O Governo anunciou o tão esperado pacote de medidas para habitação. O programa Mais Habitação está em discussão pública desde ontem e as diferentes ideias têm-se feito ouvir. Há duas medidas particulares, que se prendem com a gestão municipal, e que estão a criar controvérsia.

A ideia do Governo era, por um lado, simplificar licenciamentos municipais e penalizar atrasos na emissão de pareceres. Assim, os projetos de arquitetura passariam a ser licenciados apenas com base no termo de responsabilidade dos projetistas, e as entidades públicas seriam penalizadas no caso de atrasos na emissão de pareceres. Por outro lado, e com o objetivo de criar mais fogos de habitação, terrenos e imóveis de comércio e serviços poder-se-iam tornar de habitação sem alteração de planos de ordenamento do território ou licenças de utilização.

Miguel Prata Roque, constitucionalista e Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, reconhece vantagens na medida. Ao SAPO24, refere que “o que há eventualmente é depois o adiar da verificação.” Salienta que é preciso separar as águas, “uma coisa é o projeto, outra coisa é saber se a execução da obra respeita esse mesmo projeto apresentado”. O constitucionalista lembra que há uma morosidade nos processos que pode ser ultrapassada. “Os serviços podem protelar depois para uma fiscalização a posteriori da Câmara Municipal se os requisitos da lei, e dos regulamentos municipais, estão a ser cumpridos. Em teoria, o que acontece é que primeiro são apresentados os projetos, as plantas de execução da obra, e essa validação é toda feita antes do início da obra. Por isso é que os alvarás de construção demoram tanto tempo.”

Levanta, contudo, uma preocupação acrescentando que se esta medida entrar em vigor, quem poderá correr riscos é o proprietário por estar a “construir a obra com um alvará, digamos assim, provisório, fundamentado só no projetista.” Miguel Prata Roque teme a possibilidade de que na fiscalização, no decurso da obra, se verifique que há algum incumprimento, e que o proprietário seja obrigado a reconstruir o que está mal a expensas próprias. Mas, no cômputo geral, acredita ser “uma medida relativamente sensata, porque um projetista é um profissional liberal, um arquiteto ou um engenheiro que está credenciado por uma ordem profissional. As ordens profissionais são associações públicas que fiscalizam o cumprimento das regras de deontologia e de boa prática e, portanto, a partir do momento que um técnico assina essa mesma peça, esse projeto, quer-se crer que tem condições de cumprir a lei, conhece as regras aplicadas ao seu ofício.”

Já Tiago Mota Saraiva, arquiteto e Professor na Faculdade de Arquitetura da Faculdade de Lisboa, tem outra opinião, mas também refere as Ordens Profissionais e questiona se terão sido ouvidas. “São órgãos corporativos, vão querer tudo menos andar atrás dos seus associados a implicar”. O arquiteto e urbanista teme que esta mudança legislativa traga ainda mais dificuldades ao sector.

"Entro em pânico com a história do licenciamento zero. É gravíssimo, eu sofro as pressões das questões urbanísticas. O tempo, o autoritarismo com que as coisas são apreciadas, toda a gente emite pareceres sobre tudo e sobre nada. Sem a mínima responsabilidade, sem a mínima responsabilização pelos tempos que demora, uma parte significativa das autarquias, sobretudo Lisboa, não cumpre nenhum dos prazos. Porque toda a gente sabe que se os promotores, se os projetistas puserem um processo em tribunal, ganham. Mas daqui a dez anos. Jogando com todo este mau funcionamento existe um autoritarismo.”

Embora reconheça e enuncie estes problemas, tem medo que o oposto seja pior, e adivinha um futuro em que os clientes prefiram arquitetos que fazem o que eles desejam, mesmo que não cumpra o PDM. “Depois é assim: ele [o arquiteto que aceite incumprimento] constrói, aquilo vai para tribunal e vamos ver quem é que vai deitar abaixo o edifício, anos e anos à espera. Porque está feito".

O arquiteto e urbanista usa o exemplo de uma tragédia como a da Turquia e questiona se se irão prender arquitetos e engenheiros à posteriori, no caso de construções que não cumpram a lei ruirem. “Sabemos que o sistema não vai funcionar de forma rápida e escorreita. Abdicar da ideia de que o Estado também tem um factor regulador no que se constrói é a loucura. Em todas as profissões há aldrabões e, como é natural, este vai ser o regime para os aldrabões.” Assegura ao SAPO24 que à medida que o primeiro-ministro anunciava o pacote de medidas, pensava que teria de “contratar uma avença com uma sociedade de advogados, o grau de litigância vai ser brutal e a qualidade da construção vai cair, que é o mais aterrorizador” .

Fernando Costa, advogado, tem um passado que o liga à gestão autárquica — foi presidente da Câmara das Caldas da Rainha e vereador da Câmara Municipal de Loures — e também não vê vantagens na medida do licenciamento zero. A experiência fá-lo assegurar que “há uma máfia nas grandes cidades que atrasa projetos para se fazerem à gorjeta. Os presidentes das câmaras (e não só) ficam mais simpáticos quando têm gente a pedir favores. Que não têm de pedir. É uma vergonha ter quadros técnicos a participar em "máfias" organizadas para atrasar projetos. Não faz sentido demorar mais de três meses”, e garante que apenas por isso é que as câmaras não são mais rápidas.

O SAPO24, ouviu ainda Pedro Fernandez Sanchez, constitucionalista, Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e sócio da Sérvulo & Associados. Também o advogado teme o aumento dos crimes urbanísticos no caso de não haver fiscalização. Embora reconheça que há um “atraso insustentável na gestão urbanística dos municípios”, lembra que a falta de meios das autarquias “leva a um atraso muito penalizador da iniciativa privada e dos empreendimentos privados.”

E, tal como o ex-autarca eleito pelo PSD, também refere a corrupção. “Como sabemos, isso abre a porta para situações de corrupção, porque por vezes é a única forma de fazer avançar um processo rápido. Infelizmente sabemos que isso acontece. Agora, não sei realmente em que termos é que fica garantido o interesse público urbanístico na medida em que não haja uma intervenção inicial efetiva da parte da entidade pública com competência para essa fiscalização”, adianta.

O académico avança uma possível solução, que responde a algumas das preocupações elencadas pelo arquiteto Tiago Mota Saraiva ao SAPO24, que implicam que “as medidas sancionatórias que sejam adotadas para os técnicos que subscrevam essas declarações de responsabilidade sejam muito fortes e sejam dissuasoras de qualquer ilegalidade." Mas reconhece poder ter os seus problemas na aplicabilidade, "aí, também não sei se não cairá no outro extremo, que é os técnicos virem a não subscrever nenhuma declaração de responsabilidade por não suportarem uma consequência dessas.”

À Lusa, Carlos Moedas, Presidente da Câmara de Lisboa, queixa-se da falta de auscultação aos municípios na generalidade do pacote Mais Habitação. “Este tipo de medidas não podem ser como um centralismo do Estado a tentar resolver o problema das pessoas. Temos de resolvê-los ao nível das autarquias, ao nível do que são as cidades hoje, portanto a cidade vai ser o ator para resolver o problema da habitação e essa resolução do problema não pode ser por imposição ou por proibição ou por obrigação.”

Dia 16 de março, o tema voltará à mesa do Conselho de Ministros e só posteriormente a essa aprovação final é que algumas medidas chegarão à Assembleia da República. Até lá, a discussão pública continuará.

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