Quem o recorda é Maria Teresa Horta, que, juntamente com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, começou a escrever, em maio de 1971, as “Novas Cartas Portuguesas”, partindo das cartas de amor dirigidas a um oficial francês por Mariana Alcoforado.
A obra, que desafiou a ditadura e as convenções sociais vigentes na altura, afirmando o feminismo, contou ainda com a ajuda da escritora Natália Correia, “uma mulher de coragem” e única editora que, na altura, aceitou correr o risco de o publicar, e de Simone de Beauvoir, responsável pela sua divulgação internacional.
Nesse livro, que era um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril, as autoras denunciavam a guerra colonial, as opressões a que as mulheres eram sujeitas, um sistema judicial persecutório, a emigração e a violência fascista.
“Sabíamos das consequências que ia ter, mas nunca nos arrependemos, nenhuma de nós. Foi sempre uma coisa muito divertida, tínhamos palavras que dizíamos no fim e no princípio, que nos divertiam imenso, coisas de mulheres, que escritores sérios não fazem. Três homens a fazer estas coisas? Não. Nós brincávamos. Foi uma coisa maravilhosa”, recorda, entre risos, Maria Teresa Horta, em entrevista à agência Lusa.
“Fazer as novas cartas foi uma coisa que mudou as nossas vidas, foi uma coisa empolgante, divertidíssima. Encontrávamo-nos uma vez por semana, para falarmos, para lermos alto o que tínhamos escrito e discutia-se. Ficaram todos os textos, nenhum foi recusado”, acrescentou.
As reuniões aconteciam em sua casa, “porque era jornalista e era a que ganhava menos dinheiro”, e escreviam o livro a seis mãos, tendo mantido sempre segredo sobre quem escreveu o quê.
"Novas Cartas Portuguesas (ou de como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu dos outros legítimos superiores)", lê-se na abertura do livro, numa designação que congrega títulos anteriores das autoras.
Mas a história desta obra começou antes, com a publicação de “Minha Senhora de Mim”, de Maria Teresa Horta, cujas consequências serviriam de mote para as três escritoras concretizarem o projeto de escreverem um livro juntas.
“Éramos muito amigas as três. Todas as semanas almoçávamos, falávamos praticamente todos os dias. Escrevi ‘Minha Senhora de Mim’, que causou o maior dos burburinhos, como se tivesse qualquer coisa escandalosa. Os fascistas resolveram impor moralidade no país, apareceram e fizeram coisas inconcebíveis, como mandarem dar-me uma tareia na rua. Fui parar ao Hospital de Santa Maria, à noite”.
Naquela noite, tinha saído e viu os faróis de um carro, que a tentou atropelar.
“Foram mais adiante, saíram dois, ficou um ao volante, deitaram-me ao chão e começaram a bater-me e a dizer ‘Isto é para aprenderes a não escreveres como escreves’, que é uma coisa assaz difícil. Bateram-me com a cabeça no chão, na calçada, diziam palavrões, e a única frase completa foi esta, que nunca mais esqueci na minha vida”.
Um vizinho que ia a passar, reconheceu Maria Teresa Horta e, julgando que a estavam a roubar, gritou. “Eles fugiram, porque os fascistas são cobardes”.
No dia seguinte, era dia de almoçarem juntas. Maria Velho da Costa passou pelo jornal e Maria Isabel Barreno estava no restaurante Treze, onde os jornalistas iam todos almoçar, que ficava no Bairro Alto.
Perante o estado de Maria Teresa Horta e o relato que lhe fez do sucedido, Maria Velho da Costa disse: “Uma mulher apanha uma tareia porque escreve um livro? O que é que eles fariam se fossemos três a escrever um livro?”.
Foi aqui que nasceu a ideia, transmitida a Isabel Barreno quando chegaram ao restaurante.
“Ela olhou com aquele ar de quem não está cá, e disse: ‘Vocês são umas chatas, agora que eu estava a pensar escrever um livro chamado ‘A Morte da Mãe’, vocês vêm com essa, que coisa aborrecida’”, e não falaram mais no assunto durante o resto da refeição.
Na semana seguinte, quando Maria Teresa Horta chegou ao Treze para o almoço habitual, “estavam as duas sentadas e a Isabel abriu a sua ‘malona’ e disse: ‘Vocês não queriam o livro? Então eu escrevi o primeiro texto, está aqui’”.
Maria Teresa Horta confessa que ficou “furibunda”, porque Isabel Barreno as desmoralizou e depois foi para casa escrever. “Ela foi a primeira”, afirmou.
