“Mãe, um homem também pode ser chanceler?”, perguntou uma criança que vive na Alemanha e que, desde que nasceu, sempre viu uma mulher — Angela Merkel — no cargo. A história foi contada, em jeito de provocação, por Fernanda Freitas, moderadora da sessão de abertura do encontro “O homem promotor da igualdade”. O episódio servia para comprovar que a noção que temos dos papéis de género é fortemente marcada pelas pessoas que vemos nos espaços sociais, políticos, familiares, e para questionar — uma vez mais — a forma como a sociedade está a ser retratada.
Questionar, perguntar, contestar. E na maioria das vezes... concordar. As pessoas ali presentes formavam um grupo muito alinhado. Fora um ou outro momento de discussão mais acesa, o consenso foi grande: a igualdade de género é um objetivo incontestável e a diversidade de identidades deve ser respeitada.
“O primeiro painel, talvez por ser o primeiro, foi muito intenso, muito rico, muito poderoso. (…) Deixou-me emocionado até”, disse ao SAPO24, Ângelo Fernandes, presidente da Quebrar o Silêncio, associação responsável pela organização do encontro, referindo-se à sessão sobre interseccionalidade [cruzamento de várias dimensões de discriminação]. Evitando a institucional resposta sobre os pontos altos do encontro, Ângelo recorreu à emoção para descrever alguns dos momentos que mais o marcaram. “Gostei particularmente de ver a Sónia Matos da AMUCIP [Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas em Portugal] a falar sobre a igualdade de oportunidades e direitos, e sobre como é que isto se cruza com a realidade das mulheres ciganas”, descreveu, distinguindo, neste caso, a palestrante que trabalha como auxiliar de ação educativa no Centro Paroquial da Arrentela e que começou por afirmar que, na comunidade cigana, “a mulher não tem voz: é sempre a mulher de alguém, a filha de alguém, a viúva de alguém”.
Ainda no primeiro painel — o tal que, segundo Ângelo, “elevou a fasquia do encontro” — participaram Daniela Bento, ativista transfeminista, e Geanine Escobar. Geanine, enérgica, com uma voz brasileira que se projetava até ao fundo do auditório, começou por cantar uma ladainha de capoeira e por recitar um poema — “Mulheres negras”. O registo artístico, fortemente aplaudido, foi trazido para agitar a plateia e chamar a atenção para os conteúdos teóricos a seguir expostos pela investigadora, que falou sobre a lesbianidade negra em Portugal, tema da sua tese de doutoramento.
Estava dado o pontapé de saída para a maratona de comunicações que se iriam seguir ao longo daqueles dois dias. Da heteronormatividade às masculinidades cuidadoras, das experiências internacionais partilhadas por convidados vindos, por exemplo, dos Estados Unidos e do Reino Unido às várias dimensões de ser homem, da violência sexual à violência emocional, a força dos testemunhos esteve, para além do conteúdo, no tom de voz com que foram partilhados, na expressão corporal que lhes deu intensidade, e, no caso da Geanine, até na melodia com que foram cantados. Estas são algumas das vozes que foram marcando o encontro:
“Bom dia a todos e a todas” (formulação usada por grande parte dos palestrantes no início das comunicações)
“Os homens e os rapazes são gatekeepers [guardiões; controladores do acesso] da igualdade de género, mas também são discriminados” (Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, na sessão de abertura)
“Existir é resistir” (Daniela Bento, no final da comunicação “Visão interseccional no movimento transfeminista”)
“O RSI [Rendimento Social de Inserção] foi um passaporte para a liberdade: recebi o RSI durante três meses e já desconto para o Estado há 18 anos. Foi um bom investimento” (Sónia Matos, na comunicação “Igualdade de género na comunidade cigana: que desafios?”)
