [na atualização das rendas] e não os 2%”, salientou, embora o número de casos não tenha sido muito significativo.
António Machado explica a questão destes aumentos. "As rendas cujos contratos celebrados ainda estejam em vigor só podem ser atualizadas com o coeficiente de 2%. Outra coisa são os contratos em que determinaram que haja negociação e aí é possível passar de 100 para 200 ou o que for. Não há nenhum limite, não há um travão para estas coisas", começa por dizer.
"Nós não temos uma legislação como existe noutros lados, em que acaba um contrato, começa outro e a renda desse só pode ser pedida de acordo com determinado coeficiente. E cá isso não existe, o mercado é livre, liberal, liberalizado. Cada um pede o que quer e bem entende, com exageros completos de quererem uma devassa imensa para os inquilinos, a pedir uma certa documentação, desde os IRS, contratos de trabalho, registos criminais e em alguns casos até já pedem garantias bancárias e fiadores. É um exagero completo", atira.
"As rendas novas, dos novos contratos, realmente estão a aumentar bastante"
Para o secretário-geral da AIL, é a "falta de regulação do mercado e de regras claras do funcionamento do mercado que leva a estas barbaridades e a estas situações".
Do lado dos proprietários, Luís Menezes Leitão recorda que, apesar das críticas que vão surgindo nas redes sociais, relativamente ao aumento das rendas, com casos em que são denunciados aumentos superiores a 500€, é preciso considerar que existem "vários universos nas rendas em Lisboa".
"Se estivermos a falar das rendas antigas, que ainda são a grande parte, estas estão completamente congeladas, não podem subir. Só agora é que se fala num período de transição", começa por dizer.
"Mas se se falar de rendas novas, dos novos contratos, realmente estão a aumentar bastante. Não estou a ver que seja num montante desses, a menos que seja de uma casa de luxo", garante. Por sua vez, "nas rendas que já estão fixadas, essas estão com o travão de 2%".
Porém, os números não deixam grande margem para dúvidas: segundo a plataforma Casafari, as rendas na capital aumentaram em 36,9% no quarto trimestre de 2022, o que significa um valor de 21 euros por metro quadrado. Ou seja, Lisboa é uma das três cidades mais caras da Europa.
Há mesmo um mercado liberalizado no país?
Sobre as críticas aos documentos pedidos para celebrar contratos, o presidente da ALP afirma que tal acaba por ser uma garantia para os senhorios, já que ainda faz falta uma liberalização do mercado, ao contrário do que defendem os inquilinos. Mas vejamos o que isto quer dizer.
No fundo, esta liberalização "significa prazos mais curtos para os contratos", diz Luís Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários. "Hoje em dia, devido às regras que foram estabelecidas em 2019, um senhorio, se quiser arrendar uma casa, não o pode fazer na habitação por menos de três anos e no comércio por menos de cinco. O que significa logo que as pessoas retraem-se em arrendar por um prazo tão dilatado".
"Não temos confiança para arrendar a pessoas que tenham mais dificuldades em pagar as rendas, porque não estão a dar garantias"
"Se o prazo fosse reduzido para um ano, por exemplo, era mais fácil conseguir um arrendamento e depois o prazo ia-se renovando, era assim que se estabelecia. Hoje em dia, nesta sociedade em que os compromissos são de certa forma menos duradouros, o que sucede é que dizer a um senhorio 'quando arrenda uma casa tem de ficar três anos sem ela' coloca logo uma hesitação relativamente ao arrendamento", explica.
Considerando que "a lei anterior não funcionava assim", isto "retrai a oferta". E exemplifica a situação. "Quando se diz que agora com as fianças as pessoas ficam limitadas a duas rendas, então nós não temos confiança para arrendar a pessoas que tenham mais dificuldades em pagar as rendas, porque não estão a dar garantias".
"Um jovem pode ter dificuldade em arranjar os rendimentos e até pode achar que não tem grandes condições para pagar a renda. Se arranjar um fiador, aí já é mais fácil conseguir a renda. Agora, como surgiu uma lei que diz que o fiador não garante mais de duas rendas, e se o contrato de arrendamento dura três anos, isso naturalmente coloca dificuldades ao arrendamento", acrescenta.
Segundo os proprietários, é preciso olhar para o que aconteceu no passado. "O que pode ser feito neste momento é retornar-se a uma liberalização do arrendamento como em 2012 e que teve efeitos muito positivos relativamente à oferta".
"Se uma parte tem todos os direitos e a outra não tem direitos nenhuns, porquê que havemos de entrar nesse negócio?"
"Quando o governo passou a condicionar as rendas, a partir de 2015, a oferta de arrendamento das casas voltou a desaparecer. Com estes avanços e recuos, a única solução, a curto prazo, é estabelecer uma liberalização do arrendamento e convencer os proprietários de que não há travões de rendas, porque se houver as pessoas deixam de arrendar", diz Luís Menezes Leitão.
