Foi ministro-adjunto e do Desenvolvimento Regional, com tutela da comunicação social, do desenvolvimento regional e das autarquias locais, cargo que ocupou por pouco mais de dois anos no governo liderado por Pedro Passos Coelho.
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e doutorado com distinção pelo Instituto Universitário Europeu, em Florença, é especialista em Direito Europeu e Constitucional.
Professor universitário, foi advogado-geral no Tribunal de Justiça da União Europeia.
Esta não era para ser uma conversa sobre Covid-19, mas acabou por centrar-se nos contratos celebrados entre farmacêuticas e Comissão Europeia. Para Miguel Poiares Maduro, o mais provável é que as coisas tenham falhado por incapacidade ou incompetência da Comissão na gestão de todo o processo, mas especular não chega, é preciso um inquérito independente para apurar responsabilidades e tirar consequências, ou muito mais poderá estar em causa.
Nesta entrevista, o ex-ministro fala ainda da necessidade de o PSD se reformar e na importância cada vez maior da transparência e integridade da política e dos políticos, sob pena de as lideranças futuras serem cada vez piores.
Pedi para traçarem o seu perfil e este foi o resultado: "Franja liberal/progressista do PSD, ativista das redes sociais, qb de vaidade cultivada. Uma pessoa com algumas ideias interessantes e boa imprensa". Concorda?
Boa imprensa não sei, acho que nem boa, nem má. Mas, no geral, concordo. Até a vaidade moderada tenho de reconhecer que tem o seu quê de verdadeiro [ri]. É melhor sermos honestos connosco e reconhecermos alguns dos nossos defeitos. Tenho tentado controlar, aparentemente nem sempre com sucesso, porque é visível para algum observador externo.
Só não o vejo assim tanto nas redes sociais.
Essa é a minha única dúvida, tenho dias em que não uso nenhuma rede social e alturas em que estou mais ativo, sobretudo nos dias em que publico artigos. É uma coisa bastante inconstante.
Partilhou no Facebook um post sobre um rastreio a alergias do Hospital da Luz. Os doentes do SNS deviam ter o número de telefone do seu médico?
Penso que sim, deviam. Agora, tal como acontece no privado, os médicos têm um número de telefone para atender os pacientes e outro que mantêm para a sua esfera privada, o que me parece totalmente razoável. Isso exigiria dois números, o que não me parece difícil. Hoje em dia já não faz sentido que os pacientes tenham apenas o número do centro de saúde. Acho que é importante a acessibilidade aos médicos, mas com algum equilíbrio.
O presidente da República veio agora defender uma União Europeia da Saúde. A compra de vacinas centralizada na Comissão Europeia foi o primeiro passo, mas não está a correr bem.
Precisamos de saber o que correu mal e porque correu mal. Temos tido informações contraditórias, muito confusas e que não são um diagnóstico. Há aspetos que correram bem: se não tivéssemos tido acesso a medicamentos e equipamentos através de contratos centralizados na Comissão Europeia, não teríamos a mesma capacidade de aquisição nem esses bens teriam chegado com a mesma velocidade. Adquirir beneficiando da escala muito maior da União Europeia deu-nos mais poder do que se fossemos um consumidor isolado, ou seja, provavelmente países como Portugal, com muito pouca capacidade negocial e muitos constrangimentos financeiros, teriam tido condições piores e estariam ainda com menos vacinas do que estão neste momento. Basta ver que, em termos comparativos, a União Europeia está melhor do que a grande maioria dos países no mundo.
"A União Europeia já exportou mais de 50 milhões de vacinas"
Está pior do que o Reino Unido ou do que os Estados Unidos, por exemplo.
Há um fracasso face àquilo que era a nossa expectativa legítima a partir do momento em que essa aquisição é centralizada na Comissão Europeia. Sobretudo, falhou comparativamente a países como os Estados Unidos e o Reino Unido, com quem os cidadãos da União Europeia, e bem, se comparam e se devem comparar. Isso não é suficiente para dizer que não devia ter sido centralizada. Se calhar, a centralização não foi suficiente ou foi mal executada. Portanto, primeiro temos de fazer esse diagnóstico para daí retirarmos conclusões com sentido sobre o que falhou.
Fazendo uma análise superficial, o que falhou?
Pode ter falhado porque houve incapacidade e incompetência na gestão desse processo centralizado a nível europeu - tenho dúvidas que o problema seja a nível contratual (já li os contratos). Correu mal porque a União Europeia não soube utilizar esse poder relativamente às farmacêuticas. Elogiamos muito o Reino Unido e os Estados Unidos, que na prática impediram as exportações das suas vacinas, mas criticamos qualquer hipótese de a União Europeia sequer ameaçar proibir as exportações das vacinas. A União Europeia já exportou mais de 50 milhões de vacinas, enquanto o Reino Unido e os EUA praticamente não o fizeram. Há aqui uma contradição.
Itália também já está a proibir e não foi criticada por isso.