“Até para ter tempo para discutir política ou para fazer parte de movimentos ativistas é preciso ter privilégios” (Geanine Escobar, doutoranda em Estudos Culturais pela Universidades de Aveiro e do Minho)
“As mães convidam os filhos a entrar no armário para que o pai nunca venha a saber [que eles são homossexuais]” (Margarida Lima de Faria, fundadora da AMPLOS, Associação de Mães e Pais Pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género)
“Era muito importante que não caíssemos numa armadilha que é a da guerra de sexos” (Margarida Medina Martins, uma das fundadoras da Associação das Mulheres Contra a Violência)
“Se o vosso filho, irmão, amigo, marido, pai ou colega vos dissesse que foi abusado sexualmente. Saberiam o que lhe dizer?” (Ângelo Fernandes, fundador da Quebrar o Silêncio, durante a comunicação “Quebrar o Silêncio: violência sexual contra homens e rapazes”)
No programa do encontro, podia ler-se "receção das e dos participantes". Este era um entre tantos sinais de que naqueles dias se queria trazer para cima da mesa questões muito concretas: as palavras que usamos no dia-a-dia — tema discutido, em particular, no workshop sobre a linguagem inclusiva; os obstáculos à aplicação das leis promotoras da igualdade e as implicações na vivência das parentalidades — questão abordada, por exemplo, na apresentação da Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça Clara Sottomayor sobre a “Guarda alternada nos casos de divórcio: igualdade ou retorno ao patriarcado?”; ou as práticas desportivas que procuram expandir a noção de masculinidade - temática apresentada por Rúben Filipe Coelho, presidente da Boys Just Wanna Have Fun.
Lado a lado com as questões práticas, foram partilhados estudos académicos, experiências profissionais e vivências pessoais. “Este casamento entre a estatística, a academia e a linha da frente traduziu-se numa experiência muito rica”, explicou, no final, Ângelo Fernandes.
Procurando dar a conhecer os diferentes prismas da igualdade de género abordados no encontro, o SAPO24 publicou vários artigos e entrevistas, ao longo de nove semanas. Fique a conhecer alguns dos temas discutidos:
Ângelo Fernandes: "A igualdade de género deve incluir todas as partes. E o homem é uma delas"
Fado Bicha: "O fado foi saindo de um armário e entrou noutro maior, onde já cabem mais pessoas"
A sala pode nunca ter chegado à lotação completa, mas, para Ângelo, as características do espaço — palco e plateia estavam quase ao mesmo nível — permitiram uma “maior proximidade” entre os palestrantes e as pessoas que assistiam, e isso potenciou o diálogo entre todos.
Ali, a proximidade física andou de mãos dadas com a proximidade de ideias. Os momentos de desacordo foram exceção. Ainda assim, quando existiram, trouxeram risos (nervosos) — quando uma das pessoas na plateia criticou a imagem escolhida para a promoção do encontro e os conferencistas foram desafiados a comentar a crítica - e desconforto e burburinho na sala, pelo facto de uma das palestrantes ter condenado uma pergunta vinda da assistência, posição que acabou por ser apoiada de modo aguerrido por uma outra pessoa da plateia. Em relação a estes momentos, para Ângelo é claro: “É muito rico perceber que, apesar de estarmos no mesmo caminho, há posições diferentes, que se complementam” e “é preciso ter espaço para que este debate exista”.
Ainda sem data marcada, mas apontando para novembro novamente, “O homem promotor da igualdade” vai voltar no próximo ano. Quanto ao foco da terceira edição, ainda não está fechado. O organizador adianta algumas das novidades que já estão "a cozinhar", embora não queira deixar assuntos fechados, para conseguir garantir a “flexibilidade” de escolha. Uma das principais ideias é a criação de um painel onde se fale sobre a “relação que a comunicação social tem com os temas relativos à igualdade de género e aos feminismos”. Para além disso, "há sempre temas que são trazidos de um ano para o outro, nomeadamente as várias dimensões do que é ser homem [e] o tema da violência sexual”, explica Ângelo, para quem este “é um bom momento” para falar sobre a associação, uma vez que “é preciso criar literacia” sobre a violência sexual contra homens e rapazes.
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