“É muito importante que exista hoje o reconhecimento da violação como crime internacional através do Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional. Foi um avanço notável, mas lamentamos que este tribunal, instaurado desde 2002, não tenha conseguido uma única condenação para os responsáveis das violações e de crimes de caráter sexual, que são usados em todos os conflitos como arma”, disse Denis Mukwege.
O ginecologista e obstetra, que se destacou pelo tratamento e apoio às mulheres e raparigas vítimas de violação na República Democrática do Congo (RDCongo), falava durante uma sessão das Conferências do Estoril, em Carcavelos, Cascais, distrito de Lisboa, dedicada à violação e crimes sexuais como armas de guerra.
“É deplorável e mostra bem que, apesar de termos um tribunal que pode lutar contra a violência sexual, este tribunal não deu até hoje satisfação, nem resposta às mulheres que procuram justiça”, reforçou.
Para o médico, que fundou, em 1999, o Panzi General Hospital, em Bukavu, na RDCongo, fazer justiça aos milhões de mulheres e raparigas vítimas de crimes sexuais em conflitos em todo o mundo “é a única forma de restaurar a sua dignidade”.
Como exemplo da impunidade internacional que persiste neste tipo de crimes, Denis Mukwege referiu a situação na RDCongo, onde, na sequência da guerra civil de 2010, foram identificados os autores e cartografadas centenas de crimes de guerra, incluindo sexuais, e cujos responsáveis continuam ainda hoje nas Forças Armadas, na polícia e mesmo no Governo do país.
“Isto mostra bem os limites da justiça internacional. Sabemos que é muito difícil conseguir provas, mas hoje temos mulheres corajosas que testemunham e temos de aproveitar essa oportunidade para considerarmos os seus testemunhos como provas vivas para fazer a justiça avançar”, defendeu.
A luta pelos recursos minerais na RDCongo continua a representar um dos principais motivos de conflito no país, onde as violações e o tráfico de mulheres e crianças são “sistemática” e “estrategicamente” usadas como forma de ganhar controlo sobre esses recursos.
“As crianças que morrem em buracos, as mulheres que são exploradas como escravas sexuais temos todos a responsabilidade de dizer não a esta forma de tratar os seres humanos. Não podemos ficar indiferentes à sorte de milhares de mulheres em todo o mundo, que são submetidas a tratamentos desumanos apenas porque nasceram mulheres”, afirmou.
Sobre a sua experiência como médico na RDCongo, Denis Mukwege, falou de mulheres que chegaram ao seu hospital com os órgãos genitais destruídos por objetos cortantes e armas de fogo, queimados ou regados com produtos tóxicos.
O médico sublinhou igualmente o caráter metódico dos crimes sexuais, dando como exemplo o caso de uma aldeia em que, numa noite, foram violadas mais de 350 mulheres.
O Nobel da Paz alertou ainda para os seus efeitos de destruição do tecido social das famílias e da comunidade por os pais e maridos serem forçados a assistir a estas violações.
Lembrou que a vítima mais nova de violação que tratou foi um bebé de seis meses, considerando que estas violações são usadas como “armas muito eficazes” para controlar os recursos naturais ou promover limpezas étnicas através de gravidezes forçadas.
Denis Mukwege alertou igualmente para o aumento das doenças sexualmente transmissíveis e a diminuição da natalidade devido às lesões provocadas pelos crimes sexuais no aparelho reprodutor das mulheres.
“Hoje não podemos pensar que a violação é apenas uma relação sexual não consentida, é usada como uma arma absoluta. São violações massivas e sistemáticas”, reforçou.
Denis Mukwege, 63 anos, é um médico ginecologista congolês que tem desenvolvido uma ação humanitária na República Democrática do Congo, onde trata mulheres vítimas de violação.
O médico é um dos maiores especialistas mundiais na reparação e tratamento de danos físicos provocados por violação e no seu hospital em Bukavu trata mulheres que foram violadas por milícias na guerra civil do Congo.
Durante os 12 anos de guerra, tratou mais de 21.000 mulheres, algumas mais do que uma vez, chegando a fazer mais de 10 cirurgias por dia.
Mukwege também já foi galardoado com os prémios Olof Palme (2008), Sakharov (2014) e veio a Portugal receber o Prémio Calouste Gulbenkian em 2015.
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