Esta a proibir ao abrigo de um mecanismo criado pela própria União Europeia e que alguns já contestavam. A questão é saber se esse mecanismo deve ser utilizado de forma mais assertiva ou se a União Europeia deve ter o seu controlo. Provavelmente, um dos aspetos que mais falhou foi a incapacidade da União Europeia, que julgou que bastava encomendar as vacinas sem a preocupação de garantir que, se houvesse problemas, tinha mecanismos eficazes de fiscalização, controlo e intervenção na capacidade de produção para garantir essas doses. Estou a especular, mas parte do problema pode ter a ver com a circunstância de o controlo sobre a produção, sobre as fábricas, ser feito pelos Estados-membros, e ter havido dificuldades na articulação entre as competências que foram para a Comissão Europeia e as que permaneceram nos Estados.
Quem deve fazer o diagnóstico para perceber o que e onde falhou o processo de compra de vacinas?
Defendo que o Parlamento Europeu deve promover um inquérito independente, como acontece em alguns Estados nestas matérias, para tirar conclusões sobre o falhou. Que falhou, falhou. Temos de saber onde para tirar responsabilidades políticas quanto a esse falhanço e também para saber o que temos de mudar. Saber, por exemplo, se o futuro passa pela possibilidade de a União Europeia abdicar de ter um papel nesta matéria, que fica totalmente para os Estados-membros, ou se, pelo contrário, passa por reforçar as competências da União Europeia, como aparentemente defende o presidente da República.
Falou nas informações contraditórias e confusas a que vamos tendo acesso. Os contratos celebrados entre as farmacêuticas e a Comissão Europeia deviam ser públicos?
Há muitas contradições, já li artigos que dizem que o problema é que a União Europeia pagou menos e, como regateou preços e impôs condições mais duras, isso levou as farmacêuticas a dar prioridade ao Reino Unido e aos Estados Unidos. Já li que a UE concluiu o acordo mais tarde, mas também já li que concluiu antes do Reino Unido. Uma coisa sei - porque há partes dos contratos que são públicas: quem ler o contrato feito com a AstraZeneca (com quem parece existir o maior conflito) pode perceber que, do ponto de vista contratual, a empresa não pode invocar qualquer obrigação anterior ou posterior com o Reino Unido para não entregar à UE as doses devidas, incluindo as que vêm de fábricas do Reino Unido. Mas as sanções podem ser tão insignificantes que, entre incumprir com a União Europeia ou com o Reino Unido, a empresa prefira incumprir com a União Europeia.
"Quando abrimos tão rapidamente uma patente, estamos a desincentivar as indústrias farmacêuticas de investir no futuro"
Por isso perguntava se os contratos deviam ser públicos, para conhecermos todas as cláusulas.
Penso que os contratos deviam ser públicos, transparentes. É possível que tenham sido as farmacêuticas a impor a sua confidencialidade e a União Europeia, como os Estados Unidos, teve de ceder nisso, caso contrário poderia demorar ainda mais tempo a receber as vacinas. Mas por tudo isto era importante ter uma comissão de inquérito independente, muito credível a nível europeu, que pudesse consultar esses contratos e que tornasse públicas as conclusões. Seria fundamental. Todo o ruído que temos à volta disto, toda a incerteza, é fatal.
Fatal em que sentido?
Uma coisa é clara para mim: se a União Europeia não for capaz de tornar transparente para os seus cidadãos as causas por que falhou, quem é responsável pelo que falhou e, depois, tirar consequências políticas quanto a isso, então será todo o processo de integração europeia que será responsabilizado pelos cidadãos. Pior, isso é aquilo que alguns populistas pretendem, que é dizer "Estão a ver? A União Europeia não serve", "a União Europeia não tem mecanismos de responsabilização", a "União Europeia faz as coisas piores para os cidadãos".
O que leva a que passado este tempo, e com uma dimensão tão grande do problema, ainda não haja uma abertura de patentes e vacinas genéricas?
A questão das patentes não é o problema, basta ver que nos contratos, por exemplo no da AstraZeneca, a União Europeia tem a possibilidade de impor a produção noutras fábricas caso a empresa não o consiga fazer. O problema é que não existe essa capacidade de produção em pouco tempo, pode existir daqui a seis meses, mas a questão é ter as vacinas daqui a duas ou três semanas. Para o mundo, e a nível global, essa pode ser uma questão relevante, mas implica equilíbrio com outros aspetos. Quando abrimos tão rapidamente uma patente, estamos a desincentivar as indústrias farmacêuticas de investir no futuro, e a próxima vacina poderá demorar mais tempo. Tivemos tantas empresas a trabalhar nisto porque o incentivo era muito grande.
Muitas farmacêuticas têm financiamento público.
Claro, mas que tem como contrapartida o preço da vacina [mais baixo]. O investimento tem de ser pago para não desincentivar as empresas no futuro. Se é feito através da compra de doses em número suficiente para distribuir pelo mundo, se de outra forma, isso é irrelevante do ponto de vista económico. O ponto fundamental é como os países vão pagar para permitir a generalização da vacina. Repare que nos Estados Unidos, em negociação com a administração Biden, só a Pfizer duplicou a capacidade de produção em uma ou duas semanas. É isso que não compreendo porque não se está a conseguir na Europa. E não passa pela generalização da patente, porque a transferência de conhecimento não acontece só tornando a patente pública. Muito provavelmente tem a ver com a incapacidade europeia ao nível da produção e de como em duas ou três semanas consegue aumentar a produção de forma exponencial. Se os Estados Unidos conseguiram, porque é que nós não conseguimos? Tem de haver um inquérito que responda a isto.
