“O todo é maior que a soma das partes”. Partimos daqui, com uma daquelas frases de algibeira que tantas vezes nos permitem resumir a realidade.
O desejo de um país em sair da União Europeia - o todo - já não é tão claro como era antes. Hoje é impossível dizer que um novo referendo ao Brexit transmitiria a mesma vontade. E mesmo não existindo certezas sobre o que seria diferente, sabemos, pelo menos, que a perceção do todo se alterou. Por um lado, porque os protagonistas de há dois anos saíram de cena - nomes como David Cameron, Boris Johnson ou Nigel Farage - ou divergiram entre si dentro da ideia da saída, especialmente no confronto entre uma saída suave e uma saída mais dura -, por outro porque a realidade das partes mudou e a confusão instalou-se.
Na quarta-feira o governo britânico aprovou o rascunho do acordo entre o Reino Unido e a União Europeia, mas não por unanimidade. O todo voltou a ser maior do que as suas partes, mas as acusações a May de ter construído um acordo demasiado favorável à UE, especialmente no que diz respeito ao ponto relativo à Irlanda do Norte, colocam em causa a frase de algibeira.
“O que nós concordámos ontem [quarta-feira] não foi o acordo final. É um rascunho de um tratado. Significa que vamos deixar a UE de uma forma suave e ordenada e define a estrutura para um relacionamento futuro que garante o interesse nacional". Foi com estas palavras, num apelo à salvação do todo, que Theresa May abriu a sessão na Câmara dos Comuns, com um apelo à união e com margem que um "rascunho" pode oferecer para possíveis mudanças.
Mas nem por isso as partes tornaram o debate mais calmo.
Os ataques não se fizeram esperar e surgiram um pouco por todo o lado com Theresa May a arriscar ser ela própria uma ilha, isolada de tudo e de todos.
Os primeiros ataques ao acordo vieram da parte Jeremy Corbyn. O líder da oposição disse que May “deve recuar neste acordo mal amanhado que não tem o apoio do Governo, desta Câmara, nem do país no seu todo”, sublinhou. Corbyn acusou ainda o executivo de não ter “ambição para negociar um novo acordo aduaneiro que proteja o comércio, os empregos e a indústria”.
Ian Blackford, a líder do Partido Nacional Escocês no Parlamento britânico, classificou o acordo do Brexit como “morto”, acusando Theresa May de estar sozinha no governo. “A primeira-ministra vem aqui vender-nos um acordo que está morto. Nem o seu ministro para o Brexit o apoia”, atirou.
Depois, puxou o tema que mais debate tem gerado - e que tanto incomodará os escoceses, um país que se manifestou, e expressou eleitoralmente, contra a saída do Reino Unido da União Europeia e com um forte movimento independentista -,: “Há referências a Gibraltar, à Ilha de Mann… e nem uma à Escócia. [...] Um acordo diferenciado para a Irlanda do Norte significa que a Escócia também pode ter o seu acordo diferenciado. Se a Irlanda do Norte pode ficar no mercado europeu, por que não pode a Escócia?”.
A questão da fronteira irlandesa era um dos principais ponto de discórdia entre Bruxelas e Londres, que divergiam sobre o mecanismo para garantir uma solução de recurso na eventualidade de a relação futura entre o Reino Unido e o bloco não estar definida até ao final do período de transição, no final de 2020.
Culminou assim numa solução de recurso, denominada em inglês como "backstop" anunciada na quarta-feira pelo negociador-chefe comunitário para o 'Brexit’, Michel Barnier . O chamado ‘backstop’ (solução de recurso) para a fronteira entre a República da Irlanda e o território britânico da Irlanda do Norte só será ativado caso a parceria futura entre Bruxelas e Londres não fique fechada antes do final do período de transição, que termina em 31 de dezembro de 2020, e poderá ser prolongado uma única vez por uma duração limitada.