O primeiro texto está datado de "1/3/1971" e nele se lê: "Procuramos o que não nos faria recuar, o que não nos faria destruir (...). Só de nostalgias faremos uma irmandade e um convento (...). Só de vinganças, faremos um Outubro, um Maio, e novo mês para cobrir o calendário. E de nós, o que faremos?"
Quando chegaram ao fim, três editores pediram-lhes o livro porque o queriam publicar. Eram eles, Pedro Tamen, o poeta, que dirigia a Moraes Editores, Francisco Lyon de Castro, que era dono das Publicações Europa-América, e Natália Correia, que estava a dirigir a parte literária dos Estúdios Cor.
“Pediram-nos o livro, mas não estava ainda arranjado. Cada uma de nós teve de passar à máquina. Fomos para minha casa e estivemos a dividir os textos para fazer um livro. Quando chegámos ao fim, quando estava pronto, perguntei quanto tempo é que tínhamos levado, para pôr a data. Nove meses. Nenhuma de nós fez isto propositadamente, nove meses, exatamente como se fosse um parto”.
Quando foram entregar a obra, Pedro Tamen não pôde publicar, lamentando imenso, porque na editora não o deixaram, e ele era apenas um trabalhador; Lyon de Castro disse que não, porque tinha a editora, na altura a única com tipografia, que era paga por ele, e corria o risco de lhe fecharem a casa, não tendo depois como pagar aos trabalhadores.
“Toda a gente tinha a perceção de que aquilo ia dar prisão e proibição. Nunca tanto quanto foi, mas pronto. Entretanto a Natália disse: ‘Resto eu e vou publicar, se não quiserem, saio. A partir de agora, só fico nos Estúdios Cor se me deixarem publicar as 'Novas Cartas’', e assim foi”.
Maria Teresa Horta faz questão de salientar que o livro não foi só escrito por três mulheres, foi publicado por uma quarta mulher, uma coisa em que insiste, mas que “raramente se diz”.
“É uma coisa de uma injustiça extrema, porque era uma mulher de uma coragem imensa, uma mulher de muito talento e de uma solidariedade feminina muito grande. É muito injusto porque, se não fosse ela, provavelmente hoje não existiriam as 'Novas Cartas', ou só existiram depois do 25 de Abril, e não tinha acontecido o que aconteceu”.
Entretanto, com a apreensão da primeira edição, a situação complicou-se e as três tiveram de se apresentar na polícia. Foram levadas para uma sala só com mulheres, que perceberam depois ser a sala das prostitutas. E ali estavam, três escritoras e os seus advogados (Francisco Rebelo, Duarte Vidal e Alçada Baptista). “Quiseram-nos humilhar, mas nós desatámos a rir”, lembra à agência Lusa.
Durante o interrogatório, Francisco Rebelo, advogado de Maria Teresa Horta, tentou explicar que se tratava de “literatura, literatura séria”.
“Mas o inspetor respondeu: ‘Não venha com essas coisas, que eu não leio’, e disse isto com grande orgulho. Ficámos a saber quem nos estava a interrogar”.
Foram interrogadas juntas e em separado. Queriam por força saber quem tinha escrito os textos, não acreditando que tivesse sido feito pelas três, e convenceram-se que era obra exclusiva de Maria Teresa Horta, porque já tinha publicado, anteriormente, “Minha Senhora de Mim”.
Com o adensar da situação, um amigo da Maria Isabel Barreno, que ia para França, ligou-lhe e prontificou-se a levar um livro e uma carta, só queria saber a quem.
“À Simone [de Beauvoir], claro, a minha paixão desde pequenina [leu 'O segundo sexo' com 14 anos, às escondidas dos pais, debaixo dos lençóis]. Acabei por ter ligação com ela, conhecemo-nos e tudo”, contou Maria Teresa Horta à Lusa, reconhecendo que esta autora francesa mudou a sua vida e que, sem ela, provavelmente, também não haveria as 'Cartas'.
“Nesse ano houve a primeira reunião das feministas universais, com feministas de todo o mundo, e as 'Novas Cartas' foram consideradas o tema base e o apoio do primeiro encontro feminista no mundo, foi muito bonito isso”, recordou Maria Teresa Horta.
A realização da conferência internacional das organizações das mulheres está aliás na base de um abaixo-assinado de apoio às autoras portuguesas, entregue na Embaixada de Portugal, em Paris, em julho de 1973. Pouco depois, na capital francesa, a atriz Delphine Seyrig pôs em palco uma leitura da obra, no espetáculo "La Nuit des Femmes" e, em janeiro de 1974, uma "Procissão - Manifestação Noturna" de solidariedade realizou-se em frente à catedral de Notre Dame, enquanto a imprensa mundial, dos Estados Unidos à Europa, dava conta do caso.
