Maria da Graça Carvalho é deputada no Parlamento Europeu, eleita pelo PSD e presidente do Intergrupo-Investimentos Sustentáveis de Longo Prazo e Indústria Europeia Competitiva. Em entrevista ao SAPO 24 fala dos caminhos da Europa no pós-pandemia da covid-19 e alerta que este novo mundo deverá ser pensado sem a excessiva globalização e que se deverá refletir sobre as excessivas interdependências dos países uns dos outros.
Graça Carvalho foi também relatora de um relatório do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia (fundado em 2008), em conjunto com a eurodeputada Marisa Matias (BE), com o apoio de todas as forças políticas representadas no Parlamento Europeu. Tentou “dar resposta a novas formas energia e crescimento sustentável” e defendeu a necessidade de ser um “programa mais disperso geograficamente”, uma vez que “os países do centro da Europa são os mais beneficiados na distribuição do financiamento (orçamento de 3 mil milhões de euros)”.
A antiga ministra da Ciência, Inovação e Ensino Superior do governo de Durão Barroso e Pedro Santana Lopes antecipa que a Europa não pode estar dependente da importação de bens estratégicos que são feitos em latitudes longínquas e que deve ser dada prioridade à produção dentro das suas fronteiras. Dá o exemplo da produção de máscaras, que pode abrir a porta à indústria têxtil nacional.
A aposta na digitalização deve ser trabalhada para promover a inclusão social, defende, embora reconheça os riscos de desigualdades. Recorda o boom das startups em Portugal depois da crise 2007-2008 e acredita num novo renascimento desse movimento como resposta a uma outra crise que se avizinha.
Diz que todas as áreas onde assentava a estratégia para o crescimento económico na Europa - indústria, equilíbrio ambiental, digitalização e dados -, prioridades antes da covid-19, devem continuar a sê-lo, mas adaptadas às novas circunstâncias. E espera um grande plano, mais ambicioso, da Comissão Europeia e dos Estados-Membros para impor a recuperação económica.
A covid-19 poderá colocar em risco a aposta ambiental, tecnológica e digitalização que estava a ser levada a cabo na Europa como estratégia de crescimento da economia?
Teremos que revisitar prioridades. O caminho que estávamos a seguir era o correto e terá de ser readaptado às circunstâncias do momento. A covid-19 mudou muita coisa, alguma temporariamente. Passando o período de crise, vamos viver de forma diferente. Teremos que repensar a excessiva globalização e interdependência uns dos outros.
A covid-19 não põe em risco o projeto europeu, mas fará repensar e readaptar as prioridades ao momento corrente
A mobilidade dos cidadãos, a livre circulação na UE, um dos pilares do projeto europeu, poderá retrair-se nesse cenário?
Poderá sim, mas será temporário. Gostava que, a médio prazo, não perdêssemos as liberdades de circulação. É importante para nós enquanto pessoas. Mas o que nos fará pensar, é fazer as deslocações essenciais e não as que são acessórias. Se calhar não vamos viajar para ter uma reunião que se pode ter pelo computador e pelos meios digitais. Vamos racionalizar. A covid-19 não põe em risco o projeto europeu, mas fará repensar e readaptar as prioridades ao momento corrente. A curto e, depois ,a médio e longo prazo. Mas todas as áreas, crescimento económico, equilíbrio ambiental, digitalização e dados, tudo o que era prioridade antes da covid-19, continua a ser prioridade absoluta, adaptada às novas circunstâncias.
Durante a pandemia e o confinamento, o investimento na digitalização permitiu que as organizações nacionais e europeias continuassem a funcionar...
Há muitos benefícios na digitalização. Estou otimista que a infraestrutura europeia soube responder à altura, com uma falha aqui e outra ali. A nível do Parlamento Europeu reunimos remotamente: comissões e plenário (700 pessoas). Necessita de ser otimizada com diferenças de país para país, mas valeu a pena o investimento feito nesta área. Conseguimos trabalhar, reunir e falar. O que seria se não conseguíssemos trabalhar remotamente, falar com as nossas famílias, com os idosos e outras grupos isolados, o que seria se não tivéssemos Internet. Seria muito pior.
Não poderá a digitalização criar uma Europa dual? Nesta digitalização “à força”, assistimos, por exemplo, em Portugal, a um país com acesso aos meios digitais e a outro que não está tão ligado?