Esta solução que, segundo Barnier, “evoluiu consideravelmente desde a proposta inicial da UE” e teve por base a proposta britânica, seria a criação de “um território aduaneiro único” entre a UE e o Reino Unido, no qual as mercadorias britânicas teriam “um acesso sem taxas e sem quotas ao mercado dos 27” e que garantiria que a Irlanda do Norte se manteria alinhada com as normas do mercado único “essenciais para evitar uma fronteira rígida”. Ou seja, uma fronteira que continua a funcionar sem controlos sobre a circulação de pessoas, serviços ou mercadorias.
Na ressaca de um acordo ou quando as partes fazem abanar o todo
No dia a seguir à aprovação do rascunho do acordo para a saída do Reino Unido da União Europeia, o país acordou num alvoroço. Depois de Donald Tusk ter anunciado esta manhã que pretende marcar um Conselho Europeu extraordinário, com 27 países, para o dia 25 de novembro para “finalizar e formalizar o acordo de Brexit” com o Reino Unido, somaram-se os ecos da insatisfação.
Primeiro foi a demissão do conservador Shailesh Vara, ministro de Estado britânico para a Irlanda do Norte, que considerou que os termos do acordo “deixam o Reino Unido a meio caminho, sem previsão de quando vamos recuperar a soberania da nossa nação”. "Não posso apoiar o acordo de saída concluído com a União Europeia", sublinhou.
Depois foi Dominic Raab, o ministro britânico com a tutela do ‘Brexit’, a anunciar a demissão em oposição ao projeto de acordo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, concluído na quarta-feira.
"Não posso, em consciência, apoiar os termos propostos para o nosso acordo com a União Europeia", explicou Raab na carta de demissão divulgada na sua conta na rede social Twitter, adiantando que o motivo da discordância se prende com futuro estatuto da Irlanda do Norte.
Na carta a Teresa May, Raab, que apoiou o ‘Brexit’ no referendo de 2016, disse que não pode apoiar o acordo por duas razões. Por um lado, porque entende que "o regime regulatório proposto para a Irlanda do Norte representa uma ameaça real à integridade do Reino Unido", e por outro, porque não pode aceitar a cláusula de segurança para evitar uma fronteira na Irlanda "seja indefinida" e que a União Europeia "tenha direito de veto" sobre a capacidade do Reino Unido em rescindi-la".
Foi por esta altura que os mercados se manifestaram, com a libra esterlina a descer face ao euro e ao dólar. A divisa britânica perdia 0,43% face ao euro para 1,14 euros e 0,07% face ao dólar para 1,29 dólares, depois de se conhecer a segunda baixa no executivo britânico da primeira-ministra conservadora Theresa May. Tudo isto depois de na quarta-feira, a libra se ter valorizado quando May divulgou o pré-acordo entre Londres e Bruxelas sobre o ‘Brexit’.
“O acordo ontem colocado diante do Governo não honra o resultado do referendo”, escreveu Esther McVey, ministra do Trabalho e das Pensões, na carta em que apresenta a demissão, a terceira de um ministro, até ao momento.
Mais tarde nesta manhã, Suella Braverman, ministra “júnior” para o Brexit, Anne-Marie Trevelyan, secretária de Estado da Educação, e Ranil Jayawardena, secretário de Estado da Justiça, também abandonaram o executivo de May, fixando assim o número em seis demissões.
Theresa May, no texto que levou à sessão de abertura do Parlamento, não esqueceu os ministros. "Concretizar o Brexit envolve escolhas difíceis para todos nós. Não concordamos com todas essas escolhas, mas eu respeito as suas opiniões. E gostaria de agradecer sinceramente por tudo o que eles fizeram", disse May.
No entanto, as demissões podem não ficar por aqui. Citando fontes anónimas do governo, a imprensa britânica indicou que 11 dos 18 membros do governo que participaram no conselho de ministros que levou cinco horas para aprovar o documento criticaram o acordo. O todo já não era o mesmo e Theresa May, parte central do processo, ficaria assim em minoria.
E agora?
O futuro é incerto, a primeira-ministra britânica é o espelho disso mesmo, após seis demissões no executivo, e de ter admitido no debate de hoje na Câmara dos Comuns a reconhecer a possibilidade de "não haver Brexit", apesar da promessa de tentar alcançar aquele que foi o desejo manifestado pelo povo há dois anos no referendo pela permanência do Reino Unido na União Europeia.
