Na Alameda D. Afonso Henriques, na Praça da Figueira ou junto da estação de Entrecampos, em Lisboa, podiam ser vistos nesta manhã alguns anúncios com a imagem gráfica da Galp. Uma leitura atenta das suas mensagens, porém, dava a entender que algo não estava certo.
Com frases como "O nosso futuro é CO2lonialismo" — denunciando o envolvimento da Galp nos projetos de exploração de gás natural em Cabo Delgado, em Moçambique — ou "Mais Lucro, Menos Pessoas" — criticando a decisão da empresa de encerrar a sua refinaria em Matosinhos — os cartazes foram uma iniciativa pensada para o Dia das Mentiras e inseriram-se numa campanha internacional.
Em comunicado enviado às redações, o coletivo ativista lisboeta Climáximo indicou que esta ação de guerrilha faz parte da iniciativa #CleanGasIsADirtyLie ("Gás limpo é uma mentira suja"), que ocorreu em 10 países europeus e que aproveita o mote do dia 1 de abril para "ajudar a indústria do gás fóssil a finalmente dizer a verdade sobre o gás ‘natural’".
Numa série de publicações feitas pela conta "Gastivists Network" na rede social Twitter, é possível ver que a ação levada a cabo em Portugal foi acompanhada pela colocação de cartazes a criticar a Shell nos Países Baixos, a Iberdrola em Espanha ou a Engie na Bélgica.
Ao SAPO24, Mariana Rodrigues, porta-voz do Climáximo, indicou que não foi o seu coletivo o responsável por esta ação, mas que se "solidariza" com a mesma, sem revelar quem foram os intervenientes, indicando apenas que "a ação é reivindicada pela campanha".
Em comunicado, a Galp atribui o ato à Climáximo e diz estar a ser "alvo de uma ação maliciosa desde ontem, que usa indevidamente a marca e o bom nome da empresa", Além disso, a empresa lamenta que a campanha aproveite "a trágica situação que se vive em Moçambique para difundir notícias falsas e procurar denegrir a imagem da empresa em cartazes".
A JCDecaux Portugal, que detém os espaços de publicidade que foram visados pela ação, também já se pronunciou, informado que "o caso em apreço configura um ato de vandalismo e má fé, sublinhando que jamais teve conhecimento e/ou envolvimento prévios".
A empresa indica também que os cartazes já foram removidos, sendo que "no seio de uma operação de manutenção, foram detetados alguns equipamentos que, após terem sido forçados, foram alvo da colocação indevida dos cartazes do referido movimento".
A JCDecaux Portugal — que revela que, até à data, só observou casos de colocação de cartazes desta natureza em Lisboa, apesar de estar a conduzir "operações de verificação em várias cidades do país" — já acionou, em conjunto com a Galp, os "meios jurídico-legais à disposição"
A colocação dos cartazes falsos coincide com o envio de um e-mail falso enviado em nome da Galp que informava que a empresa iria vender a participação que detém nos novos projetos de exploração de gás em Cabo Delgado.
Se por um lado, a energética já desmentiu o falso comunicado, por outro, Mariana Rodrigues nega que o seu envio tenha sido feito no âmbito do #CleanGasIsADirtyLie, apesar de estar "relacionado no conteúdo", desconhecendo também quem foram os seus autores.
A região de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, tem sido alvo de instabilidade e de violência por parte de grupos insurgentes jihadistas nos últimos três anos, mas a situação agravou-se e foi mediatizada na última semana com a invasão de terroristas à vila de Palma, que resultou em várias mortes e feridos, assim como em centenas de deslocados.
Esta região, rica em gás natural, é onde estão a ser desenvolvidos vários megaprojetos de extração deste combustível fóssil, entre os quais o maior investimento privado em África, liderado pela francesa Total. A Galp detém 10% num deles, o da Área 4 da bacia do Rovuma, liderado pela petrolífera italiana Eni e a americana ExxonMobil.
Segundo a porta-voz da Climáximo, a colocação dos cartazes terá ocorrido para "falar sobre o facto de a Galp estar a ter uma atitude colonialista em Cabo Delgado e de não garantir transição energética nem justiça social, em particular no que toca à refinaria de Matosinhos". No entanto, defende que esta ação já tinha sido planeada de antemão para este dia e não ocorreu apenas devido aos acontecimentos mais recentes em Moçambique, aproveitando-se apenas dos mesmos para denunciar a atuação da empresa. É neste contexto que surgem as críticas do Climáximo e da ONG moçambicana Justiça Ambiental, que também assina o comunicado enviado pelo coletivo lisboeta.
"Não é possível dissociar o que se passa em Cabo Delgado do projeto de gás internacional onde a Galp tem uma participação, com parte da construção a cargo das empresas portuguesas Mota-Engil e Gabriel Couto, e o financiamento do Millenium BCP", acusa Daniel Ribeiro, ativista na organização moçambicana.
Já Mariana Rodrigues diz que o projeto de gás em causa é responsável por ter "expropriado mais de 550 famílias", que "foram completamente abandonadas e retiradas das suas terras e sem capacidade de subsistência, porque dependiam do seu terreno e dos recursos de águas". Além disso, segundo a porta-voz, estes projetos criaram "um espaço de desequilíbrio e de indignação tal que abriu espaço para o terrorismo". As acusações de "colonialismo" surgem assim porque "estamos a falar de uma empresa nacional estar numa ex-colónia portuguesa a extrair os seus recursos naturais, a expropriar as comunidades que estavam lá", explica.
Daniel Ribeiro, todavia, vai mais longe e acusa a Galp de ser conivente com atos de corrupção — referindo-se ao caso em investigação da transferência para o Governo moçambicano de 2 mil milhões de dólares pelo banco Credit Suisse e VTB bank — e de contribuir para ações que "deterioram a liberdade de imprensa, com os desaparecimentos, detenções e torturas de jornalistas que relatam sobre a indústria do gás em Cabo Delgado".
Análogas a estas críticas estão as que visam a Galp por pretender encerrar a sua refinaria em Matosinhos. A Galp anunciou em dezembro de 2020 a intenção de concentrar as suas operações de refinação e desenvolvimentos futuros no complexo de Sines e descontinuar a refinação na cidade localizada no distrito do Porto, este ano. A decisão põe em causa 500 postos de trabalho diretos e 1.000 indiretos, conforme estimativas dos sindicatos.
"A Galp fechou a refinaria de Matosinhos no âmbito de ser uma transição justa energética, mas compreendemos que a realidade é que esta refinaria será fechada por questões económicas", acusa Mariana Rodrigues, lamentando que a decisão tenha sido tomada "sem o envolvimento dos trabalhadores e sem dar uma alternativa".
Além disso, a porta-voz acusa a empresa de conduzir uma "suposta transição energética" que "não é real" pois estará apenas a deslocar a exploração de Portugal para outros países, ou seja, é feita "com base e à custa de outras pessoas noutros locais".
No comunicado conjunto, tanto a Climáximo como a Justiça Ambiental pedem à Galp para que faça uma "transição justa descolonial", o que implicaria "a saída imediata de Cabo Delgado, o seu controlo público e desmantelamento planeado, através de uma gestão democrática que envolva os trabalhadores, as comunidades afectadas pela transição e as comunidades afectadas pela crise climática e que prioritize o bem-estar e crescimento das pessoas e dos ecossistemas, em detrimento dos lucros da empresa e crescimento económico".
[Notícia atualizada às 20:58 — Inclui o comunicado conjunto da Galp e da JCDecaux Portugal]
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