Devíamos ter-nos cingido à capacidade de aprovação de vacinas pela Agência Europeia do Medicamento ou teria adiantado comprar outras vacinas?
Inicialmente a EMA pode ter demorado mais do que os Estados Unidos e o Reino Unido, mas repare que os Estados Unidos ainda não aprovaram a AstraZeneca. Há Estados a recorrer às vacinas chinesas e russas, mas não me parece que seja a solução dos problemas, e tenho muitas dúvidas sobre confiar na aprovação do que fazem os russos ou os chineses, não temos capacidade de averiguar se os seus processos científicos são credíveis, não vou pôr a saúde dos europeus em causa. Se calhar podíamos ter adotado o princípio, a União Europeia podia tê-lo feito, de uma vez aprovadas vacinas pelos Estados Unidos ou pelo Reino Unido, porque os processos são idênticos aos nossos, ter um mecanismo de reconhecimento mútuo. Eu teria feito isso. Mas a União Europeia não o fez em relação a eles e eles não o fizeram em relação à UE.
"O sistema científico está mais bem preparado para responder à pandemia do que o sistema político"
Estima-se que a gripe espanhola matou cerca de 50 milhões de pessoas. Passado um século, que número representaria para si um fracasso mundial no combate à pandemia Covid-19?
Penso que não é comparável, porque temos hoje meios de resposta médica, meios de coordenação, meios de resposta científica muito mais avançados, da mesma forma que a esperança de vida é hoje muito superior à de então. Temos de ter a expectativa de que uma pandemia não pode, de forma nenhuma, ter uma mortalidade sequer próxima da registada antes. Uma pandemia tem sempre números catastróficos, e esta foi mal gerida em vários aspetos. Falamos muito no Brasil e nos Estados Unidos da América, mas a Europa, que tem teoricamente dos melhores sistemas de saúde do mundo, dos maiores recursos económicos e financeiros, foi um dos piores locais do mundo. Temos de tirar conclusões.
A resposta científica foi mais rápida do que a resposta política? Porquê?
O sistema científico está mais bem preparado para responder à pandemia do que o sistema político. A velocidade a que se conseguiu uma vacina é extraordinária, mesmo com todos os problemas que temos agora em relação à capacidade de produção. O que falhou foi o sistema político e falhou a dois níveis. Falhou na capacidade de prever, e, portanto, de antecipar uma resposta à pandemia - e isso, como disse no livro "Democracia em tempos de pandemia", escrito com um colega americano, ilustra até que ponto os sistemas políticos estão enviesados pelo curto prazo e não conseguem incorporar riscos futuros. A pandemia é um exemplo claro disso: tínhamos alertas muito significativos, que o sistema político devia e podia ter lido, sobre a necessidade de preparar o risco de uma pandemia e como lhe responder, mas a verdade é que os sistemas políticos estavam totalmente impreparados. Mais, em dezembro, já os riscos pandémicos eram claros, os sistemas políticos continuaram a não se preparar e praticamente a ignorar isso. O sistema político parece ignorar os riscos futuros porque os custos imediatos de lidar com eles são maiores. Isto é assim com a pandemia, mas o mesmo se passa com o ambiente, com a sustentabilidade financeira de sistema de pensões ou com a dívida dos Estados. E remete-nos para um problema de fundo do sistema político.
"Houve todo um conjunto de matérias que mostraram a falência do sistema político na gestão de uma crise deste género"
Falou em falhas do sistema político a dois níveis. Qual é o segundo?
O segundo aspeto em que falhou foi na gestão da pandemia, em grande medida por não saber incorporar o conhecimento científico de forma adequada nas decisões políticas. Portugal é emblemático a esse respeito. Em vez de se ter criado mecanismos, processos de incorporação de diferentes conhecimentos disciplinares científicos que interagissem entre si, trocassem informações e colocassem sobre a mesa informação validada e diferentes alternativas de resposta — que o processo político depois escolheria, tornando transparente essa escolha, o que tivemos foi uma cacofonia científica, com o sistema político a ouvir publicamente, sem processos de acompanhamento contínuo do sistema científico e de produção de informação —, como se envolver a ciência fosse organizar umas conferências científicas de 15 em 15 dias em que diferentes cientistas dão opinião. O sistema político mostrou claramente uma enorme incapacidade de gerir uma crise deste género, em boa medida por não saber incorporar a ciência. Por exemplo, o que nos diz a ciência ao nível do conhecimento comportamental sobre como comunicar com os cidadãos em crises deste género? Comunicou-se de forma tradicional, sem atender àquilo que é exigível neste contexto. Houve todo um conjunto de matérias que mostraram a falência do sistema político na gestão de uma crise deste género.
Defende um inquérito do Parlamento Europeu com consequências. Que consequências?
A minha tese é simples: houve um falhanço da União Europeia nesta matéria, que, do meu ponto de vista, pode ser mais grave do que as crises que a União Europeia teve antes, porque ataca aquilo que é o cerne da legitimação histórica, que é a União Europeia trazer valor acrescentado para os europeus. E aqui parece que não. Se a União Europeia continuar a não conseguir definir quem, como e porquê é responsável por esse fracasso, e se a responsabilidade política permanecer difusa e inconsequente, é todo o processo de integração europeia que vai estar em causa.