A grande novidade dos próximos dias deverá passar pelo anúncio de um novo ministro do Brexit, após a demissão de Dominic Raab. O ministro demissionário falou já hoje, em entrevista à BBC: "Acho que ela [Theresa May] deve continuar, mas nós temos de mudar o rumo na questão do Brexit.". Para Raab é necessário "ter um ministro para o Brexit que tente alcançar o acordo que ela quer", dando assim a entender que ambos tinham visões muito distantes em relação ao acordo.
De acordo com a imprensa britânica, Michel Gove, um dos rostos da campanha pela saída, parece ser o nome favorito para suceder a Raab.
A União Europeia diz estar "preparada para fechar um acordo no final do mês, para um cenário de ausência de acordo". Mas, sublinha, Donald Tusk, "estamos mais bem preparados para um cenário de não ‘Brexit’.
As únicas previsões que são legítimas fazer por esta altura são à volta de estatística. A primeira passa por uma moção de não confiança a May, que o eurocético Jacob Rees-Mogg fez passar de ameaça a ação.
Rees-Mogg disse que está apenas a seguir “os procedimentos do partido Conservador quando as políticas que são apresentadas não respeitam as promessas feitas aos eleitores” e sugeriu os ex-ministros Boris Johnson ou David Davis como potenciais sucessores.
O deputado, eurocético e apologista de um ‘Brexit’ mais drástico que corte as relações estreitas com a União Europeia, tinha ameaçado a primeira-ministra esta manhã, alegando que pensava fazê-lo porque “aquilo que diz e aquilo que faz já não correspondem”.
“O que precisamos é de um líder que diga à União Europeia que é impossível dividir o Reino Unido, é impossível concordar com uma situação que perpetua uma união aduaneira e é impossível pagar 39 mil milhões de libras de dinheiro dos contribuintes por algumas promessas (…) e é impossível aceitar a continuação da jurisdição do Tribunal Europeu de Justiça”, justificou.
Para uma moção de censura dentro do partido Conservador ser ativada pela Comissão 1922, que gere o processo de eleições internas do partido Conservador, tem de ser subscrita por 48 deputados conservadores, equivalente a 15% do grupo parlamentar de 315 deputados.
Depois, passando da parte para o todo, o governo precisa de 320 votos para fazer passar o acordo, mas entre os 315 deputados conservadores, dezenas são frontalmente contra, como Boris Johnson, David Davis e Jacob Rees-Mogg, e estes poderão mobilizar mais ‘tories' que fazem parte do European Research Group (ERG), grupo que defende um ‘Brexit’ radical. Sem acordo, todo o processo poderia culminar numa saída sem acordo, o pior dos cenários.
O partido Trabalhista, pela voz do líder, Jeremy Corbyn, também já manifestou a intenção de votar contra, bem como os restantes partidos da oposição, que se opõem ao ‘Brexit’ em geral, e o Partido Democrata Unionista, que é aliado do governo mas recusa que sejam aplicadas regras europeias na Irlanda do Norte diferentes do resto do país.
Caso o acordo não seja viabilizado na Câmara Comum, analistas políticos sugerem que tal pode abrir caminho para eleições legislativas antecipadas, a solução preferida por Corbyn, um novo referendo, que o ‘Labour' considera uma alternativa, ou sair da União Europeia sem acordo, o único cenário que é rejeitado e une a maioria dos deputados britânicos dos diferentes quadrantes políticos.
O todo mudou e Theresa May está perdida entre as partes. A primeira-ministra tem de fazer valer a sua leitura do ditame popular que diz que o todo é maior que a soma das partes. Isto, ao mesmo tempo que tenta não largar uma das partes - a União Europeia, da qual, curiosamente, o país já não quer fazer parte - e, claro, convencer um povo a aceitar uma realidade que ele próprio elegeu, algo que, nos dias de hoje, parece acontecer mais vezes do que devia.
No final de contas, o Brexit só começou agora perante o choque entre a realidade pretendida e a realidade possível. O Reino Unido queria sair da União Europeia, mas demorou dois anos a sair de si próprio. Sem grande sucesso, a julgar pelas primeiras 24 horas.
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