O julgamento das Três Marias teve início em outubro de 1973 e, numa audição de 4 de abril do ano seguinte, um promotor público que estava a estagiar pediu a sua absolvição e fez um elogio do livro. “Mas estava branco e a tremer". No dia seguinte já não estava lá e nunca mais o viram.
No dia da leitura da sentença, Lisboa estava cheia, sobretudo de mulheres. Estava presente a televisão americana, que queria filmar em tribunal. Quando as três escritoras chegaram ao tribunal viram este aparato e duas carrinhas da polícia, que estavam ali “para levar as três Marias”, que iam “ser presas” naquele dia, como lhes disseram.
Mas o juiz fez saber que estava doente, em casa e na cama, e adiou a leitura da sentença para o dia 25 de Abril do mesmo ano, 1974.
Acabaria por ser feita cerca de duas semanas depois, em 08 de maio, após a queda da ditadura, confirmando a absolvição das autoras.
O livro foi publicado e as Três Marias não foram presas. Mas marcas ficaram. Até hoje, Maria Teresa Horta é perseguida pela memória das incursões da PIDE a sua casa, de madrugada. E acontece-lhe ficar sentada na cama a meio da noite, porque os ouve a bater à porta.
"Novas Cartas Portuguesas" levam história da luta das mulheres ao Museu do Aljube
Os 50 anos do início das “Novas Cartas Portuguesas” são o ponto de partida de uma exposição no Museu do Aljube, em Lisboa, que associa esta obra à luta das mulheres pela liberdade, num sentido mais amplo.
“Mulheres e Resistência – 'Novas Cartas Portuguesas' e outras lutas”, que vai estar patente até ao dia 31 de dezembro, parte de um livro escrito por três mulheres, decidido em maio de 1971 e publicado um ano depois, com a primeira edição recolhida e destruída pela Censura, três dias após o seu lançamento.
Nos 50 anos do início da escrita das “Novas Cartas Portuguesas”, por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, que deram origem ao processo das Três Marias, a exposição revisita a atualidade da luta das mulheres pelos seus direitos, procurando compreender o papel da repressão, o valor da solidariedade e a importância da vitória deste processo literário e político.
“Uma das ideias era abordar a questão das mulheres e da resistência e, a partir daí, associar os 50 anos do início da escrita das 'Novas Cartas Portuguesas', pelas Três Marias, a um processo mais geral e amplo da luta das mulheres pelos seus direitos e por direitos sociais, e da luta pela liberdade no nosso país”, disse à Lusa a diretora do Museu do Aljube Resistência e Liberdade, Rita Rato.
A este tema central foi associada a luta mais geral e mais ampla das mulheres em Portugal durante a ditadura, com um núcleo expositivo das várias expressões de resistência popular, desde o inicio dos anos de 1930 até ao 25 de Abril, como as lutas operárias, as lutas camponesas, as lutas antifascistas, as lutas dinamizadas por outras mulheres intelectuais, com uma dispersão no território muito significativa, tentando até revelar que a resistência das mulheres está para lá do que é mais conhecido, particularmente nos campos do sul e na cintura industrial de Lisboa, destacou Rita Rato, que é também uma das curadoras.
“Ao longo desta exposição conseguimos concluir isso, que de certa forma existiram processos paralelos de resistência, de formas muito diversas de participação das mulheres, e isso também revela a riqueza da mobilização feminina na luta pelos seus direitos no nosso país”, afirmou.
A outra curadora da exposição, Joana Alves, explica que quiseram deixar claro que, antes das Três Marias, houve outras mulheres que também lutaram para que elas pudessem escrever o livro e que as mulheres atuais herdaram as lutas delas, criando um fio condutor, que liga esta “luta contínua”.
“Temos os processos originais de apreensão dos livros da Natália Correia, que foi a editora das ‘Novas Cartas Portuguesas’, temos também o processo da ‘Minha Senhora de Mim’, o livro da Maria Teresa Horta, que foi talvez o que impulsionou a escrita das 'Novas Cartas'”.
O livro de poesia “Minha Senhora de Mim” foi editado em abril de 1971 pela Dom Quixote, mas dois meses depois a editora foi objeto de um auto de busca e apreensão da obra por parte da PIDE (polícia política da ditadura do Estado Novo).
A proprietária da editora, Snu Abecassis, foi advertida de que estava proibida de publicar qualquer obra de Maria Teresa Horta, e a autora foi vítima de um espancamento na rua.