No limite, como se traduziria essa responsabilização política?
Se apurar que a Comissão falhou de forma grave, o Parlamento Europeu deve demitir a Comissão Europeia. O relatório do inquérito e a discussão do Parlamento Europeu pode determinar como consequência que um ou dois comissários se deviam demitir. Mas, se não se demitirem, a única alternativa será demitir toda a Comissão, porque a presidente da Comissão Europeia não tem poder para demitir os comissários individualmente.
Quem, no Parlamento Europeu, poderia conduzir esse inquérito de forma independente?
Alguns Estados têm uma tradição de organização desses inquéritos independentes, os modelos são conhecidos. O Reino Unido, que tem essa tradição, normalmente nomeia ex-juízes do que é hoje o Supremo Tribunal (antiga House of Lords), ou personalidades com grande independência e credibilidade. Em Portugal, já defendi isto, devíamos fazer mais uso destes mecanismos, porque os simples inquéritos parlamentares são normalmente muito politizados. O exemplo que tivemos mais próximo disso prova que tenho razão, foi o caso dos incêndios. Essa comissão de inquérito independente, que teve o apoio de diversos partidos políticos, com pessoas com muita credibilidade, foi talvez dos inquéritos mais consensuais e que levou a mais consequências. Na União Europeia também há ex-juízes do Tribunal de Justiça - não me estou a propor a mim próprio, mas colegas meus como Allan Rosas [Finlândia] ou Christiaan Timmermans [Países Baixos] têm imensa credibilidade e seriam pessoas com capacidade para liderar um grupo independente. Como outros, porque a comissão devia ter cientistas de diferentes áreas, pessoas que conhecessem os diferentes temas, o funcionamento dos processos farmacêuticos, produção, logística, vacinas, tudo isso.
"Há claramente uma perceção de uma enorme fatiga do confinamento por parte das populações europeias"
Falou no conhecimento científico a nível comportamental. Merkel veio dizer que foi um erro, porque não poderiam ser bem aplicadas, as limitações estabelecidas para a Páscoa. E voltou atrás. Como olha para a decisão?
Não estou em condições de avaliar se é uma boa ou má decisão, mas uma avaliação distante e descritiva indica-nos desde logo que há claramente uma perceção de uma enorme fatiga do confinamento por parte das populações europeias. Todas. E quanto isso dificulta a adoção e continuação de políticas de confinamento como resposta à pandemia por parte dos Estados. A definição da resposta pública e das medidas públicas tem de ter em conta a capacidade de assegurar, em diferentes momentos, o seu cumprimento pelas pessoas. Portanto, em vez de tentar fazer cumprir uma medida que vai ser pior, talvez seja de tentar outro método, uma forma alternativa de controlar a pandemia durante a Páscoa. Merkel pode ter chegado a esta conclusão. É sempre melhor um governo assumir que errou, com toda a frontalidade e clareza, do que andar à procura de qualquer outra justificação, que só vai contaminar a perceção. A transparência é muito devida aos cidadãos, porque é isso que lhes dá a confiança para os governos conseguirem assegurar um mínimo de capacidade de gestão da pandemia.
"Uma das piores formas de judicialização da política é confundir juízos e avaliações éticas com avaliações jurídicas, enviando tudo para os tribunais"
Deixando a pandemia, mas continuando no tema da transparência. O PAN apresentou um projeto de lei para obrigar titulares de cargos políticos a declarar se pertencem a "associações de caráter discreto", como maçonaria ou Opus Dei. Concorda?
O meu ponto de partida é: a transparência é fundamental à democracia. Para conseguirmos fazer o escrutínio público das decisões do poder público e político, que é próprio da democracia, necessitamos de conhecer e entender plenamente as decisões. E a transparência é instrumental a isso: conhecer quem participou no processo, o tipo de informação que determinou uma decisão, a neutralidade e objetividade da pessoa que tomou essa decisão face aos interesses em causa... Tudo isso são condições necessárias para podermos exercer um escrutínio democrático sério e responsabilizar politicamente quem toma as decisões. Ora, as condições que tornam essa transparência necessária na democracia também se verificam relativamente à participação em associações. Se um político pertence a uma associação que partilha certos princípios ou tem práticas contrárias às posições que defendo como cidadão, devo saber isso. Se um político participa numa associação e toma uma decisão favorável a essa associação ou ao seu presidente, também devo saber. Se um responsável público é membro de um clube de futebol e celebra um contrato com esse clube, devo saber. Porque isso configura um potencial conflito de interesses.
Quando estão em causa matérias que têm a ver com a ética, o que se faz em Portugal é legislar comportamentos, quase sempre para os legalizar. Isto faz sentido?