Assim, o presidente da ALP frisa que "tudo isto são medidas que estão a ser tomadas e a ser completamente desastrosas para a oferta do arrendamento".
Questionado quanto à dificuldade que estas regras poderiam causar a quem quer arrendar casa, Menezes Leitão adianta que não é possível "ter uma lei que só favorece uma das partes", já que "depois a outra parte não quer celebrar o contrato". "
Se o contrato é pernicioso, enfim. Se uma parte tem todos os direitos e a outra não tem direitos nenhuns, porquê que havemos de entrar nesse negócio? É essa a questão", atira. Mas a situação não parece fácil para ninguém.
Quem casa (ou estuda) quer casa... mas não há
Além do problema das rendas e das regras aplicadas ou por aplicar, a questão é: o que aconteceu às casas que podiam ser arrendadas? António Machado, secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL), traça os vários cenários possíveis. "Uma parte dela foi desviada para o turismo, uma outra foi desviada para os residentes não habituais, os estrangeiros endinheirados, com rendimentos e reformas superiores aos nossos, e também para aquele programa dos vistos gold, para a lavagem de dinheiro, numa boa parte".
No meio disto tudo, há também, defende, "uma ausência de política pública do ponto de vista habitacional, que anda para aí a patinar há um conjunto de anos", e que deveria "ter em conta a regulação do mercado".
"Os milhares de quartos que existiam para estudantes desapareceram todos da oferta, foram desviados para os imigrantes"
"Haverá agora o PRR que é preciso gastar rapidamente, há um programa de construção de alguma habitação pública, que não vai resolver o grande problema, não vai tapar o buraco", acrescenta.
Nesse sentido, António explica que "a regulação do mercado passa por fazer registo daquilo que existe, que não há registos nenhuns", bem como por uma fiscalização, "ver o que se passa e o que não se passa, porque muito do arrendamento não está classificado, é aquilo a que se chama informal/clandestino".
"Aliás, o espelho disso foi o desaparecimento repentino dos quartos para estudantes. Os milhares de quartos que existiam para esse fim desapareceram todos da oferta, foram desviados para os imigrantes", exemplifica. "Enquanto num quarto estavam um ou dois estudantes, os imigrantes estão lá ao monte e, naturalmente, pagam mais e não precisam de recibo nenhum para nada, porque o SEF não tem o que fazer ao recibo e os estudantes precisam por causa das bolsas e etc. Temos aqui uma clandestinidade e não há fiscalização nenhuma", denuncia.
"Não há casas com preços compatíveis com os rendimentos"
Além dos estudantes, olhando para os jovens que pretendem deixar de viver com os pais, o panorama é o habitual nos últimos anos: são "os últimos a sair de casa e por várias razões", diz António Machado. "Não há casas para vender ou arrendar, independentemente do preço. Também não há casas com preços compatíveis com os rendimentos. E ainda temos a precariedade laboral", enumera.
"Os jovens são vítimas de todo este processo inquinado que estamos a viver, mas também não é novidade. Isto não é novo, é apenas a continuidade da situação, só que as coisas hoje estão mais visíveis. E ainda bem", acrescenta.
Também os proprietários reconhecem este problema para os jovens. "Antigamente os jovens só saíam de casa quando casavam. Hoje em dia muitos querem sair não para casarem, mas para viver sozinhos. E isso implica o dobro das casas, é preciso ter isso presente. No fundo, a estrutura de uma casa para uma pessoa sozinha não é a mesma que está prevista para um casal como era até agora. Isso é uma nova realidade que existe na nova geração e que também implica aumentar a habitação", recorda Menezes Leitão.
Por outro lado, "o que acontece é que o país acaba por ainda ter salários muito baixos", o que cria uma certa competição com quem vem do exterior, como é o caso dos nómadas digitais. "Se entramos numa situação de estar a atrair estrangeiros que têm mais capacidade económica, com certeza que têm mais capacidade de suportar as rendas", começa por dizer.
"Se se fizer uma oferta para essas pessoas [morarem no país], naturalmente terão de ter casas. Havendo uma oferta para um setor, naturalmente pode reduzir para outro setor. Isso pode acontecer, mas acaba por ser uma opção que resulta de uma política para atrair certo tipo de pessoas para a habitação. Não podemos querer uma coisa e depois não querer os seus efeitos", diz o presidente da ALP.
A questão da habitação pública. O que falta em Portugal?
Numa situação em que as críticas surgem de todos os lados, para os proprietários a atual política de habitação "está totalmente errada desde o início".
"O que se está a verificar é que as pessoas estão convencidas de que é preciso apostar na habitação pública. O problema é que a habitação pública no nosso país é cerca de 2%. Ora, quando temos 98% de oferta privada e 2% de habitação pública, não será privilegiando a habitação pública que conseguimos resolver o problema num horizonte imediato. Mesmo que suba para 5%, que é o objetivo, continuará a deixar a situação completamente fora", frisa o presidente da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP).
