Segundo o jornal brasileiro Folha de São Paulo, Dias Toffoli defendeu que "regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias" e que, como tal, a imagem do beijo homossexual na banda-desenhada não coloca em causa o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), publicado no país em 1990, não sendo necessário que as obras sejam confiscadas.

A decisão do STF vem na senda de uma série de medidas contraditórias que ocorreram no Brasil nos últimos dias a propósito da venda da banda desenhada “Vingadores - A Cruzada das Crianças”, da Marvel, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

O caso teve início com a denúncia na passada quinta-feira, 5 de setembro, de Marcelo Crivella, Prefeito de Câmara do Rio de Janeiro, que apelou à recolha da história aos quadrinhos, alegando que a obra atentava contra o ECA e quera preciso proteger as crianças de conteúdo impróprio, porque dois personagens ‘gays’ se beijam.

"Pessoal, precisamos proteger as nossas crianças. Por isso, determinámos que os organizadores da Bienal recolhessem os livros com conteúdo impróprio para menores. Não é correto que elas tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades", escreveu o autarca num vídeo publicado na rede social Twitter.

Como resultado, os fiscais da prefeitura do Rio de Janeiro deslocaram-se ao local no dia seguinte para recolher a edição dessa banda desenhada, sendo que, quando a feira abriu, às 09:00 locais, a edição de banda desenhada que motivou a ação de fiscalização já não podia ser encontrada no local.

Contudo, nas 24 horas seguintes sairiam decisões judiciais contraditórias quanto à medida de fiscalização.

Se por um lado, ainda no dia 6, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro publicaria uma decisão liminar que impedia, segundo o Folha, "a prefeitura carioca de apreender livros no local e cassar o alvará do evento", no dia seguinte, o desembargador Claudio de Mello Tavares, presidente desse mesmo órgão, suspenderia a decisão, afirmando que as obras que ilustram homossexualidade atentam contra o ECA e "devem ser comercializadas em embalagens lacradas".

Depois da sentença do magistrado Claudio de Mello Tavares, a prefeitura enviou uma nova equipa de fiscais à Bienal na noite de sábado para apreender livros cuja exposição pudesse estar a violar a lei, mas os funcionários acabaram por sair do evento sem qualquer livro apreendido nem irregularidades identificadas.

Hoje, o STF publicou a sua decisão, atendendo a um pedido feito por Raquel Dodge, Procuradora-Geral da República do Brasil, que, cita o Folha de São Paulo, visava "impedir a censura ao livro trânsito de ideias,  à livre manifestação artística e à liberdade de expressão no país”.

Dias Toffoli refutou ainda a consideração tomada por Claudio de Mello Tavares, indicando não haver "correlação entre publicações cujo conteúdo envolva relacionamentos homoafetivos com a necessidade de obrigação qualificada de advertência".

O livro na origem da polémica é a banda desenhada “Vingadores: a cruzada das crianças”, publicado pela Marvel, sobre um grupo de super-heróis e no qual dois dos protagonistas do sexo masculino foram desenhados a beijarem-se, mas totalmente vestidos e sem qualquer outra conotação sexual.

No entanto, segundo o mesmo jornal brasileiro, a decisão do desembargador mantém-se sendo que os livros terão mesmo de ser apresentados sob uma embalagem que cobre a sua capa.

Tal levou o youtuber brasileiro Felipe Neto a levar a cabo uma ação de protesto em que comprou 14 mil exemplares de livros que abordam temáticas homossexuais e distribuiu-os ontem perto da Bienal, considerando ser uma medida contra "a censura e a homofobia" e pela "leitura, a diversidade e o amor".

Vários casais homossexuais também protestaram no espaço da Bienal, com um beijo público e em simultâneo, tendo os visitantes do evento vaiado os fiscais no decurso da sua inspeção.

Este tema surge numa fase em que a temática da "ideologia de género" segue em força no Brasil, sendo uma expressão utilizada por grupos conservadores contrários às discussões sobre diversidade sexual e identidade de género. Marcelo Crivella é evangélico e, juntamente com outros líderes políticos conservadores, como o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, posiciona-se publicamente contra a dita ideologia de género.

O mais veterano dos magistrados do Supremo Tribunal, Celso de Mello, já disse que considera a decisão da prefeitura do Rio de Janeiro constitui um “ato gravíssimo”, e numa nota enviado ao jornal diário Folha de São Paulo, Mello alertou que, “um novo e sombrio tempo se anuncia”, precisando: “o tempo da intolerância, da repressão do pensamento, da interdição ostensiva do pluralismo de ideias e do repúdio pelo princípio democrático”.

[Notícia atualizada às 18:49]