Nem devia ser preciso legislar. O juízo ético e político não tem a ver nem deve ser confundindo com o juízo jurídico, que tem o seu tempo próprio e condições de análise e de garantia para os envolvidos diferentes daquelas que devem estar envolvidas num juízo ético e político. Em Portugal fala-se muito no risco da judicialização da política, mas ignora-se que uma das piores formas de judicialização da política é confundir juízos e avaliações éticas com avaliações jurídicas, enviando tudo para os tribunais. Um conflito de interesses não implica necessariamente uma proibição legal, mas devemos tirar daí consequências políticas. Dou como exemplo o caso do antigo primeiro-ministro Sócrates: há vários aspetos já conhecidos publicamente, alguns que ele próprio já reconheceu, que nos permitem uma avaliação ética e moral do seu comportamento, independentemente da avaliação jurídica pelo tribunal de ter ou não havido corrupção. Um primeiro-ministro usar constantemente dinheiro líquido e pagar bens ou serviços de milhares de euros em notas, é obviamente um comportamento pouco ético e suspeito que deve merecer uma avaliação ética da nossa parte. Um primeiro-ministro viver na dependência de um seu amigo, coloca potenciais conflitos de interesse e é suscetível de um juízo ético reprovável.
Mas são os políticos os primeiros a afirmar "à política o que é da política, à justiça o que é da justiça", quando os próprios não fazem essa distinção.
Exatamente. Quando, na verdade, dar à política o que é da política implica que há comportamentos e avaliações éticas que podem ser feitas independentemente da avaliação jurídica estar concluída, porque há situações que não implicam um juízo sobre a culpabilidade jurídica, mas sim uma avaliação objetiva de que determinada pessoa se encontra debaixo de uma suspeita, uma sombra, incompatível com o exercício de cargos públicos, porque estes exigem o máximo de confiança por parte dos cidadãos. Temos de conseguir diferenciar estes aspetos, conseguir fazer avaliações éticas, morais e políticas independentemente dos processos jurídicos. A confusão é promovida pelo sistema político exatamente para evitar essa avaliação ética e essa responsabilização política.
Como e a quem cabe fazer essa avaliação?
Em última análise aos cidadãos, que devem ter essa exigência ética. Penalizando, responsabilizando as pessoas, não as elegendo. E devem responsabilizar também os governos que não tiram essas consequências relativamente aos seus membros. O que os partidos podem fazer é aquilo que sugeri para o meu partido: defendi que fosse criada uma comissão de ética com poderes para fazer essa análise, esse exame de integridade dos candidatos, e determinasse que quem estiver nessa circunstância - alguém que já está acusado e sujeito a determinadas medidas, por exemplo - não possa ser candidato pelo PSD.
Sem comprometer o princípio da presunção de inocência?
A pessoa até pode ser inocente, isto não é uma inversão do princípio da presunção de inocência, é uma constatação objetiva de que essa pessoa cria uma situação de dúvida para os cidadãos que compromete o exercício regular das funções. A Constituição da República Portuguesa não permite excluir pessoas nessas circunstâncias, mas os partidos são livres de escolher as pessoas de acordo com os critérios por si definidos, podem ter um critério ético e objetivo de achar que alguém nesta circunstância não pode exercer. Aliás, há outras áreas onde temos comissões de ética que impõem avaliações de idoneidade, como os bancos, por exemplo. Os partidos devem fazer essa análise. Da mesma maneira que um primeiro-ministro deve fazer essa avaliação. Por exemplo, ter dois membros do governo da mesma família num conselho de ministros é um conflito de interesses. Porque é um órgão colegial, todos os ministros devem escrutinar, avaliar e criticar as propostas uns dos outros. Um pai ou uma filha avaliarem mutuamente as suas propostas políticas parece-me um conflito de interesses óbvio.
"A agenda dos decisores políticos devia ser pública"
E quanto às leis, devíamos conhecer os nomes de quem as pensou, quem as elaborou, quem participou em todo o processo legislativo?
Sim, faz tudo parte da pegada legislativa. Outra proposta que fiz, e que já existe noutros países, é que a participação no processo legislativo devia ser toda conhecida: quem é responsável pelos projetos, quem participa, contactos dos decisores públicos com todos os interessados. A agenda dos decisores políticos devia ser pública: com quem um primeiro-ministro, um ministro, um deputado reúne para discutir determinada política pública, reuniões e agenda dessas reuniões.
Temos o terceiro plano de combate à corrupção num espaço de dez anos...
...E não o conhecemos, o que é extraordinário. O país está a discutir um plano que não conhece, não sabe quais as medidas que constam dele. O que conhecemos e o que estamos a discutir é a comunicação política do governo sobre o plano. Ao que chegámos... E nós aceitamos isso como natural.
Teve o pelouro da comunicação social, que é bastante regulada. Mas não há nada que obrigue um político a responder a um jornalista.
De novo, isso passa por mecanismos de responsabilização pública. Há aspetos que podemos impor legalmente, outros têm de ser de responsabilização política. Se temos maus governos, governos com práticas opacas, se elegemos um corrupto, ainda por cima quando já sabemos que é corrupto, a responsabilidade é toda nossa. Mas podemos impor legalmente a obrigação de uma agenda pública, que não vai impedir que um primeiro-ministro ou ministro reúna com determinado interesse económico e seja influenciado por ele, mas vai permitir aos cidadãos saber que houve essa reunião e o que foi discutido. E ter exigência para saber o que resulta dali, tirando consequências políticas.
É mais fácil falar de política quando se está fora do governo?