"Se houver muitas casas no mercado, as rendas caem imediatamente"
Por isso, defende que a solução passa por "facilitar a oferta de arrendamento na habitação privada e para isso é preciso haver confiança".
"Se houver muitas casas no mercado, as rendas caem imediatamente. Agora se não houver confiança na oferta privada, o que se passa é que essa oferta baixa e as rendas sobem. E não me parece, com os números que existem, que uma habitação pública se consiga resolver o problema. Seria preciso esperar muitos e muitos anos. Por isso parece-nos que esta política ideológica de dizer que vamos para a habitação pública e vamos continuar a penalizar a habitação privada está a dar esse resultado", afirma ainda Luís Menezes Leitão.
Do lado dos inquilinos, o grande pedido é que existam medidas de controlo de situações que se tornam incomportáveis para quem paga rendas. "O governo assiste a tudo isto impávido e sereno e de alguma maneira é cúmplice porque não intervém a tempo e horas, apesar de andarmos há anos a reclamar que é preciso haver regulação do mercado, que devia haver registos e fiscalização e uma fiscalidade diferente para as rendas", frisa o secretário-geral da AIL.
"Ninguém quer que a propriedade não tenha o seu rendimento certo e seguro"
"É preciso uma fiscalidade tipo IRS, escalonada e progressiva, por exemplo com base no preço por metro quadrado. Uma renda com um metro quadrado muito baixo pode até estar isenta de imposto e uma renda com um metro quadrado bastante elevado tem de pagar um imposto alto. Aqueles que ganham menos pagam menos ou não pagam, e aqueles que ganham muito pagam mais. Uma coisa deste género resolve em parte o problema", explica.
Contudo, adianta, "ninguém quer que a propriedade não tenha o seu rendimento certo e seguro. Mas quer-se que tenha um rendimento compatível com os rendimentos das famílias".
"Da maneira como isto está é completamente desequilibrado. Ou há uma intervenção pública do governo em termos legislativos ou as coisas não se resolvem. Este, o anterior e se calhar o próximo governo, pelo andar da carruagem, ao não intervir, acaba por ser cúmplice nesta situação", acentua António Machado, secretário-geral da AIL.
Agora, com a saída de Pedro Nuno Santos do governo, António Costa optou por separar as pastas das Infraestruturas e da Habitação, entregando a primeira a João Galamba, que deixou o cargo de secretário de Estado e do Ambiente, e a segunda a Marina Gonçalves, que assim passou de secretária de Estado a ministra da Habitação.
Com 34 anos, será que a nova ministra vai ter uma outra perspetiva sobre a habitação no país? Para o secretário-geral da AIL, o mais importante é "o facto de a questão da habitação ter subido a ministério", já que assim pode ser que "tenha um pouco mais de força política" e Marina Gonçalves possa ajudar a "adotar e implementar as políticas necessárias mais gerais e que não se fiquem apenas pela aplicação e por gastar o dinheiro do PRR".
"Os travões só têm interesse se houver uma política geral. O mercado tem as suas regras, mas se as medidas não entroncam nas regras, as coisas depois não funcionam"
"Já solicitámos uma audiência à senhora ministra e iremos apresentar ou reapresentar algumas propostas e ideias para ver se isto anda para a frente, se melhora. É um pouco difícil, mas se não tentarmos não conseguimos", avança.
"São situações completamente escabrosas e desnecessárias de abuso de poder, com a complacência e cumplicidade do governo, que sabe tudo isto e não intervém. Vamos ver se a senhora ministra agora tem mais atenção nestes detalhes e age".
"Os travões só têm interesse se houver uma política geral. O mercado tem as suas regras, mas se as medidas não entroncam nas regras, as coisas depois não funcionam. Isto é um todo, normalmente as medidas avulsas só servem para atrapalhar", remata.
"É preciso uma inversão radical nesta política de habitação"
Para os proprietários, a visão dos próximos anos também pode ainda ter muitas nuances. "É difícil dizer qual é o futuro se não dissermos qual é a política. A regra que existe é que qualquer decisão política tem consequências e, portanto, as consequências podem ser boas ou podem ser más. Se se insistir nesta política, já se percebeu que tem falhado completamente", acentua.
Neste momento, acrescenta, "os proprietários têm muita dificuldade em qualquer parceria com o estado, porque estão muito habituados a que o estado coloque em causa os seus direitos".
"Para a situação de Lisboa mudar, achamos que é preciso uma inversão radical nesta política de habitação e adotar uma política de flexibilização. É isso que vai permitir que as coisas melhorem", evidencia. Se voltar a haver uma legislação que seja amiga dos proprietários e que lhes permita colocar as casas no mercado sem receio do que possa acontecer em consequência disso, aí estamos convencidos que haverá uma oferta enorme de arrendamento e que as rendas cairão".
Resta então esperar para ver quais as medidas que vão surgir nos próximos tempos.
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