Espero que não. Temos que ter algum cuidado. A digitalização pode criar desigualdades se não existirem medidas complementares que impeçam esse aumento de desigualdade entre pessoas. A digitalização pode ser um meio de inclusão social ou não. Ou de maior desigualdade. Teremos que trabalhar pela inclusão e não o contrário. A digitalização já provou que, bem utilizada, pode chegar a uma população e dar um conhecimento a pessoas que, de outro modo, não teriam acesso a esse conhecimento. Muito mudou no mundo por causa disso. Países que eram ditaduras tiveram uma grande abertura devido ao acesso à informação, à internet. Muito do que se passou nesses países, nos últimos 10 a 15 anos, mudou porque jovens e menos jovem começaram a perceber o que se passava no mundo e quiseram mudar. Foi o lado bom da digitalização. O acesso ao conhecimento que tem que ser preservado, e é importante que chegue a todos.
A digitalização pode ser um meio de inclusão social ou não. Ou de maior desigualdade. Teremos que trabalhar pela inclusão e não o contrário
A prioridade na digitalização é para manter?
No orçamento europeu, no plano recuperação económica, há essa prioridade de fazer chegar a todos a digitalização. O acesso à internet a todo o território europeu e às pessoas para que utilizem o acesso à informação, instrumentos para comunicarem e terem o mínimo de bases digitais. Infraestruturas para acesso e competência básica para utilizar o acesso à informação são dois pontos essenciais para não deixar ninguém para trás. Se isso acontecer, estamos a dar grandes oportunidades a populações mais discriminadas. Que assim podem fazer os seus negócios online, criarem a suas ideias de negócio de forma mais simples e com menos investimento inicial. Dou-lhe um exemplo. Molenbeek (Bruxelas), é uma zona complicada associada ao terrorismo, atingida pelo desemprego e emigrantes pouco integrados. Ali desenvolveu-se o “projeto Molengeek”. Um espaço (incubadora) baseado nas tecnologias digitais de onde nasceram 400 startups, da moda à contabilidade, que modificou a vivência no bairro. O projeto não necessitou de grande investimento e mostra que a digitalização pode ser um instrumento importantíssimo de integração social.
Falou de startups. Da crise 2007-2008 resultou um boom do empreendedorismo em Portugal. Poderá ser agora uma resposta à vaga de desemprego que se prevê na Europa? Acredita no renascimento desse movimento?
Acredito nesse renascimento. Olhando para Portugal, foi um renascimento impressionante e uma das causas que tenho orgulho de ter tido um pequeno contributo de termos uma juventude e também pessoas menos jovens que são gerações qualificadas. Até na crise se discutia se tínhamos licenciados e doutorados a mais, se calhar em áreas que não estão ligadas à economia, mas foram eles que fizeram a diferença. Jovens com grande preparação e conhecimento, que estudaram, fizeram Erasmus, hábeis para partir para experiências de empreendedorismo de uma forma diferente dos seus pais, que estavam menos preparados.
O investimento na educação, ciência e inovação foi uma aposta ganha?
Ter apostado nas áreas da educação, ciência e inovação ajudou Portugal na recuperação da crise. Uma das conclusões dessa crise é que valeu a pena esse investimento. Dá muito maior confiança para aguentar grandes oscilações e crises como estamos a passar neste momento. E já para não falar no enorme esforço e grande aposta que foi feita, quando estive no governo, nos profissionais de saúde. De criar escolas de medicina, de tecnologias de saúde e enfermagem. Estão a mostrar nesta crise que são um dos pilares de uma sociedade. Temos um conjunto de técnicos de saúde e enfermagem dos melhores do mundo. Face aos critérios de Bolonha, como governante, fui da opinião de nestas áreas da saúde irmos para cursos longos. Agora dá frutos em Portugal e em todo o mundo onde estão os nossos técnicos de saúde.
A Europa deve canalizar mais verbas para a ciência, saúde em detrimento de outras áreas, como o go green?
Vamos ver.…num curto prazo a área de saúde tem de ser prioritária, assim como a investigação científica. Espero que, além das áreas vitais que vão estar no topo dos orçamentos, que se tenha uma visão a médio e longo prazo do crescimento e recuperação económica. E nessa área, crescimento sustentável, digitalização e novas tecnologias, é por aí que a Europa tem de crescer. Não vamos crescer em modelos antiquados, mas sim nestas áreas das tecnologias. Se não o fizer, não vamos ter como alimentar a segurança social e os serviços nacionais de saúde e entramos num ciclo perigoso.