Temos sempre mais liberdade estando fora, naturalmente que sim. Dentro do governo temos o dever de lealdade que limita aquilo que podemos dizer. Qualquer pessoa que está num governo sabe que discorda de algumas decisões tomadas, mas mesmo assim não vai, nem pode nem deve, manifestar-se publicamente contra elas. A única coisa que podemos fazer numa circunstância dessas, se entendemos que as decisões que estão a ser tomadas por um governo em que participamos são globalmente piores e contrárias aos nossos princípios fundamentais, é demitirmo-nos. É assim em qualquer organização coletiva colegial, não só no governo, também me aconteceu no Tribunal de Justiça ou até mesmo no partido, em graus diferentes. Às vezes temos de ser solidários com decisões com as quais podemos não estar de acordo.
Quais os grandes constrangimentos para avançar com reformas em que se acredita uma vez no governo?
As restrições são de diferente tipo. Primeiro são constrangimentos financeiros, havia coisas que eu queria fazer e que não tinha dinheiro para fazer - naquela altura [2013-2015], então, esse era um constrangimento enorme. Depois, constrangimentos de natureza política: a nossa posição até pode ser consensual dentro do partido, mas estamos numa coligação e o parceiro pode não querer fazer o mesmo que nós, ou então a posição até é a mesma, mas dentro do governo, em ministérios que interagem com a nossa área, querem fazer de outra forma.
Tem um exemplo, imagino.
A descentralização. É sempre muito difícil fazer a descentralização porque muitas vezes o ministro responsável pela pasta tem de interagir com vários ministérios setoriais que vão perder competências. Esse é sempre um condicionamento e algo que torna difícil esta matéria e explica que os passos na descentralização nunca sejam tão ambiciosos como os primeiros-ministros proclamam que gostariam que fossem. Na minha opinião, são matérias nas quais devíamos avançar sobretudo através de projetos piloto, precisamente para ganhar essa autoridade e confiança, e depois generalizar. Outras vezes os constrangimentos resultam de haver interesses estabelecidos muito fortes, com grande peso mediático, que não permitem à população perceber os benefícios. O ruído político e mediático pode dificultar a adoção de uma medida, porque dificulta o apoio popular. É difícil tomar uma decisão, ainda que benéfica, se ela vai ter uma reação contrária, no sentido em que isso torna difícil a sua implementação. Um bom líder tem de ter consciência de todos estes condicionalismos. Não basta saber o que é bom, e já isso é difícil, porque implica ter boa informação, é preciso ter uma estratégia que permita transformar aquilo que sabemos que é preciso fazer no que pode ser feito, e esse passo não é automático.
"Gostaria de ter ido ainda mais longe no modelo para a RTP, para garantir ainda mais independência"
Concordou com os 15 milhões em publicidade que o governo atribuiu a alguns órgãos de comunicação?
Entendo que é necessário e que se justificava dar apoios públicos à comunicação social, como se deu a outras áreas. Os media são um bem público, são instrumentais à nossa democracia, a sua sustentabilidade financeira, agravada pela pandemia, é um risco para a democracia e, portanto, justifica a possibilidade de intervenção pública. Mas também digo que há sempre o risco muito grande de qualquer intervenção pública, que é suscetível de poder ser uma forma de condicionalismo político desses meios. Ser feita através do mecanismo da publicidade, que já estava estabelecido, reduzia os riscos de interferência política, o problema foi a falta de transparência quanto aos dados utilizados para o cálculo dos valores económicos. A justificação do governo foi que não tinha liberdade para divulgar os dados, que não eram seus, eram confidenciais e das empresas. Aí o governo, provavelmente sem má vontade, cometeu um erro e devia ter encontrado formas de tornar esses dados transparentes e públicos, porque essa opacidade criou a suspeita. Defendo formas de financiamento público controladas pelos cidadãos, não pelo governo.
Tais como?
Um mecanismo podia ser dar um crédito a cada cidadão. Mais simples ainda seria os cidadãos poderem destinar um determinado montante do IRS a projetos de media, como já fazem com instituições de solidariedade social, por exemplo. A questão que se coloca é que há uma grande percentagem de portugueses que, por ter uma remuneração muito baixa, não paga impostos. Ainda mais ideal, mas implicava outros meios financeiros, era dar um crédito a cada cidadão. Já defendi que isto fosse feito a nível europeu, porque penso que a União Europeia teria mais meios de conseguir isso.
Em relação ao condicionalismo político há outras formas de o conseguir, como através de meios públicos, como a RTP ou a Lusa, agência noticiosa a quem este governo pagou para produzir informação relativa à Presidência Portuguesa do Conselho da UE, por exemplo.
São duas coisas diferentes. A Lusa levar-nos-ia a uma grande discussão, já afirmei que gostaria de ter feito na Lusa o mesmo que fiz na RTP, com todas as dificuldades - e vamos ver como é que o sistema evolui agora. Tentou-se na altura um processo de desgovernamentalização: a administração deixou de ser nomeada pelo governo, o sistema de financiamento passou a ser mais transparente. Houve uma tentativa clara, com a criação de um conselho independente, de desgovernamentalizar. Na Lusa isso não foi possível, porque tinha acionistas privados, e não havia condições nem meios para resolver essa situação. É uma pena que tenho, os jornalistas da Lusa mereciam e sempre lhes disse isso. Tal como gostaria de ter ido ainda mais longe no modelo para a RTP, para garantir ainda mais independência. Em relação à atribuição de contratos, a lei da publicidade foi alterada de uma forma que exige muito mais transparência e não descriminação, mas também é importante ver como está a ser aplicada. Por exemplo, temos de garantir que instituições como a ERC [Entidade Reguladora para a Comunicação Social] são genuinamente independentes, mas deixou-se muito contaminar a nomeação de pessoas - e isto não é uma avaliação sobre as pessoas que lá estão ou estiveram - pelos partidos políticos, o que aliás cria divisões enormes dentro da ERC; é basicamente uma eleição parlamentar em que cada um tenta colocar alguns membros, o que lhe retira bastante credibilidade e autoridade.