Na altura, Maria Velho da Costa, ao saber do sucedido, questionou Maria Teresa Horta: Se uma mulher causa todo este burburinho e confusão, o que aconteceria se fossem três?
Esta frase foi o ponto de partida para a escrita das "Novas Cartas", e é o ponto de partida da exposição, a acompanhar uma fotografia das Três Marias a sair do tribunal.
O Arquivo Nacional Torre do Tombo disponibilizou os processos originais da censura, da proibição do livro e do processo da Maria Teresa Horta.
O despacho da Direção-Geral da Informação, datado de maio de 1972, que proíbe "a circulação" das "Novas Cartas Portuguesas" e recomenda "a instrução do processo-crime", acusa a obra de "preconizar a emancipação da mulher, sempre, em todos os seus aspectos", e de possuir passagens "francamente chocantes, por imorais".
A Torre do Tombo disponibilizou igualmente um dos volumes do processo da apreensão da "Antologia de Poesia Erótica e Satírica", organizada por Natália Correia e publicada pelas Edições Afrodite, em 1966, que levou a escritora a tribunal plenário.
Todos os documentos podem ser vistos pelos visitantes da exposição.
“Houve também uma dimensão muito importante que quisemos valorizar: desde 2015, o Museu do Aljube tem vindo a recolher testemunhos orais de muitas mulheres que tiveram um papel insubstituível na luta pela liberdade no nosso país e constituímos, a partir dessas 16 mulheres e seus testemunhos, um vídeo com excertos das suas partilhas e da sua experiência”, assinalou Rita Rato.
Então, o núcleo das "Novas Cartas", que começa com a frase de Maria Velho da Costa e a foto das Três Marias, integra ainda um ponto de escuta, que replica uma sala dos anos 1970, onde as pessoas se podem sentar e ouvir a leitura de algumas das cartas, bem como consultar livremente o livro, explicou Joana Alves.
Uma outra parte da exposição tem os processos cedidos pela Torre do Tombo, que estão ao lado das primeiras edições da antologia poética de Natália Correia, da “Minha Senhora de Mim”, das “Novas Cartas Portuguesas” e também da primeira edição do livro de Maria Lamas, “As Mulheres do Meu País”, “que é uma das 'Marias' que vieram antes das Três Marias”.
“Depois há a parte da solidariedade internacional, que explica o impacto que esta teve no processo [judicial, contra as Três Marias], porque o próprio processo da PIDE sugeria que fossem absolvidas, por causa do impacto que estava a ter lá fora, e o que isso poderia significar para o regime de Marcelo Caetano”, disse Joana Alves.
O caso chegou às primeiras páginas de jornais como Le Monde e The Times, e a revistas como Newsweek e Le Nouvel Observateur, coincidindo, no verão de 1973, com a denúncia internacional do massacre de Wiriamu, no norte de Moçambique, pelo padre Adrian Hastings.
O núcleo da exposição termina com réplicas dos cartazes das manifestações de solidariedade internacional e com a absolvição.
Em paralelo – adianta Rita Rato – “temos o enquadramento das mulheres durante o regime fascista, do ponto de vista legal, o enquadramento com propaganda da mocidade portuguesa feminina, com alguns cartazes de como deve ser a mulher ideal, de como se constrói a ideologia em torno da opressão da mulher”.
Mais à frente, apresentam-se várias fotografias de mulheres que, apesar dessa “forte dimensão repressiva do regime”, ideológica, simbólica e física, “lutaram e conquistaram direitos muito importantes”.
“Depois terminamos no piso -1 com o vídeo dos testemunhos, que permite revelar uma experiência muito própria da resistência das mulheres: mulheres que foram estudantes, dirigentes académicas, jornalistas, médicas, mulheres que viveram na clandestinidade, mulheres que estiveram presas vários anos, com percursos diferentes”, descreveu a diretora do museu.
Até ao final do ano, será desenvolvida uma programação paralela, que começa já a 16 de maio, com “uma curta-metragem de um ‘work in progress’ de Luísa Sequeira, realizadora do Porto, que está a fazer um filme sobre as ‘Novas Cartas Portuguesas’, e também vai mostrar o filme que fez em 2015, que se chama ‘Quem é Bárbara Virgínia’, que é um filme sobre a primeira mulher que fez uma longa-metragem em Portugal, em 1945 [e que foi selecionada para o primeiro Festival de Cannes]”, explicou Joana Alves.
Haverá ainda conversas, momentos de leitura das "Novas Cartas" e uma série de outras atividades para um calendário que as curadoras estão ainda a fechar.
*Por Ana Leiria, da agência Lusa
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