Falta um grande plano, como se viu, por exemplo, nos EUA?
A nível europeu falta definir o plano de recuperação económica. A Comissão Europeia já pôs cá fora medidas da investigação científica, mercado interno, empréstimos aos Estados, mas falta um grande plano de recuperação económica. Tem de ser um plano ambicioso que partilhe riscos a nível dos Estados membros e partilhe riscos de dívidas contraídas por causa do coronavírus e não dívidas passadas.
A Comissão Europeia já pôs cá fora medidas da investigação científica, mercado interno, empréstimos aos Estados, mas falta um grande plano de recuperação económica. Tem de ser plano ambicioso
A resposta da Europa tem sido demorada...
A Europa hesitou no início. As instituições europeias, a Comissão Europeia, que é de grande competência, demorou a arrancar. Já pôs em marcha medidas importantes, como estava a dizer: área de saúde e investigação, mercado interno para harmonização na compra de EPI’s e ventiladores, corredores verdes, proteção ao comércio online e medidas económicas, empréstimos aos Estados para emprego e o Mecanismo de Estabilidade Europeu. Um pacote de 540 mil milhões de euros, empréstimo validado pelo Eurogrupo. Mas falta a medida principal. O Parlamento Europeu pediu medidas de recuperação económica aos diversos setores económicos, turismo, PME, que tem de ser de maior dimensão que estes valores. A Alemanha criou um programa de valor 750 mil milhões de euros, só para a Alemanha. São valores muito elevados. O Parlamento Europeu também propôs que, para o financiamento desse programa, haja uma espécie de mutualização de partilha dos financiamentos. Aprovámos um parágrafo (no PE) a pedir que o programa fosse financiado pelos recovery bonds - emissão de dívida que cabe dentro do orçamento europeu. Uma partilha de dívida a nível europeu.
Depois de muitos anos afastada da agenda política, a indústria estava, antes da pandemia, no centro das prioridades. A estratégia deverá manter-se?
A estratégia europeia foi publicada a 10 e 11 de março, uns dias antes da crise e da Europa e o mundo começarem a fechar-se. É para manter.
Alguns pontos terão de ser repensados, nomeadamente a excessiva dependência da globalização. Terá que ser repensada em áreas estratégicas – saúde, alimentação e água. Os países têm de ter algum controlo nestas cadeias de produção. Não faz sentido que o mundo esteja dependente da China para o fornecimento de máscaras na área da saúde. Nada contra a China. Mas está longe. Embora seja engenheira, não me parece que exista algum segredo tecnológico na produção de uma máscara para estarmos tão dependentes de uma coisa vital de um país que está tão longe. Temos que repensar as áreas estratégicas que os países têm que ser capazes de produzir sem tão grande dependência do exterior. Vamos ter que repensar se não será mais benéfico produzir certos produtos do que importá-los de tão longe. Esta ideia de transporte e custos associados, os que se pagam e custos para o planeta, terá que ser repensada.
Nesse caso, das máscaras, até pode ser uma oportunidade para a indústria têxtil portuguesa, por exemplo?
Exatamente, mas inicialmente criámos problemas porque estávamos muito dependentes da matéria-prima.
A indústria automóvel e aviação europeia estavam no caminho do go green, mas hoje, no imediato, o foco não será a salvação do próprios setores?
As duas indústrias são de grande presença na Europa. Uma Europa que é líder tecnológica e não pode perder essa liderança. Tem sido feito um grande investimento, de décadas, em investigação científica e desenvolvimento de tecnologia e conhecimento, que terá que continuar com tecnologias mais amigas do ambiente e agora com um novo desafio: tecnologias mais amigas da saúde pública. A crise vai passar, mas as ameaças de pandemia global estão sempre presentes. Temos que ter uma forma de contrariar novas pandemias.
Ouvi várias vezes Bill Gates (no PE), em 2011 e 2015, falava de uma crise como esta. E que todos os setores tinham que ser mais pensados para nos proteger de contágios. O setor automóvel e aviação terão de ser repensados. São uma grande prioridade para a Europa. O automóvel é o grande empregador. Produz, quer veículos amigos do ambiente, quer os outros, feito através do desenvolvimento tecnológico. Vão atravessar uma crise que espero temporária e curta, mas vão reinventar-se porque têm uma capacidade tecnológica imensa. E produzir outros produtos, adaptar a novas circunstâncias e continuarem e ser líderes de mercado, porque são setores que produzem muita riqueza para a Europa.
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