"O problema fundamental que explica o pouco desenvolvimento do país é a fraca qualidade das nossas instituições"
Quais são as suas causas, que ideias defende?
A causa principal em Portugal é a melhoria da qualidade das nossas instituições. Penso que o problema fundamental que explica o pouco desenvolvimento do país é o que está a montante de tudo o resto: a fraca qualidade das nossas instituições. Porque são as nossas instituições que desenham as políticas públicas, que as implementam e é isso que explica a má qualidade dessas políticas públicas e da sua implementação. Essa fraca qualidade das instituições leva a que sejam instituições extrativas, ou seja, são sobretudo instituições facilmente capturadas por interesses privados ou por interesses políticos, que transformam o problema da riqueza em Portugal num problema de extrair riqueza para esses grupos em vez de multiplicar a riqueza e de a distribuir de forma justa. Portanto, a reforma da qualidade das nossas instituições é fundamental. Isso declina-se em vários aspetos: a discussão que tivemos sobre o combate à corrupção, o combate aos conflitos de interesses, a reforma do sistema político, os mecanismos de direito e controlo do sistema político, mas também da qualidade dos processos de decisão da administração pública, da introdução de mais método, da avaliação das políticas públicas, da orientação para os resultados.
Onde é que isso nos deixa, numa altura em que está a chegar a "bazuca", o dinheiro da União Europeia, que essas instituições irão decidir onde e como usar?
Basta ver o Programa de Recuperação e Resiliência, onde quase não se fala das instituições e em que a parte do modelo de governo são duas ou três páginas. Dizer que vamos ter projetos para promover maior inovação ou maior qualificação da população, em si mesmo, não é nada. É um desejo. O que nos garante isso é a qualidade das instituições que vai selecionar os projetos e que vai depois contratualizar esses projetos de forma a que eles realmente atinjam os objetivos. E sobre a qualidade dessas instituições discutimos zero. Mas tenho outras causas: a nível internacional meti-me na reforma daquilo a que eu chamo os poderes privados transnacionais sujeitos a pouco escrutínio. Por exemplo, as grandes plataformas digitais ou os mecanismos de governo do futebol. Cerca de 2,5% do PIB da Europa depende direta ou indiretamente de uma organização de governo privada, sem qualquer escrutínio público e com um modelo de governação completamente ultrapassado e que cria imensos conflitos de interesse e práticas corruptivas [FIFA].
Qual a sua ambição política?
A minha verdadeira ambição política era conseguir ser bem-sucedido nesta transformação das instituições em Portugal. A forma de prosseguir neste objetivo depende de um equilíbrio ou um juízo que faço constantemente entre diversos aspetos da minha vida. Costumo dizer que tendo participado e intervindo politicamente ficamos com um grande vício político - que já tinha antes disso. Mas há outros aspetos da minha vida que me levam a ter em atenção que o exercício da atividade política também tem custos muito significativos do ponto de vista pessoal, desde a ocupação de tempo a questões remuneratórias. E depois há ainda uma terceira variante: mesmo que eu achasse que podia ser o salvador do país e que tivesse vontade de ultrapassar todas as dificuldades e resistências do ponto de vista pessoal, porque a minha vontade de tentar contribuir a um nível de liderança ou algo desse género para o país era mais forte, tinha de ter sempre em atenção se isso seria ou não exequível. Gosto de ser consciente e pragmático, não vale a pena a pessoa meter-se em projetos que não são viáveis. Neste momento da minha vida o que prevalece para mim é a importância de manter a minha vida privada e profissional como é neste momento, o impulso de atividade política através de cargos políticos é secundário face a outras considerações. Se no futuro será assim, vai depender. Independentemente disso, tenho cada vez mais consciência de que podemos ter uma capacidade de intervenção forte - às vezes até mais forte e eficaz - estando fora.
É militante do PSD. Como olha hoje para o partido?
Há uma dimensão conjuntural e há uma dimensão estrutural. A dimensão estrutural preocupa-me mais. A dimensão conjuntural tem a ver com a avaliação de o PSD fazer ou não oposição, se de forma suficientemente assertiva ou não. E, por um lado, reconheço que não é nada fácil fazer oposição política em contexto de pandemia, porque quando se critica é-se acusado de instrumentalização política da pandemia, quando não se critica é-se acusado de ser corresponsável pelas consequências das decisões do governo. Por outro lado, acho que o PSD tem de fazer um esforço para ser mais assertivo e comunicar de forma mais inovadora e de se diferenciar mais claramente do governo num conjunto de matérias. Reconheço que o Dr. Rui Rio fez um trabalho importante com o conselho estratégico nacional, com o professor Joaquim Sarmento, no desenvolvimento de massa crítica e num conjunto de ideias muito alargado e muito interessante, mas tem tido muita dificuldade em transpor isso para uma mensagem política. Tem faltado essa capacidade e o partido deve concentrar-se nisso.
"Não podemos ter um partido com tão pouca participação política"
Falou na dimensão estrutural do PSD. Pode concretizar?
Tenho mais preocupação com as condições estruturais de fundo, que também explicam algumas destas dificuldades de comunicação que, do meu ponto de vista, está algo ultrapassada. Este é um desafio que o PSD tem e que todos os grandes partidos tradicionais estão a ter - o PS também o tem - , que tem a ver com a perda de confiança dos cidadãos nos partidos políticos tradicionais (por várias razões, o que explica também o crescimento dos partidos populistas e a fragmentação política). Há aspetos muito difíceis, que têm a ver com a forma como os partidos políticos lidam com determinados assuntos e a perceção dos cidadãos de que já não os representam porque não abordam esses temas ou não dão uma resposta eficaz a esses assuntos. E há outros aspetos que têm a ver com o facto de os partidos políticos estarem cada vez mais fechados em si próprios e não terem respondido ao desafio da integridade na política, cada vez mais importante para os cidadãos. Daí que no último congresso do PSD eu tenha proposto, com outros militantes como a Lídia Pereira, o António Leitão Amaro, o Duarte Marques, o Carlos Coelho, uma série de reformas internas do partido.
Em que sentido?
Por exemplo, de alargar a participação no partido. Não podemos ter um partido com tão pouca participação política - não podemos ter partidos com tão pouca participação política. Ter partidos políticos que definem quem vai para o governo com tão baixa participação, muito suscetíveis de captura, é um risco muito grande para a democracia. Acontece que os cidadãos começam a ter perceção disso e a deslocar-se para outros partidos, outros movimentos, outras formas de participação, porque acham que os partidos políticos não estão abertos a eles. Depois, é preciso reforçar os mecanismos de controlo de integridade e de ética dentro do partido, já lhe falei da comissão de ética. Tenho uma grande preocupação com essa necessidade de reforma política muito mais profunda do partido, esse é o grande desafio estrutural que o PSD não pode ignorar. Compreendo que é muito difícil para qualquer líder do PSD reformar as estruturas do poder do partido, eles próprios têm muita resistência à mudança porque estão no poder. E isso muitas vezes desenvolve nos líderes partidários um certo cinismo político, porque têm de jogar o jogo possível e isso implica não reformar para aceder mais facilmente ao governo e reformar o país. Lá está, isto é uma coisa que posso dizer porque estou mais fora da política, tenho mais liberdade. Penso que ignoram que isso tem gerado a médio e longo prazo - é um processo que já vem de longe - uma perda de qualidade, de âmbito de participação nos partidos políticos que será fatal e levará a que as lideranças futuras sejam cada vez piores.
O PSD fez e votou uma alteração na lei que condiciona a candidatura dos movimentos de cidadãos às autárquicas. Como olha para essa limitação?
A forma de os partidos políticos tradicionais lidarem com o crescimento dos movimentos independentes e com os problemas e as dificuldades que isso lhes causa não pode ser impedindo a participação desses movimentos a nível local - a nível nacional tenho muitas dúvidas, sobretudo a partir do momento em que foram admitidos movimentos de cidadãos em Portugal. Passa sim por os partidos tradicionais se reformarem para darem respostas satisfatórias às populações desses municípios e poderem reconquistar a sua confiança e terem os seus votos e menos gente a votar nos movimentos independentes. Mas também digo o seguinte: não tenho e nem quero transmitir apenas uma visão idealizada dos movimentos independentes. Os movimentos de cidadãos não são em muitos casos verdadeiramente independentes, são fraturas de dentro dos partidos políticos. E então são uma outra forma de combate interno aos partidos, é importante termos isto em atenção.
"Não podemos fechar os olhos a esta injustiça que decorre de alguns estarem a sofrer ainda mais"
O PSD tem seguido as causas certas?
Não tenho dúvidas de que o PSD se tem batido por causas certas. Se me pergunta se o faz sempre de forma eficaz, terei de reconhecer que nem sempre. Por outro lado, há outras causas que penso que deviam ter mais ênfase do partido e que me preocupam muito, como a necessidade de proteger instituições independentes (da CRESAP [Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública] à PGR [Procuradoria-Geral da República]).
Quando passar a urgência da vacinação e da pandemia ficará com o problema económico e social. Como resolvê-lo?
Tal como outros, entendo que esta crise está a ter um impacto profundamente desigual. Há setores que foram, na prática, expropriados, impedidos de exercer a sua atividade económica ou profissão para proteção de todos nós. Acho que temos de discutir como os compensar de forma a corrigir este impacto desigual. Seria ótimo se o pudéssemos fazer através de emissão de dívida ou redução de despesa. Mas se não pudemos ou não estivermos disponíveis para estas soluções, temos de pensar noutras. Foi nesse contexto que admiti um imposto sobre aqueles, como as empresas da economia digital, que beneficiaram da crise. Mas o meu ponto fundamental é que não podemos fechar os olhos a esta injustiça que decorre de alguns estarem a sofrer ainda mais.
Comentários